sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O Espelho

 

Folheando a revista naquela manhã, o senhor Tadashi levou um susto quando viu a foto estampada na página central. Mal fechou a publicação sobre os joelhos, no minuto seguinte já estava em Hiroshima, alguns meses depois da infame explosão atômica.

Tadashi morava com os pais e a irmã mais nova na localidade de Kabe, fora da área central da cidade, mas que, como toda a província, sofreu com os horrores daquele ataque, principalmente nos anos seguintes, vivenciando os desdobramentos dos efeitos da radiação sobre a cidade e todo o país.

Depois da morte dos pais, ainda no primeiro ano do bombardeio, o menino descobriu que toda a família tinha sido dizimada. Alguns parentes no mesmo dia do ataque e, os demais, nos meses seguintes. Ele lembrou que sua mãe, antes de morrer, o teria chamado, possivelmente para contar dessas mortes, mas talvez não teria tido coragem, diante do abandono ao qual o filho estaria fadado, junto com sua irmã menor.

Como a maioria das famílias japonesas, os Tadashi também eram muito unidos. Todos os membros mais velhos tinham uma certa responsabilidade na criação e educação dos mais novos, não importando o grau de parentesco. Talvez seja por essa razão que Tadashi sempre sentiu a grande responsabilidade que tinha pela irmã, por cuidar dela, defendê-la e educá-la.

No início, as autoridades do país tentaram encontrar algum parente vivo que pudesse ficar com os irmãos, mas, sem sucesso, eles foram levados para um centro de atendimento improvisado, onde, diante do caos geral instalado naquele país, ao menos tinham onde comer e onde encontrar abrigo para a noite.

Por muitos meses, anos até, os dois irmãos vagavam pelas ruas irreconhecíveis de Hiroshima revirando lixos e restos, à procura de algo que pudesse ser vendido ou trocado. Um desalento extremo.

Quando completou 9 anos, Tadashi foi levado para um campo distante da cidade, onde a radiação teria tido um impacto menor e ali ajudava no plantio de arroz, entre outras coisas. Os recrutados, entre adultos e crianças, saíam cedinho, ainda de madrugada, em um caminhão barulhento e fumacento, e só retornavam à noite. Alguns deles tinham moradia para onde voltar. Os demais, como Tadashi e a irmã, iam direto para o abrigo.

Às vezes, nos intervalos de descanso, sua mãe vinha falar com ele. Dizia que ele estava cuidando bem da irmã e que tudo aquilo ia passar e logo a vida ia melhorar. O garoto, por sua vez, sempre encarou esses diálogos com muita naturalidade, mesmo sabendo que não eram pessoas de verdade. Assim como elas apareciam, desapareciam sem problema algum. Suas tias também vinham, vez em quando, para orientar e avisar dos perigos, sempre incentivando a sua amorosidade em cuidar da irmã pequena, diante de todas as dificuldades.

As dificuldades a serem vencidas eram um mar diante do menino Tadashi. Então, no mesmo mês em que sua irmã morreu ele se inscreveu em um programa da Cruz Vermelha que trazia pessoas para o Brasil. O Brasil era a melhoria de vida sobre a qual sua mãe falara, anos antes. O jovem japonês ganhou então uma nova vida, um recomeço, longe da paisagem dos escombros que ainda lhe vinham recorrentemente à memória.

Erguendo, pois, a revista das pernas naquela manhã, o velho Tadashi agora hesita em voltar à página da fotografia novamente. Olha em volta, confere a tranquilidade da lanchonete e enfim procura uma luz adequada, pra melhor observar aquela imagem da sua infância.

Um menino de uns 7 anos, sujo, cabelos empoeirados, dorso curvado, carrega uma criança nas costas, envolta em um pano esmaecido, amarrado ao seu corpo, com o desenho de pequenas flores meio apagadas na barra. Ele toca a fotografia com as pontas dos dedos, levemente, cerimoniosamente, como que acariciando o papel.

– O tecido de flores da minha mãe – diz baixinho – Eu nem lembrava que era nele que eu carregava a minha querida Izumi, tão pequena. E esse menino parece tão triste, tão triste, minha nossa – repetia escondendo o rosto.

Tadashi naturalmente não lembrava dessa imagem. Jamais a tinha visto, nem visto a si mesmo naquelas condições, nas ruas, naquele cenário terrível e desolador. Em um esforço de memória conseguiu intuir que em um dia longínquo, um fotógrafo de um jornal qualquer estava fazendo uma matéria e veio falar com ele. Tentou trocar algumas palavras mal entendidas, apontou para a máquina fotográfica e se afastou, na certa pra tirar a foto de longe.

A crueza daquela imagem e a tristeza daquele menino o comoviam. As memórias que, por sobrevivência, haviam sido sufocadas, emergiam agora em lágrimas sentidas que vinham dos olhos de um menino que jamais chorou em toda a sua vida.

– Essa foto para mim é um espelho. Eu me sinto diante de um espelho. Um espelho que mostra quem eu sou de verdade. E eu sou esse menino. Levo minha irmã às costas. Eu sou esse menino e sempre serei, pois que nunca deixei de o ser.

Com a foto da revista aberta em cima da mesa, chora agora o senhor Tadashi.

Chora por seu país.

Chora por seus pais.

Chora por sua querida irmã Izumi.

Chora por todos nós!