sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Corte


Definitivamente, eu estava decidido a mudar o meu cabelo. O cabelo só não, todo o visual que poria o cabelo em evidência e me daria uma aparência mais moderna, digna da mudança de milênio, ou do fim dele. Eu tinha uns 30 e poucos anos, já estava há um tempo planejando tudo aquilo e decidi que se não fizesse daquela vez não faria mais.
Foi então que eu bolei o plano. Ia raspar a barba que já tinha uns seis, sete anos de vida, ia voltar a usar os óculos e não mais as lentes de contato e, o principal, iria cortar o cabelo à máquina três e o descolorir até ficar branquinho. Tudo isso, diga-se de passagem, seria processado numa sexta-feira, de modo que eu chegasse no trabalho na segunda com a surpresa pronta, na cara de todos, e na minha também.
Eu nunca tinha feito nada parecido. No máximo me dava por satisfeito por, de tempos em tempos, por pura diversão, tirar a barba e ver a reação de todos com o meu novo rosto, a boca se tornando fina e o rosto bem mais magro. Mas o que eu ia fazer dessa vez era algo ousado, contrário ao meu normal, sempre certinho e comedido.
Já saí de casa de manhã sem a barba, que foi pelo ralo antes do banho, e levei comigo os óculos na bolsa. Somente depois de cortar e descolorir o cabelo é que eu iria tirar as lentes de contato e voltar a usar os óculos, completando a tríplice mudança: barba, cabelo e óculos.
Foi lá no salão da Rita, perto da estação de trem, que ela me falou que essas coisas demoram um pouco e que, pra descolorir direito, ia arder o couro cabeludo. Mas se eu tivesse um pouco de paciência tudo ia sair bem, do jeitinho que eu queria, disse ela.
Só sei que fiquei umas boas horas lá no salão. Primeiro cortei o cabelo com a máquina e depois fomos passar o descolorante. A seguir, um papel alumínio brilhante esquentou tudo em volta e a mágica ficou pronta depois de enxaguar e passar mais um troço lá que branqueava de vez. Enfim, o que tinha estado meio amarelo, da química, pra tirar a cor original, agora era branco de verdade.
Eu mesmo não me acostumava com o que via no espelho. Ficou um visual ousado e eu achei muito bacana aquela minha cara de europeu das terras frias caucasianas. Fui pra casa achando que todo mundo estava me olhando na rua. Só não sabia se era por beleza ou por estranheza. Pra mim, no início era pelo primeiro, mas alguns minutos depois eu já não tinha tanta certeza assim. Ia pensando que melhor mesmo seria quando chegasse em casa. Sim, porque pai e mãe sempre dizem que o filho está bonito e o meu cabelo tinha de ser avaliado com uma certa dose de carinho de mãe, de pai. Uma avaliação francamente tendenciosa era tudo que eu precisava.
Quando cheguei na varanda de casa botei a cara na janelinha da porta, só de brincadeira, pra surpreender quem estivesse na sala vendo televisão. Aí, ouvi minha mãe dizer logo de cara que era eu, avisando o meu pai que já se levantava pra abrir a porta, e pedindo pra ele ir até lá rápido. A surpresa foi grande e eu fiquei um tempão contando como foi tudo, como começou, como foi a ideia, como foi a ardência na cabeça e ainda sobre a barba e os óculos.
Minha mãe pegava no meu cabelo, olhava por dentro dele passando os dedos, analisando tudo e por fim disse que estava legal, diferente, que eu estava parecendo um estrangeiro e declarou um gostei ainda querendo mais certeza naquilo que via. Então passamos a perguntar ao meu pai, que demonstrava muita dúvida, só pra dizer o mínimo, pois que o seu primeiro impulso foi de certa estranheza.
Mas minha mãe ficou tentando me ajudar, explicando que as pessoas têm que mudar o visual de vez em quando e tal, que mulher tem o direito de fazer isso sempre e porque os homens não podiam fazer o mesmo, tudo pra amolecer o meu pai e me poupar de algum comentário mais rude dele. Dava pra sentir, na conversa, que os dois faziam um esforço considerável pra não me magoar e isso era bom, já que tudo demandaria um certo tempo de se acostumar.
Meu pai fez mais algumas perguntas, se mostrou interessado, disse que o cabelo cortado com máquina era mais fácil de cuidar, de pentear e que finalmente estava bom, estava bonito. Aí, depois de uma pausa de uns minutos ele coçou a cabeça, esperou que minha mãe saísse da sala e me perguntou sussurrando:
- Quero que você saiba que eu gostei. Mas me diga uma coisa, meu filho: você vai sair assim na rua?
Aí eu vi que ele não tinha gostado nadinha. E que o amor é que estava falando mais alto. Todo o tempo.