domingo, 28 de fevereiro de 2021

A Dentista

 

Dentre as várias histórias dolorosas, que todo mundo tem, envolvendo dentistas, eu tenho uma que não é dolorida. Pelo contrário, é até divertida.

Quando eu disse isso a um amigo, dia desses, ele duvidou de mim no ato, e acrescentou que aquele era o tipo de afirmação que, obrigatoriamente, devia ser seguida da própria narrativa, sob pena de pairar, vadia no ar, alguma sombra, mesmo que mínima, de conter nela uma deslavada mentira.

– Como assim? História divertida sobre dentista? Só se ele teve um infarto e morreu com o motor nas mãos, ainda ligado, durante a consulta, haha!

Eu concordei e perguntei, em seguida, se ele tinha um tempinho. Então sentamos em uma das cadeiras do lado de fora de uma pequena pastelaria, no Centro de Floripa, pra que eu pudesse contar o meu causo.

Logo depois que eu entrei naquele novo plano dental, escolhi uma clínica perto do meu trabalho, de modo que eu pudesse ser atendido com mais facilidade, nos lugares por onde eu já circulava, no entorno do terminal de ônibus. Assim fiz e depois que eu preenchi a ficha de entrada logo dei início aos tratamentos, até porque o tempo de ausência em consultórios dentários sempre nos cobra alto algum dia.

O laudo inicial dava conta de que eu tinha de substituir umas coisas danificadas aqui e ali, umas coroas, atrás e dos lados, e ia precisar de uma boa limpeza no final.

Tudo começou a ficar estranho quando, já nas primeiras consultas, a minha dentista demonstrou uma habilidade um tanto descalibrada, que eu diria até atabalhoada. Ou seja, tratava-se de uma pessoa genuinamente desastrada, dessas que esbarra nas coisas pelo caminho, derrubando louças das mesas, peças das prateleiras, algumas vezes até percebendo os danos causados, mas, na maioria delas, nem se dando conta do estrago deixado em sua passagem.

Essa qualidade, por mim notada desde o início, se apresentava peculiarmente da seguinte forma: toda vez que a dentista se virava pra pegar alguma ferramenta na mesinha ao lado, quando ela se virava de volta, pra continuar o trabalho, dava uma cotovelada em mim. Algumas vezes era no ombro, mas, quase sempre, era na minha cara mesmo. Um belo esbarrão com o cotovelo em movimento, até voltar à posição de trabalho, em frente à minha boca, ali paralisada e aberta.

Dependendo da força empreendida pela moça ela até pedia desculpas. Isso no início, quando sorria sem jeito e falava alguma coisa sobre a sua desastrice, se é que se pode inventar palavras em uma crônica. Dizia ela:

– Ops, me desculpe. Que estabanada eu sou. Nossa. Doeu? Você está bem?

Algum tempo depois, entretanto, ela passou a só balbuciar um singelo:

– Ops, esbarrei de novo em você.

Curioso é que após umas semanas de tratamento ela passou a dizer só o “Ops” mesmo, sem qualquer formalidade, e depois dava uma risadinha de lado, o que me levava muitas vezes a pensar que ela estava fazendo aquilo tudo de propósito, tirando sarro da minha cara e continuando com aquelas cotoveladas sem o menor dó. Aquela dentista do diabo.

Muitas vezes eu mesmo ria, quando via ela também rindo da pancada mais recente. Mas sempre ficava na minha cabeça se ela era do bem ou do mal, por tantas vezes que me mandava, sem pena, o braço na cara. Eu só não me aborrecia de verdade com tudo aquilo porque, sempre que eu contava pra alguém, esse alguém ria dela, ou de mim, ou da situação enfim, e até brincava comigo, dizendo que ia marcar uma consulta com a dentista só pra ver como eram as tais cotoveladas e dar umas risadas depois.

O fato é que aquilo não combinava com o conceito da clínica, que gozava de excelente reputação junto aos pacientes, seja pelo trabalho cuidadoso, seja pelas instalações e os equipamentos, os mais modernos e tecnológicos. Tanto a atendente como a própria dentista usavam roupões cuidadosamente desinfetados, com toucas, luvas e aqueles óculos plásticos enormes, que até dificultavam o seu reconhecimento fora do ambiente do consultório.

Foi assim que, uma vez, eu estava no aeroporto, e ela veio falar comigo. Percebendo que eu não a reconhecia, ela disse o seu nome e emendou:

– Sou a sua dentista, lá da clínica tal.

– Ah, sim. Poxa, desculpe. Com toda aquela indumentária de trabalho, fica difícil de eu reconhecer você, assim, de traje comum.

– Não tem problema. Eu entendo. Só vim cumprimentar mesmo. Meu voo sai logo, logo.

Neste instante, meu colega de sindicato, que ia viajar comigo, retornou do caixa eletrônico e se juntou a nós. Eles se apresentaram, trocando os nomes, dizendo pra onde iam viajar e eu acrescentei que ela era a minha dentista, dona Celeste.

Ele olhou pra mim, depois pra ela e soltou a bomba:

– Ah, é ela que te dá aquelas cotoveladas no rosto?

