Djair era o
chefe e Alcides o comparsa. Estavam os dois na rua caçando oportunidades pra
roubar alguma coisa, de alguém ou de alguma loja, quem sabe um motorista
desatento com o celular ou um relógio pra fora da janela, enfim, algo que lhes
rendesse algum trocado ao fim do dia exaustivo de trabalho. Sim, para a dupla
isso era um dia de trabalho.
As maiores
desvantagens desses dois eram, primeiro que não tinham uma arma. Sim, porque
com uma arma na mão pode-se exigir, com muito mais facilidade, que alguém lhe
ceda a bolsa em troca da vida, evidentemente. A segunda era a falta, ampla e completa,
de alguma inteligência. Como dizia o meu pai, qualquer um dos dois que
tropeçasse, na mesma hora lhe cresceriam rabo e enorme orelha, tamanha a
propensão para o animal que ilustra o imaginário da tal ausência de intelecto.
Andavam a
perambular os dois pelo Centro da cidade, até que entraram num banco. Não dava
pra declinar da temperatura convidativa daquele ar-condicionado. Eu morreria
aqui mesmo, pensou o Alcides, ajeitando o topete engomado que lhe caía na
testa. Naquele clima de montanha, analisando o ambiente, quase que escolhendo a
vítima, eles pegaram senha e sentaram junto dos idosos em uma das cadeiras que
também são alinhadas como uma fila, justamente para falar com o gerente.
O seu
Inocêncio, quando chegou a sua vez, deixou cair um envelope que ficou escondido
no canto da cadeira, ao lado do braço. Mais rápido do que pensar num golpe de
estado, Djair surrupiou o envelope e o mocozeou devidamente, como fazem aliás os
experientes meliantes.
Pra disfarçar,
foram até o bebedouro, sorveram uma água geladinha, cumprimentaram o segurança
e saíram calmamente do banco. Um guarda disse ao outro que o bandido se
reconhece pela preocupação com os guardas. “Estão sempre nos olhando, os nossos
movimentos”. O outro respondeu que tinha percebido um deles nessa atitude
suspeita. “Aquele que tinha cara de fuinha”. Ao que o outro riu e finalizou
dizendo que ficou na mesma, pois “ambos tinham uma baita cara de fuinha”. E a
risada teve de ser contida, afinal estavam em serviço.
Naquela mesma manhã,
de posse do envelope do seu Inocêncio, a dupla engendrou o golpe. Não o de
estado. O do seu Inocêncio, cujo envelope “perdido” no banco continha não só o
cartão de crédito, mas também os dados da sua conta, o nome do gerente e o seu
telefone. Mas, seu Inocêncio...?
– Alô, boa
tarde. É o senhor Inocêncio?
– Boa tarde.
Sim, sou eu.
– Seu
Inocêncio, o senhor perdeu o seu cartão do banco hoje pela manhã, não é mesmo?
Aqui, quem está falando é o seu gerente. Nós achamos o seu cartão dentro do
terminal de saque eletrônico. Estava dentro do próprio caixa.
– Ah, que bom
que vocês o encontraram. Que alívio. Eu posso ir até aí buscar, mais tarde?
– Olha, seu
Inocêncio, isso não vai ser possível. É que dado o sinistro, a perda do cartão,
nós vamos ter de cancelar este e lhe fornecer um outro. Mas é inteiramente
gratuito, entendeu?
– Ah, sim.
Outras vezes que eu perdi o cartão e depois achei, aqui em casa mesmo, ele teve
de ser cancelado também.
– Isso mesmo.
É o procedimento. Mas seu Inocêncio, pra cancelar esse cartão e fazer a
solicitação do novo eu preciso confirmar uns dados seus, ok?
– Ok.
Perfeitamente. Quais dados?
– Bem, o
número da sua conta, a agência e número do cartão.
– Espere um
pouco que eu tenho tudo anotado aqui na minha agenda.
– Pois não,
seu Inocêncio. Não tenha pressa.
