Sempre ouvi preces de santos famosos que diziam
ser bem mais importante compreender que ser compreendido. Custei muito a
entender isso, mas depois, num certo momento da vida me pareceu algo muito
simples.
Meu pai não teve pai. A figura do pai
tradicional, educador e repressor ele nunca soube ser. Mas desde cedo foi meu
amigo, mesmo quando eu nem sabia o que era isso. Sempre foi o meu primeiro
apoiador e incentivador. Ainda adolescente, quando me apresentava pra ajudar
nas tarefas pesadas ele sempre dizia que o meu negócio era caneta, não martelo
e chave de fenda. Quando eu casei e fui morar longe ele sentia saudade, mas
ficava escolhendo as palavras pra me dizer isso de um jeito que eu não me
sentisse culpado ou mesmo triste.
Me lembro de muitas vezes quando ele chegava do
trabalho de noitinha, parar o futebol na rua convidando todo o meu time pra ir
na padaria tomar sorvete. Outras vezes entrava rápido em casa e logo voltava de
calção pra entrar na nossa pelada. Muitos amigos me diziam que queriam ter um
pai como o meu.
Quando pequeno meu pai catava esterco de vaca ou
de cavalo e, junto com seu inseparável amigo Zoiudo, batia de porta em porta,
ou melhor, de jardim em jardim, pra vender o adubo, revirando a terra e regando
as plantas em seguida. “Serviço completo” eles diziam.
Uma vez meu tio, irmão da minha mãe, levou meu
pai pra Vila Belmiro, pra conhecer as instalações do Santos e ir com o time até
o estádio e entrar em campo com a delegação. Na concentração, em volta da mesa
de pingue-pongue meu pai foi despachando todo mundo, até que o jovem Pelé soube
pelo meu tio que ele tinha sido campeão no Exército. Aí, o negão juntou as
raquetes, as bolas e a rede da mesa e jogou tudo do terceiro andar da
concentração, dizendo do seu jeito um “pô, aqui você não ganha de mais ninguém,
pô”, e depois caiu na risada com os outros jogadores.
Muitas vezes meu pai ajudou conhecidos e também
desconhecidos dando roupas quando sabia que eles iam fazer entrevista de
emprego. Aos amigos ele dizia que não fossem na firma com aquela camisa, e logo
surgia com uma sua. E quem ele nem conhecia apenas entrava em casa e saía com
uma roupa pra dar pro cara. Uma vez eu vi ele chegar pro almoço sem os sapatos,
os quais havia dado a um sujeito que viu na lanchonete e que estava todo
arrumado, mas com um sapato todo velho que chamava a atenção. Ele disse pra
minha mãe que o homem ia visitar a filha que não via há muito e que não podia
ir todo elegante com aquele sapato velho.
Por muitos anos seguidos meu pai detestou o
Djavan. Mesmo a gente sendo fã do cara, tocando as músicas dele, nada. E quando
tinha oportunidade gostava de dizer que ele parecia um punguista de trem,
deixando a gente até com raiva. Um dia ele ouviu a música Retratos da Vida e quando
soube que era o Djavan cantando tudo mudou na sua pirraça com o músico. E
quando a gente pegava o violão perto dele, de pronto já vinha a pergunta se a
gente ia tocar a “minha música”.
Há uns meses meu filho disse que ficou chocado
quando meu pai contou pra ele que o seu primeiro bolo de aniversário foi só
depois de casado com minha mãe. Em compensação, disse que o avô também falou
dos muitos passeios de cavalo que fez, ainda menino, com minha avó pelos
arredores do bairro da Abolição, onde moravam.
Com pouco tempo da sua partida eu já estou cheio
de saudades dele. Do seu jeito, das suas histórias, da sua teimosia, da sua
postura de árbitro de futebol quando a gente assistia aos jogos juntos na tevê. Ele até fez o curso, mas não seguiu. Apitava amadoristicamente, mas com toda a seriedade que o seu uniforme impecável exigia. Sim porque ele não era juiz. Ai de quem o chamasse assim. Ele era árbitro.
Ponto.
Sei que essa saudade vai me acompanhar sempre
porque eu gosto de senti-la e quero mesmo que seja assim. Uma saudade
companheira, uma saudade cheia da presença dele. Das frases, dos causos, das
manias, das tiradas. Eu compreendo o meu pai. Compreendo a vida que ele teve. Compreendo
com todo meu amor. Porque o amor compreende tudo.
Daqui uns anos, quando a minha saudade já não
for tão lúcida nem tão viçosa, intuo que minha calma chegará com a visão da sua
fisionomia serena e paciente, como a me convidar. A melhor coisa que pode
acontecer a alguém é ter o próprio pai, em lugar especial, a lhe esperar, pra
lhe dizer que está tudo bem. Em paz.