sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Meu Pai


Sempre ouvi preces de santos famosos que diziam ser bem mais importante compreender que ser compreendido. Custei muito a entender isso, mas depois, num certo momento da vida me pareceu algo muito simples.
Meu pai não teve pai. A figura do pai tradicional, educador e repressor ele nunca soube ser. Mas desde cedo foi meu amigo, mesmo quando eu nem sabia o que era isso. Sempre foi o meu primeiro apoiador e incentivador. Ainda adolescente, quando me apresentava pra ajudar nas tarefas pesadas ele sempre dizia que o meu negócio era caneta, não martelo e chave de fenda. Quando eu casei e fui morar longe ele sentia saudade, mas ficava escolhendo as palavras pra me dizer isso de um jeito que eu não me sentisse culpado ou mesmo triste.
Me lembro de muitas vezes quando ele chegava do trabalho de noitinha, parar o futebol na rua convidando todo o meu time pra ir na padaria tomar sorvete. Outras vezes entrava rápido em casa e logo voltava de calção pra entrar na nossa pelada. Muitos amigos me diziam que queriam ter um pai como o meu.
Quando pequeno meu pai catava esterco de vaca ou de cavalo e, junto com seu inseparável amigo Zoiudo, batia de porta em porta, ou melhor, de jardim em jardim, pra vender o adubo, revirando a terra e regando as plantas em seguida. “Serviço completo” eles diziam.
Uma vez meu tio, irmão da minha mãe, levou meu pai pra Vila Belmiro, pra conhecer as instalações do Santos e ir com o time até o estádio e entrar em campo com a delegação. Na concentração, em volta da mesa de pingue-pongue meu pai foi despachando todo mundo, até que o jovem Pelé soube pelo meu tio que ele tinha sido campeão no Exército. Aí, o negão juntou as raquetes, as bolas e a rede da mesa e jogou tudo do terceiro andar da concentração, dizendo do seu jeito um “pô, aqui você não ganha de mais ninguém, pô”, e depois caiu na risada com os outros jogadores.
Muitas vezes meu pai ajudou conhecidos e também desconhecidos dando roupas quando sabia que eles iam fazer entrevista de emprego. Aos amigos ele dizia que não fossem na firma com aquela camisa, e logo surgia com uma sua. E quem ele nem conhecia apenas entrava em casa e saía com uma roupa pra dar pro cara. Uma vez eu vi ele chegar pro almoço sem os sapatos, os quais havia dado a um sujeito que viu na lanchonete e que estava todo arrumado, mas com um sapato todo velho que chamava a atenção. Ele disse pra minha mãe que o homem ia visitar a filha que não via há muito e que não podia ir todo elegante com aquele sapato velho.
Por muitos anos seguidos meu pai detestou o Djavan. Mesmo a gente sendo fã do cara, tocando as músicas dele, nada. E quando tinha oportunidade gostava de dizer que ele parecia um punguista de trem, deixando a gente até com raiva. Um dia ele ouviu a música Retratos da Vida e quando soube que era o Djavan cantando tudo mudou na sua pirraça com o músico. E quando a gente pegava o violão perto dele, de pronto já vinha a pergunta se a gente ia tocar a “minha música”.
Há uns meses meu filho disse que ficou chocado quando meu pai contou pra ele que o seu primeiro bolo de aniversário foi só depois de casado com minha mãe. Em compensação, disse que o avô também falou dos muitos passeios de cavalo que fez, ainda menino, com minha avó pelos arredores do bairro da Abolição, onde moravam.
Com pouco tempo da sua partida eu já estou cheio de saudades dele. Do seu jeito, das suas histórias, da sua teimosia, da sua postura de árbitro de futebol quando a gente assistia aos jogos juntos na tevê. Ele até fez o curso, mas não seguiu. Apitava amadoristicamente, mas com toda a seriedade que o seu uniforme impecável exigia. Sim porque ele não era juiz. Ai de quem o chamasse assim. Ele era árbitro. Ponto.
Sei que essa saudade vai me acompanhar sempre porque eu gosto de senti-la e quero mesmo que seja assim. Uma saudade companheira, uma saudade cheia da presença dele. Das frases, dos causos, das manias, das tiradas. Eu compreendo o meu pai. Compreendo a vida que ele teve. Compreendo com todo meu amor. Porque o amor compreende tudo.
Daqui uns anos, quando a minha saudade já não for tão lúcida nem tão viçosa, intuo que minha calma chegará com a visão da sua fisionomia serena e paciente, como a me convidar. A melhor coisa que pode acontecer a alguém é ter o próprio pai, em lugar especial, a lhe esperar, pra lhe dizer que está tudo bem. Em paz.