Logo
quando cheguei a Florianópolis fui trabalhar na Rua Conselheiro Mafra, bem no centro
da cidade. A rua tem muito comércio, vendedores ambulantes e muita gente
passando o tempo todo. Um dia eu estava na portaria do meu prédio olhando o
movimento, depois do almoço, e vi um pai ensinando a filha, cega, a caminhar
sozinha na rua. Ela com uma bengala branca e ele, andando ao seu lado e segurando
em seu braço, ia dando as instruções, falando com ela, acho até que contavam os
passos e ele a orientava em uma linha reta imaginária.
Dava
pra perceber o carinho com que ele falava com a menina, como ele orientava a
sua caminhada e como pegava no seu ombro e a colocava na direção certa, parando
nos degraus, mostrando com os pés e a bengala como ultrapassar os obstáculos.
Eu
mal consegui trabalhar depois disso. Fiquei um tempão pensando em como devia
ser duro para um pai fazer aquele trabalho, mesmo entendendo que ele mesmo deveria
saber que aquilo era o melhor para a filha, já que ela poderia andar sozinha um
dia e ser independente ao menos no que ele pudesse ajudar. Mas eu ainda ficava
imaginando que o pai na verdade queria mesmo era não sair do lado da filha e
que sua vontade talvez fosse ficar com ela durante todo o dia, andando ao lado
dela pra sempre, deixando o próprio trabalho de lado, a vida em suspenso por
causa da filha. Pra mim era tudo muito triste e pra mim era inimaginável que
ele um dia ficaria tranquilo imaginando a menina andando sozinha pelas ruas,
mesmo com todo o seu ensinamento.
O
fato é que fiquei com aquelas cenas na cabeça uns bons dias, até que numa tarde
eu vi o mesmo homem, ajudando outra pessoa cega, um rapaz desta vez. Ele fazia
os mesmos movimentos, segurava do mesmo jeito o menino pelo braço e falava
perto do seu ouvido, tudo igual ao que eu tinha visto naquele outro dia. E eu o
vi novamente outras vezes depois disso, com outras pessoas, até com duas juntas,
e percebi que ele era um instrutor profissional e que, ainda melhor, nenhum
daqueles alunos era seu filho, o que pra mim era um grande alento, já que não
se tratava, como eu pensei, de uma provação entre pai e filho, daquelas de
cortar o coração da gente.
Então
eu passei a admirar o tal instrutor. Mesmo de longe eu o via com seus alunos e
sempre tinha um sentimento fraterno para com ele, como se agradecesse o
trabalho que ele fazia em prol do ser humano, em prol de melhorar a vida de
alguém. E pensei que essas pessoas estão por aí, invisíveis, anônimas, fora das
luzes e dos palcos, fazendo o seu papel, com a sua bela e especial vocação,
como se fossem simples pessoas vivendo no meio de nós.
Sinto
que muitas vezes na vida eu também quis ter alguém que me pegasse o braço e me
orientasse nos caminhos. Que me ensinasse a contar os meus passos pra eu saber
a distância que tem as coisas, as ruas e me auxiliasse nos obstáculos a serem
transpostos. Seria bom se todo mundo tivesse uma pessoa assim na vida, um instrutor
que ajudasse e que ensinasse mesmo as pessoas a caminhar. Que nos momentos de
escolhermos os caminhos na vida a gente ligasse pra ele e ele viesse mostrar as
ruas, as opções, os atalhos, as melhores trilhas para chegarmos ao nosso destino.
Quando
não conseguimos ver direito as coisas, as situações na nossa vida com clareza e
com equilíbrio, penso que parecemos cegos de verdade nestas circunstâncias e que
precisaríamos nessa hora talvez de um instrutor que nos pegasse pelo ombro e nos
levasse a escolher o melhor para nós mesmos, enfim.
De
vez em quando eu ainda vejo o meu amigo instrutor andando pelo centro com os
seus alunos. E sempre fico parado olhando pra ele. Como não consigo descolar dele
aquela imagem de pai, quando o vi com sua aluna na primeira vez, gosto sempre
de imaginar que de alguma maneira ele é, sim, pai daquelas pessoas. Elas devem
ter muito a agradecer a ele. E eu também.