Pronto, aquele foi o meu erro. Essa minha boca grande.

Ela olhou desconcertada, sem saber o que dizer, naturalmente, e eu disse alguma coisa, desejando boa viagem, ou boas férias, não sei bem.

Durante as despedidas eu lembro que fiquei um tanto constrangido por aquele momento, já imaginando pedir desculpas quando voltasse na próxima consulta. Mas, confesso que fiquei intrigado com a sua reação, logo adiante, quando percebi, enquanto ela se afastava, que o seu rosto trazia aquele mesmo sorrisinho, velho conhecido meu, sarcástico e maroto, de menino que fez alguma estripulia longe dos olhos dos pais.

– Eu conheço aquele risinho raposeiro – disse comigo mesmo.

– O quê? – perguntou meu amigo.

– Nada, não. Só estou pensando uma coisa aqui.

Aquele sorrisinho.

Dona Celeste.

Sei não!


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Entrevista com Deus

 

Como faz todas as quartas-feiras, a secretária enviou a mensagem com as informações sobre a matéria daquela semana. A pauta trazia, ou deveria trazer, as instruções sobre o entrevistado, o tema a ser explorado, além de dicas sobre o interesse do jornal naquela matéria. Essa estava diferente.

O repórter leu a mensagem, sorriu duvidando e ligou de imediato pra redação, perguntando se aquilo era alguma brincadeira. Ao ouviu a resposta da secretária, dizendo que não sabia de nada e que o chefe não estava na redação, ele decidiu ir direto ao local marcado, pra não perder mais tempo.

Já na entrada do parque, de longe avistou em um dos bancos aquele homem de meia idade, de terno levemente azulado, que lhe sorriu de pronto, acenando e fazendo sombra nos olhos com a mão.

– Bom dia... Então o senhor é...?

– Deus.

– Ok. Isso é o que estava escrito na minha pauta. E o que mais?

– Nada mais. Só isso. Você não queria me entrevistar? Eis-me aqui.

– Então... eu não tenho a menor ideia de qual seja o objeto dessa pauta, dessa entrevista. Só me mandaram pra cá e eu vim. Mas não tenho perguntas, digamos, especificamente.

– Você vive dizendo aos quatro cantos que queria um cara a cara comigo, que tem sérias questões a serem discutidas, olho no olho, e agora não tem perguntas?

– É que...

– Ok. Entendi. Você quer que eu toque fogo naquela árvore? Quer uma nuvem de gafanhotos? Que eu faça desaparecer toda a água do lago, ali atrás?

– Não. Não é isso.

– Melhor, me dê a sua mão.

– O quê?

– A sua mão, dê aqui.

Pegando as mãos do repórter entre as suas, o homem fez um gesto com a cabeça na direção de uma senhora, caminhando no gramado, ali ao lado. O rapaz se virou e viu a si mesmo, de terno levemente azulado, indo de encontro à idosa. Abraçado terna e azuladamente por ela, reconheceu a sua avó querida e os dois, de mãos dadas, saíram caminhando na direção da floresta, já no limite do parque, até desaparecerem atrás das árvores.

Com as costas das mãos renteando os olhos, o repórter disse baixinho “Vó Julia”.

– Então é assim que tudo termina? – perguntou.

– Humm, eu diria que é assim que começa. Mas asseguro que ainda está um tanto longe esse dia.

Depois de um considerável e reflexivo silêncio. O rapaz retomou:

– O que o senhor quer de mim?

– Preciso “querer” alguma coisa?

– Dizem que, para Deus, tudo tem um objetivo.

– E qual o seu objetivo?

– O senhor vai me responder sempre com outra pergunta?

– Seria, por acaso, pra fazer você pensar?

– E eu preciso pensar?

– Você não é humano? Pois então, eu faço questão de alguma proximidade com o homem justamente por sua capacidade de pensar. Das demais criaturas eu não peço mais do que nascer, comer e morrer.

– Mas, eu não entendo. Qual a razão disso tudo? De toda a criação e da existência, enfim?

– Alvíssaras! Agora chegamos à nossa pauta. Não é assim que vocês, jornalistas, dizem? Finalmente!

O homem então suspirou fundo. Em seguida fez um pedido para que o rapaz largasse a caneta e fechasse o bloco, enquanto anunciava uma breve consideração sobre a questão “a razão de tudo”.

– Meu rapaz, compreender a vida e a existência faz toda a diferença. Aquele sentimento de fazer o bem é coisa da alma. Não se pode explicar, mas dá um sentido, um bem-estar com o mundo. Compreender o outro é estar no outro. É comungar os sentimentos do mundo. Um maestro certamente perceberá mais profundamente a genialidade harmônica de Mozart, assim como um arquiteto identificará com mais apuro as linhas geométricas e as perspectivas de um Niemeyer. Da mesma forma um pintor melhor apreciará as imagens sugeridas de Monet e um editor se deleitará estilística e metaforicamente com a verve de Saramago. Saber o bem que o bem faz, nos dá a capacidade de entender o mundo. E Deus.

