Meu filho Daniel tinha medo
de escuro. Eu sei que as crianças normalmente têm medo de escuro, de ficar
sozinhas no escuro e tal. Até adulto tem. Mas eu sempre dava uma amenizada,
mostrando que no escuro o único medo é de se tropeçar em algo e se machucar.
Mais nada.
A gente morava numa casa,
tipo sobrado, e no térreo ficava a garagem. Então eu entrava com o carro por
uma porta de metal que desenrolava do teto, dessas de loja, com travas que só
abrem por dentro, e saía por uma passagem lateral, uma porta tipo residencial
comum. Ao baixar a porta da garagem era preciso acender a luz senão ficava tudo
um breu.
Quando a gente ia sair de
carro eu levava o Daniel comigo pra me ajudar a abrir a garagem. Eu ia tateando
no escuro até chegar ao interruptor de luz, mas outras vezes ia direto pra
porta grande e isso significava mais tempo no escuro até que a luz de fora
entrasse. Nessas horas eu sentia que ele ficava nervoso, só esperando a porta
se abrir e, definitivamente, aquilo me incomodava.
Pensei que poderia ser algo
excessivo, incomum aquele medo todo. Não sabia de onde vinha aquilo e acho que
por isso mesmo eu sempre preferia a pouca luz, talvez até forçando a barra e,
mesmo andando pela casa, eu não acendia todos os cômodos por onde passava na
intenção de que ele se acostumasse.
Até que um dia ele ganhou
uma espada. Era de um super-herói da época, chamado Thundercat. Era toda cinza,
grande, tinha a logo do personagem perto do cabo e, o mais legal, ela se
acendia toda. Desde a silhueta do Thunder até a ponta oposta, ou seja, por toda
a parte que seria a lâmina, tudo acendia na cor vermelha e até o rosto do
menino ficava vermelho quando ele a segurava com as duas mãos na frente do peito.
A espada era mesmo uma
beleza. Mas o maior poder dela foi que, de uma hora pra outra, meu filho passou
a não ter mais medo de escuro. Mais que isso, ele passou a preferir o escuro
pra poder brincar com a espada e vê-la brilhar ainda mais. Mesmo de dia, quando
a casa estava clara, lá ia ele pra garagem com sua espada do Thundercat. À
noite então a espada era o máximo e a gente podia ver onde ele estava só pela
luzinha vermelha iluminando as paredes.
Na garagem tinha um armário
desmontado e uma das peças dele tinha um espelho grande. Me lembro de muitas
vezes ficar da porta da garagem, meio escondido, olhando o Daniel fazer as suas
evoluções com a tal espada na frente daquele espelho. É que, com a duplicação
da imagem, ou seja, do vermelho da espada, o que poderia sugerir duas espadas
acabava por criar um efeito mágico, até difícil de explicar. Enquanto ele
“lutava” a gente via a espada em movimento no espelho e seu brilho tremeluzia,
tracejando o ar em pequenos lampejos de vermelho. Por onde a lâmina passava riscava
a escuridão com uma linha pontilhada que logo desaparecia. E aquilo era muito muito
legal, tanto pro filho, brincando, quanto pro pai, só olhando.
Todo mundo, os amigos e a
família deram muitas risadas ouvindo o Daniel contar o que ele fazia com a tal
espada. E quando alguém mencionava o escuro ele dizia que era o melhor lugar
pra se brincar, que a espada se multiplicava ali e que ele acordava de noite só
pra ver se a espada estava mesmo quietinha, ali do lado dele.
Os super-heróis da minha
infância, hoje eu sei, serviam para nos fazer acreditar no bem e na justiça,
nos davam coragem, nos faziam acreditar na amizade entre os homens e entre as
nações, coisas que nos faziam crescer e entender o mundo. Pode até ser
romantismo meu ou das pessoas da minha idade. E pode ser também que os meninos
de hoje em dia nem se liguem nisso. Normal.
Mas como não ser grato a um
super-herói que fez o seu filho perder o medo de escuro? Como não reconhecer
naquele herói moderno, com cara de gato, vindo sei lá de onde, do futuro talvez,
o ídolo que ele queria imitar, com sua espada que brilhava e o defendia?
De uma hora pra outra eu entendi
que aquele era o meu herói também e, às vezes, quando me lembro dessa história,
quando visualizo o Daniel andando pela casa escura, empunhando a sua coragem
toda acesa de vermelho, fico pensando que lá no fundo eu também queria ganhar
uma espada. Uma espada que fizesse desaparecer os medos que eu tenho. De
escuro, da crueldade, o medo dos homens.