Depois de
passar os dados que os golpistas pediram, chegou a encruzilhada final, ou seja,
a hora de pedir a senha. Cabe aqui explicar que os dois bilontras, os
girigotes, os verdadeiros trafulhas estavam já em outro caixa eletrônico, que
ficava na saída da galeria de lojas, um local ermo àquelas horas, prontos pra
efetivar o saque com o cartão do coitado do seu Inocêncio. Faltava só a senha,
quando aqui retomamos o diálogo infame:
– Obrigado
pela confirmação dos seus dados, seu Inocêncio. Agora, para o cancelamento
desse cartão, precisamos da sua senha.
– A senha é...
Margarida.
Tapando o
microfone do seu celular, o Djair sussurrou ao comparsa:
– Digita aí
Margarida, ô Cid.
– Ok. Peraí.
Mais um pouco. Senha inválida.
– Ô seu
Inocêncio, a senha deu inválida. É a sua senha desse cartão aqui que o senhor
perdeu que a gente quer. A senha pra saque da sua conta. Entendeu?
– Ah, sim.
Desculpe. É verdade. Margarida é a senha pra entrar no banco pela internet, só
pra consultas de saldo e tal.
– Ok, seu
Inocêncio. E qual é essa senha então? A do saque, viu?
– A senha é
Meu Piiiiiiii...
– Ai caceta. Esse
velho é maluco – disse o Djair pro Cid, tapando de novo o microfone. Meu
Piiiii? Que merda é essa? Ô Cid, eu acho que é algum palavrão isso. Só pode
ser. Meu Piiii...? Mas que Meu Piiii? Olha, digita aí meu pinto, meu piru, pau,
sei lá. Esses velhos são todos uns tarados de merda. Vai, digita essa joça logo.
– Não tá dando
certo não, chefe.
– Ô seu
Inocêncio. Essa senha de Piiii aí não tá certa não. Se for um palavrão, pode
falar sem medo, viu? Fala direito senão não vou poder cancelar o seu cartão.
– Mas é o Pi.
É isso mesmo, como eu falei. É o número do Pi até a quarta casa decimal. Aí,
como a senha tinha que ter letra também, eu botei o “Meu” na frente.
– O quê? Como
assim, “botou o seu na frente”, seu Inocêncio? Que brincadeira é essa? Botou o
seu o quê? O senhor me respeite. Eu sou o gerente.
– Não. Botei o
Meu na frente do Piiii. Você não sabe qual é o número de Pi não?
Tapando o
microfone mais uma vez, ele pergunta pro topetudo do Cid:
– Ô Cid, seu
ameba, qual é o número do Pi? Tu sabes de cor?
– Chefe, vou
dizer uma coisa triste para o senhor. Eu não sei nem o número da minha mulher.
Quando eu tenho que ligar pra ela eu só busco o nome na lista e ligo. Não sei
de cor o número de ninguém. Ainda mais desse tal de Pi aí. Eu sei lá quem é
esse cara? Vai ver é gente lá do grupo dos “biquinis pretos”? Essa turma é da
pesada! Bandidagem geral mesmo.
– Porra, esse
velho já tá me tirando do sério. Acho que vou dar “umas porrada” nele até ele
falar a bosta da senha.
– E o plural, chefe,
onde fica?
– Ah, Cid, tu
vai tomar no cu logo, seu merda.
– Eu só estava
ajudando. Nossa! Que violência! Não é umas “porrada”. É umas “porradas”, no
plural, concordando com o...
– Chega dessa bosta.
Vou voltar aqui pro nosso plano. Foco! Foco!
Djair chamou
pelo seu Inocêncio algumas vezes, mas ele não respondeu. Não parecia ter caído
a ligação, por isso ele ficou esperando um tempo. Até que a voz surgiu:
– Alô.
– Oi, seu
Inocêncio. Pois é. A sua senha não deu certo de novo. Vamos tentar mais uma
vez?
– Acho que não
é mais preciso, meu amigo. A minha filha chegou em casa pro almoço e disse que
já ligou pro banco e cancelou o meu cartão. Me deu a maior bronca quando eu
contei que o tinha perdido. Tá aqui uma fera comigo!
– Talquei, seu
Inocêncio. Então manda um abraço pra vagabunda da sua filha. E que se foda o
senhor também, talquei?
– Igualmente
para o senhor e os seus.
E desligou.