– O que é esse bem, de que as pessoas tanto falam?

– No universo tudo gira, tudo roda, tudo vai e tudo volta. As órbitas dos planetas nos dão a possibilidade de rever, reconsiderar e reaprender. Se as moléculas da água reagem à música, o que dizer então do nosso corpo energético, multiconectado a todos os elementos, seres e estímulos? Porém, assim como o bem faz bem, o mal nos prende aos mais dolorosos males, numa escalada de desespero e angústia que interrompe o raciocínio e a razão. É uma nuvem carregada que precisa da eternidade para poder chover.

O homem fez uma pausa. Olhou para as árvores ao lado, como se estivesse ouvindo o que elas diziam, e continuou.

– Uma carteira é deixada no meio de uma praça. Um homem passa, encontra, tira o dinheiro e se desfaz dela. Uma cena simples de se imaginar. Num certo momento ele se dá conta de que nem olhou os documentos da carteira. Ele então volta e a procura. Nesse instante ele se depara com o seu melhor amigo, desesperado por ter perdido a carteira. Envergonhado, ele o ajuda a procurar sem dizer nada.

– Mas fazer o certo só porque a carteira é do amigo não muda o mundo – interrompeu o jornalista.

– Exato. Não muda o mundo – pontuou. E prosseguiu:

– Em outra suposição a carteira é perdida na praça. Acontece que todos sabem que no quiosque da segurança os policiais estão vendo tudo pelas câmeras. Então, qual a atitude da pessoa que encontra a carteira, sabendo que está sendo vista? A presença de Deus faz toda a diferença.

– A punição dele seria ser descoberto e apontado como tal.

– Embora alguns profetas de ocasião digam o contrário, Deus não existe pra punir. Não tem punição. A questão é a roda, a órbita, o retorno. O homem é que pune o homem. Da mesma forma que só quem pode salvar o homem é outro homem. Não precisa de câmera, nem ser amigo. Triste do Deus cuja criação só faz o bem por medo da punição. Ao contrário, é preciso de alguma forma conhecer o bem e o bem que o bem faz. Isso muda tudo. Muda as ações, a perspectiva, as tais moléculas da água e até o tom ciano do firmamento e dos nossos ternos levemente azulados. O problema é que, se não há essa consciência tem que voltar e aprender. A única escola do homem é a vida, e outra vida, e outra mais. Em verdade, eu digo a você que muitos passarão a existência sem saber que houve um Shakespeare e que seus versos medidos flertavam com as manhãs e com o cantar da cotovia. Outros jamais ouvirão Mozart e sua Serenata Para Sopros, a trilha de um fole sonolento que, a certo momento, é alçado por um único oboé que o enleva e supõe o próprio céu.

– Sinto que eu deveria estar anotando tudo isso.

– Muitos, por fim, carentes de racionalidade, mal saberão discernir entre a sua própria paz e as guerras que compraram para si ao longo do caminho. Ou quiçá serão gratos pelo alimento que tiveram a sorte de conseguir, diariamente, somente pela contingência de terem nascido neste ou naquele endereço.

As folhas faziam um bailado sinuoso dentro da floresta próxima, chamando a atenção de quem passava. Então, os dois homens se viraram e avistaram duas silhuetas que se aproximavam. Eram eles próprios duplicados. O homem e o repórter. Os dois caminhavam juntos e trajavam ternos idênticos. Ambos de uma cor indefinível, de tons jamais vistos. Levemente azulados.

– Senhor, algum dia o homem vai compreender Deus? – titubeou o jovem jornalista.

– A humanidade, quando pensa em Deus, pensa somente na salvação, na chegada. Não no caminho. Tudo salva o homem, se o homem quer a salvação. A salvação não é a monotonia de uma vida eterna. Aqui pra nós, até a vida eterna é muito tempo para ser feliz. Salvação é o sentimento de paz que podemos dividir uns com os outros. Salvação é salvar a alma coletiva. É livrá-la de todos os males e mantê-la imaculada, dia após dia, sob os cuidados vigilantes da generosidade.

O homem então se levantou, fechou os dois botões do paletó e, ao se curvar na direção do rosto do rapaz, disse em tom de despedida.

– Eu te dou a minha paz. Fique em paz.

Uma bicicleta azul clara, de rodas brancas, encostada num dos bancos do parque, surgida não se sabe de onde, foi a condução que levou o homem até o limite da visão do repórter. Ele ainda ficou ali, pensativo, repassando certas frases, visualizando algumas posturas e o gestual do homem. Depois arrumou as suas coisas na mochila e foi caminhando até a saída do parque.

No dia seguinte, um pacote o aguardava na redação do jornal. Sem remetente, sem selo e sem carimbo algum de entrega. Ele o levou até a sua baia e, ao abrir, sentiu bambear as pernas a ponto de precisar sentar. Afastou totalmente a tampa da caixa e então pôde ver, com todos os detalhes, um belo e impecável terno.

Resplandecente.

De uma cor indefinível.

E um tom jamais visto.

Levemente azulado.