Dentre as várias histórias dolorosas, que todo mundo tem, envolvendo dentistas, eu tenho uma que não é dolorida. Pelo contrário, é até divertida.
Quando eu disse isso a um amigo, dia desses, ele duvidou de mim no ato, e acrescentou que aquele era o tipo de afirmação que, obrigatoriamente, devia ser seguida da própria narrativa, sob pena de pairar, vadia no ar, alguma sombra, mesmo que mínima, de conter nela uma deslavada mentira.
– Como assim? História divertida sobre dentista? Só se ele teve um infarto e morreu com o motor nas mãos, ainda ligado, durante a consulta, haha!
Eu concordei e perguntei, em seguida, se ele tinha um tempinho. Então sentamos em uma das cadeiras do lado de fora de uma pequena pastelaria, no Centro de Floripa, pra que eu pudesse contar o meu causo.
Logo depois que eu entrei naquele novo plano dental, escolhi uma clínica perto do meu trabalho, de modo que eu pudesse ser atendido com mais facilidade, nos lugares por onde eu já circulava, no entorno do terminal de ônibus. Assim fiz e depois que eu preenchi a ficha de entrada logo dei início aos tratamentos, até porque o tempo de ausência em consultórios dentários sempre nos cobra alto algum dia.
O laudo inicial dava conta de que eu tinha de substituir umas coisas danificadas aqui e ali, umas coroas, atrás e dos lados, e ia precisar de uma boa limpeza no final.
Tudo começou a ficar estranho quando, já nas primeiras consultas, a minha dentista demonstrou uma habilidade um tanto descalibrada, que eu diria até atabalhoada. Ou seja, tratava-se de uma pessoa genuinamente desastrada, dessas que esbarra nas coisas pelo caminho, derrubando louças das mesas, peças das prateleiras, algumas vezes até percebendo os danos causados, mas, na maioria delas, nem se dando conta do estrago deixado em sua passagem.
Essa qualidade, por mim notada desde o início, se apresentava peculiarmente da seguinte forma: toda vez que a dentista se virava pra pegar alguma ferramenta na mesinha ao lado, quando ela se virava de volta, pra continuar o trabalho, dava uma cotovelada em mim. Algumas vezes era no ombro, mas, quase sempre, era na minha cara mesmo. Um belo esbarrão com o cotovelo em movimento, até voltar à posição de trabalho, em frente à minha boca, ali paralisada e aberta.
Dependendo da força empreendida pela moça ela até pedia desculpas. Isso no início, quando sorria sem jeito e falava alguma coisa sobre a sua desastrice, se é que se pode inventar palavras em uma crônica. Dizia ela:
– Ops, me desculpe. Que estabanada eu sou. Nossa. Doeu? Você está bem?
Algum tempo depois, entretanto, ela passou a só balbuciar um singelo:
– Ops, esbarrei de novo em você.
Curioso é que após umas semanas de tratamento ela passou a dizer só o “Ops” mesmo, sem qualquer formalidade, e depois dava uma risadinha de lado, o que me levava muitas vezes a pensar que ela estava fazendo aquilo tudo de propósito, tirando sarro da minha cara e continuando com aquelas cotoveladas sem o menor dó. Aquela dentista do diabo.
Muitas vezes eu mesmo ria, quando via ela também rindo da pancada mais recente. Mas sempre ficava na minha cabeça se ela era do bem ou do mal, por tantas vezes que me mandava, sem pena, o braço na cara. Eu só não me aborrecia de verdade com tudo aquilo porque, sempre que eu contava pra alguém, esse alguém ria dela, ou de mim, ou da situação enfim, e até brincava comigo, dizendo que ia marcar uma consulta com a dentista só pra ver como eram as tais cotoveladas e dar umas risadas depois.
O fato é que aquilo não combinava com o conceito da clínica, que gozava de excelente reputação junto aos pacientes, seja pelo trabalho cuidadoso, seja pelas instalações e os equipamentos, os mais modernos e tecnológicos. Tanto a atendente como a própria dentista usavam roupões cuidadosamente desinfetados, com toucas, luvas e aqueles óculos plásticos enormes, que até dificultavam o seu reconhecimento fora do ambiente do consultório.
Foi assim que, uma vez, eu estava no aeroporto, e ela veio falar comigo. Percebendo que eu não a reconhecia, ela disse o seu nome e emendou:
– Sou a sua dentista, lá da clínica tal.
– Ah, sim. Poxa, desculpe. Com toda aquela indumentária de trabalho, fica difícil de eu reconhecer você, assim, de traje comum.
– Não tem problema. Eu entendo. Só vim cumprimentar mesmo. Meu voo sai logo, logo.
Neste instante, meu colega de sindicato, que ia viajar comigo, retornou do caixa eletrônico e se juntou a nós. Eles se apresentaram, trocando os nomes, dizendo pra onde iam viajar e eu acrescentei que ela era a minha dentista, dona Celeste.
Ele olhou pra mim, depois pra ela e soltou a bomba:
– Ah, é ela que te dá aquelas cotoveladas no rosto?
Pronto, aquele foi o meu erro. Essa minha boca grande.
Ela olhou desconcertada, sem saber o que dizer, naturalmente, e eu disse alguma coisa, desejando boa viagem, ou boas férias, não sei bem.
Durante as despedidas eu lembro que fiquei um tanto constrangido por aquele momento, já imaginando pedir desculpas quando voltasse na próxima consulta. Mas, confesso que fiquei intrigado com a sua reação, logo adiante, quando percebi, enquanto ela se afastava, que o seu rosto trazia aquele mesmo sorrisinho, velho conhecido meu, sarcástico e maroto, de menino que fez alguma estripulia longe dos olhos dos pais.
– Eu conheço aquele risinho raposeiro – disse comigo mesmo.
– O quê? – perguntou meu amigo.
– Nada, não. Só estou pensando uma coisa aqui.
Aquele sorrisinho.
Dona Celeste.
Sei não!