domingo, 21 de fevereiro de 2016

Dona Ester


As duas enfermeiras estavam assumindo o plantão naquela noite e enquanto checavam os prontuários dos pacientes sob seus cuidados, traçavam o roteiro dos remédios a serem ministrados e a rotina da noite que apenas começava.
Manuseando as pranchetas com as fichas dos internos, de repente uma perguntou pra outra se ela já tinha conhecido a Dona Ester. Perguntou e diante da negativa da colega ela abriu um grande sorriso. A Dona Ester é muito legal, você tem que conhecer – disse aguçando a curiosidade da outra.
- É uma senhorinha bem tranquila, amável, que está sempre bem vestida, usa uma camisola que tem umas rendas na gola, fala sempre mansa e delicada. Está no 305. É uma coisa a Dona Ester – provocou.
Não disse mais do que isso e deixou no ar algo em suspenso, como se fosse a própria colega que tivesse que descobrir mais.
O plantão corria bem, tudo tranquilo, até que as duas enfermeiras se encontraram de novo na salinha do café. Já era alta madrugada e vários profissionais estavam lá, enquanto passava a ronda da limpeza, trocando o lixo e recolhendo as roupas de cama. No café as duas então conversavam tranquilas quando novamente surgiu a pergunta se já tinha estado com a Dona Ester.
- Menina! Eu conheci, sim, a velhinha. Que figura! – disse a enfermeira em tom de espanto.
- E aí, como foi? – pediu mais detalhes a outra.
Eu cheguei ao quarto dela com o maior cuidado – começou a enfermeira em sua narrativa. Primeiro porque não sabia se ela estava dormindo. Aí, fui chegando mais perto, devagar, e vi que ela estava me olhando desde que entrei. Então fui toda cordial, dizendo olá Dona Ester, tudo bem com a senhora? Aí ela me respondeu assim: Não vem com falsidade comigo, não! – na cara. Eu não gosto de gente falsa que vem com essa fala mansa pra cima de mim. Ficam nossas amigas e depois tratam a gente que nem um pacote, virando pra lá e pra cá nessa cama.
Pasma, a enfermeira então reparou que no prontuário da paciente mencionava o Alzheimer, embora não fosse esse o motivo de sua internação. Primeiro vocês vêm agradando e depois maltratam a gente – continuou a senhorinha, quando a enfermeira então, refeita do susto, passou a conversar tentando acalmar a situação. E lembrou que o pacote ao qual a dona Ester se referia devia ser a troca da fralda geriátrica.
A outra enfermeira, rindo da situação que ouvia no refeitório, disse que mal pode conter o riso quando conheceu a Dona Ester. Contou que na primeira vez que entrou no quarto dela a velhinha era uma vovozinha amável, toda receptiva aos remédios, cordial na hora de medir a pressão e a capacidade pulmonar, mesmo sendo no meio da madrugada. Só que na segunda vez que ela entrou no quarto, assim que disse bom dia, a resposta foi um passa-fora deste tamanho e sem nexo, que ela só pode rir, com pena da velhinha, mas achando toda a situação muito engraçada. Você não precisa falar assim comigo porque eu não vou te dar aumento nenhum de salário – contou a enfermeira. Foi assim que ela me recebeu uma vez. Eu entrava lá toda amável e ela só me esculachando – riram as duas.
Eu fiquei imaginando quantas histórias ótimas aqueles enfermeiros deviam ter sobre a Dona Ester. E toda vez que entrava um novo plantão eu perguntava sobre a Dona Ester ao profissional que cuidava da ala onde eu estava, quando fiquei de acompanhante da minha mãe.
Uma vez um deles, de nome Luciano, me disse que só ia me contar um caso porque eu disse que era pro meu blog. E assim foi. Uma vez ele estava preparando um remédio e quando veio com o copo d´água a Dona Ester disse que não ia tomar nada, remédio nenhum com ele. Começa assim – bradou a velhinha – primeiro vocês vêm ganhando a confiança e depois querem até dar banho na gente. Comigo não. No dia do meu exame tinha um homem me olhando da porta, um absurdo. Chega. Nenhum homem vai me ver pelada de novo neste hotel.
O enfermeiro então chamou uma colega e junto com ela deu os remédios e fez os procedimentos. Mais tarde o Luciano soube que a colega enfermeira, pra acalmar a Dona Ester e deixar o caminho livre pra ele, havia dito que ele era gay e que ela não precisava se preocupar que não tinha o menor problema que ele a visse sem roupa.
Ainda passei por gay – conformou-se o enfermeiro, me dizendo que depois daquele dia, mesmo quando ela não perguntava, ele mesmo se adiantava e dizia que era aquele enfermeiro gay da outra noite.
Uma noite dessas, em que ela estava minha amiga – contou o Luciano – ela disse que ia me dar um conselho. E pediu que eu não ficasse assim, dizendo que era gay pra todo mundo, pois podia me prejudicar. Aí, numa outra vez que eu disse que era gay ela me disse na lata que o problema era meu, porque ela não era a minha mãe e eu podia ser gay o quanto quisesse que ela não estava nem aí. Pode?
- Lembrando de mim ou não - completou - o fato é que ela foi ficando cada vez mais tranquila comigo e, nas nossas rápidas conversas, alternava entre elogiar e falar mal das enfermeiras mulheres, das camareiras e de todos os médicos do hospital.
- Do hospital, não, do hotel – rimos os dois.