sábado, 28 de junho de 2025

Seu Ari

 

Era uma rua lisinha e plana, de asfalto recém colocado, os meios-fios branquinhos e alinhados. Tudo perfeito. Nas tardes de sábado passavam poucos carros e até juntava gente pra ver o nosso futebol. As torcidas ficavam no cantinho da calçada, mas muita gente assistia da própria janela mesmo, uma fileira de casas baixinhas como reza a paisagem singela de todo bom subúrbio.

Tinha dias em que podíamos jogar de tênis, mas na maioria das vezes a peleja era descalça mesmo. Tudo dependia da maioria dos meninos. Assim, pra igualar as condições, ou era todo mundo de tênis ou de pé no chão. E ainda, um time com camisa e o outro sem. As balizas eram chinelos, às vezes caixas de madeira, de papelão, ou outra coisa qualquer que servisse de marcação.

No casarão que ficava quase na esquina, um pouco depois da linha do gol, morava o Seu Ari. Era um sujeito magrelo, bigodinho suspeito e fino, cabelos com Gumex esticados pra trás e uma enorme antipatia pelo mundo. Sim, o velho nutria uma pitoresca e espontânea aversão pela humanidade, principalmente os vizinhos e, mais ainda, por vizinhos que jogassem bola na frente da sua casa. O homem era insuportável. Como diz um amigo meu: “um cano de passar bosta, de tão grosso”.

A nossa sorte, ou melhor, a sorte do nosso “estádio de futebol” era que os muros da casa do Seu Ari eram relativamente baixos. Assim, quase sempre alguém pulava o dito obstáculo e recuperava a bola sem que o dono da casa sequer suspeitasse. Era um pé dentro e outro fora da casa, com a bola nas mãos.

Isso acontecia, naturalmente, quando o ícone rabugento não estava na varanda. Nesses casos ele ficava ali só esperando a bola cair e no minuto seguinte cuidava de dar-lhe um fim, tirando das nossas vistas e levando pra dentro de casa, sumariamente. A gente chamava, gritava e o velho nem tchum pra nós. Era mais uma bola que se ia. Muitas vezes aquilo era o fim do jogo. Outras, por algum milagre, um santo qualquer trazia outra bola, igualmente recebida com muita festa.

Mas um dia, em uma tarde especial, toda essa histórica convivência mudou completamente. Estava o nosso vizinho ranzinza de prontidão ao lado do portão de casa, assistindo ao jogo. Assistindo é modo de falar, porque ele estava ali atento, premeditando a hora em que a bola cruzasse o seu muro para dar cabo a alguma nova maldade. Dessa vez ele havia acabado de trabalhar no pequeno jardim e estava ainda com as ferramentas na varanda.

Deu mais um minuto e pronto, lá se foi a bola. E como ele estava ali ninguém pulou o muro, claro. A garotada apenas pediu a bola de volta. O velho ficou em silêncio, jogou o cigarro fora e, lentamente, foi até o meio do jardim, buscou a bola e trouxe pra perto das ferramentas. Ali ele escolheu uma enxada e a posicionou mirando a nossa bola. Na mesma hora todo mundo gritou pra ele não fazer aquilo, prometendo não deixar cair lá de novo, mas não teve jeito. Em câmera lenta todos nós pudemos ver em detalhes quando ele ergueu a enxada, mirou a bola e... acertou a própria canela.

O barulho que fez foi horrível. E mais horrível ainda foi a quantidade de sangue que aquela canela fina, que era só osso, conseguiu expelir. Uma sangueira danada tingiu a varanda e, em poucos minutos, o velho Ari estava deitado no chão gritando de dor.

A gente ficou um minuto sem saber o que fazer, um olhando pro outro e, não sei de onde, surgiu algum vizinho, adulto, que pulou o muro e foi socorrer o velho. Lá de dentro ele começou a pedir coisas e alguém saía em disparada em casa pra buscar. Pediu panos, gazes, depois tesoura e antissépticos, sei lá, tanta coisa, até que decidiu pedir pra alguém trazer um carro pra levar o coitado até um hospital, sob o risco de o rabugento morrer ali mesmo.

Foi uma correria dos diabos a partir daí. Cadê o carro? Como vai abrir o portão da casa? Quem vai junto? Um furdunço generalizado até chegar a cena que eu lembro bem, e que era um monte de gente pulando pra dentro da casa, depois o esforço da turma levantando o ferido pra também passá-lo por cima do mesmo muro, e, finalmente, o trabalho pra botar o homem no carro.

Toda a vizinhança passou aquela tarde de sábado esperando por notícias do Seu Ari. No final estava todo mundo com pena dele, coitado. As notícias não chegavam e a aflição só aumentava. Quem ouvia a história dizia que era loucura se ferir daquele jeito, veja você, furar a bola com uma enxada!

Uma eternidade e um dia depois, eis chega um carro trazendo o vizinho abatido. Atrás dele o motorista que o socorreu e que agora o auxiliava a entrar em casa. A filha do Seu Ari, que morava em outro bairro, também amparava o pai e trazia as receitas com os remédios dados no hospital. Ela já estava ciente de toda a ocorrência e enquanto entrava em casa disse que depois queria falar com a gente.

De repente aquela casa, até então intransponível para todos ali, passou a vivenciar um entra e sai de gente, todo mundo querendo ver como estava o estado de saúde do Seu Ari e se ele precisava de alguma coisa. Uma vizinha que morava na vila ao lado trouxe um pote com sopa. Uma outra chegou com um par de muletas dizendo que o idoso poderia usar o quanto precisasse e que não tivesse pressa pra devolver.

Até que a filha do Seu Ari finalmente veio até o portão. Com os olhos marejados passou a agradecer a todos pelo socorro ao pai dela. Disse que ele é uma pessoa difícil, mas que se não fosse a iniciativa de levá-lo ao hospital talvez ele não sobrevivesse ao ferimento, pois que foi grave e na idade dele poderia ter sido fatal.

Daquele dia em diante, não tinha uma única vez que algum vizinho fosse ao mercado que não parasse na porta do Seu Ari pra perguntar se ele queria alguma coisa. Da padaria, as pessoas traziam pães e outras coisas pra ele tomar café. A gente via que ele tinha muita dificuldade pra se locomover com aquelas muletas e por isso todo mundo queria ajudar.

Nos dias de futebol, assim que começava o jogo a gente percebia que vinha o Seu Ari lá de dentro da casa e, com alguma dificuldade, destrancava o portão grande da garagem. Depois nos avisava que estava só encostado. Quando a bola caía lá dentro a gente entrava, cumprimentava o velhinho na varanda, pegava a bola e agradecia.

Ele também agradecia.

E nos agradeceu até morrer.