Servidor Público do estado do Rio de Janeiro,
Leandro resolveu vender o violão e, num ímpeto, o anunciou na internet. Sua
mulher Viviane, um tanto perturbada com a decisão, se prontificou a vender umas
coisas também, a bicicleta talvez, tudo pra evitar que o marido se separasse
daquele instrumento que valia tanto pra ele.
O quadro de penúria do governo estadual vem
atingindo de forma cruel e irresponsável todo o conjunto dos servidores públicos.
Com salários atrasados, sem décimo terceiro, sem perspectivas, inclusive com o
antigo governador preso, o estado de calamidade propagado nas mídias só aponta como
saída o corte de gastos com o funcionalismo e a retirada de direitos dos
trabalhadores. Mera quimera festejada pela mídia e judiciário juntos.
O fato é que Leandro já não tinha a quem
recorrer e vender outros objetos da casa poderia fazer alguma falta e ser uma
atitude a ser lamentada no futuro. O violão foi um arroubo de cavalheirismo dele
e um sacrifício gentil em nome do bem estar do casal.
Mas Viviane procurava um outro jeito, pensava em
alternativas e nada lhe vinha à cabeça. Até que um comprador ligou e marcou de
ir ver o violão. Na entrada do shopping eles iriam se encontrar e fechar o
negócio. Foi então que bateu o desespero nos dois. Diante da perspectiva real
de venda do violão os dois titubearam, um escondendo do outro a ansiedade.
Viviane então propôs ao marido que se o comprador dissesse isso do violão, um
ai que depreciasse o instrumento, a venda estaria cancelada. Este seria o
acerto entre eles dois. O sinal divino de que a venda era mesmo a coisa certa a
fazer estaria no comportamento do comprador. Isso incluía até um pedido pra
baixar o preço ou algum tipo de pechincha, barganha ou desconto. Qualquer sinal
neste sentido era pra venda não se realizar. Ela estendeu a mão ao marido
dizendo um tenso “combinados?” e foram pro shopping.
Eu estava no mesmo shopping esperando minha irmã
que vinha direto do trabalho. De férias no Rio, com aquele calorão de sauna ao
ar livre, só mesmo marcando encontro num shopping com temperatura civilizada. A
partir do momento em que notei o casal se aproximando com um violão nas costas
foi que passei a acompanhar toda a história e, ao final, pedi que ambos me
contassem o que havia ocorrido antes de toda aquela cena da venda que eu acabava
de assistir.
A cena: assim que tirou da capa o belo violão
Yamaha com cordas de aço, tipo Folk, tudo nele brilhava. As cordas, as tarraxas,
os trastes, as cravelhas, o verniz, o fundo. Conforme eles viravam o violão pra
melhor visualização do possível comprador, mais ele reluzia e refletia aquele monte de
luzes das vitrines do shopping. Foi então que o rapaz franzino, rabo de cavalo
e calça xadrez passou a só elogiar a viola, dando início a um duelo torto e
improvável, daqueles que a vida nos põe à frente poucas vezes e que por isso
mesmo custamos a entender o real sentido de tudo, da música, do dinheiro, da
amizade, do amor.
De um lado o vendedor se esmerava em apontar os
“defeitos” do violão, que era duro de tocar, que as cordas eram afastadas
demais do braço, que semitonava às vezes e, do outro lado, o rapazote,
inabalável, não cansava de elogiar o instrumento, dizendo que nada daquilo era problema.
Tudo ao contrário! Os sorrisos eram nervosos de parte a parte, a tensão por
demais palpável, até que a mulher tomou a frente:
– Olha, nós não vamos vender não, tá? Meu marido
adora essa viola, não sei como ele vai ficar sem ela e você nos desculpe, mas
eu não vou deixar ele vender mais. Nós vamos dar um jeito, sei lá, nessa
situação toda, dinheiro a gente arruma depois e vamos ficar com o nosso violão.
O rapaz, diante dos olhos vermelhos da mulher, começou
dizendo que não tinha problema algum e que achava mesmo que o homem não devia
vender, que a viola era linda demais, que a gente se apega mesmo ao instrumento
e que na vida, quando as coisas estão ruins, é sinal de que vão melhorar logo e
logo. Em seguida deu um abraço em cada um e se despediu:
– Vocês são um casal bem bacana. Dá pra ver que
são parceiros mesmo. Se cuidem e cuida bem dele – disse apontando pro Yamaha.
Na minha cabeça a música mais linda do mundo
começou a tocar no exato instante em que Leandro, de viola nas costas e
abraçado a sua parceira de vida, saiu pelo corredor em direção à rua. Ela
enxugava as lágrimas e ele beijava o seu rosto sem parar.
Quando minha irmã chegou era eu que estava
sentindo o mar atravessando os meus olhos míopes e alegres, como Djavan costuma
cantar.