quinta-feira, 25 de março de 2021

Josevaldo

 

Assim que eu entrei no elevador, a porta quase se fechando, notei que o vizinho havia apertado o botão de segurança e, de pronto, agradeci. A depender do andar em que se vai, essas subidas rápidas só dão tempo mesmo de falar do clima ou de alguma manchete de jornal.

Meu vizinho optou pela segunda, pela notícia que começava a ganhar o condomínio, e disparou:

– Já soube do Josevaldo?

– Não. O que houve com ele?

Segurando a porta do elevador, já no seu andar, o homem contou que o rapaz tinha pedido demissão e que os moradores estavam fazendo uma vaquinha pra ajudá-lo nessa nova empreitada.

Eu não entendi muito bem a história, mas também não tinha tempo de ficar perguntando e conversando ali, com o vizinho segurando a porta do elevador.

Dois dias depois eu encontrei com o Josevaldo na garagem do prédio e ele me contou os seus planos. Sempre chamando todo mundo por doutor, o auxiliar de limpeza parecia feliz com a mudança de vida que estava prestes a se iniciar.

– Eu vou voltar pro meu Ceará, doutor. Achei que esse dia nunca ia chegar. Minha mãe até chorou no telefone quando eu disse que estava decidido dessa vez. Eu gosto do Rio de Janeiro, essa cidade é linda e tal, a gente tem trabalho, mas, quase tudo que eu ganho eu gasto pra poder sobreviver aqui. Então, essa oportunidade, eu tenho de pegar.

– Mas, enfim, que oportunidade é essa, rapaz?

– Meu pai tem uma oficina de conserto de móveis, de sofá, mesas e cadeiras, no fundo do terreno lá em casa. E de uns anos pra cá aumentou muito o trabalho. Ultimamente ele tem até comprado algumas máquinas, trocado outras que estão velhas, tudo pra poder dar conta de tanto pedido. Parece que, de repente, doutor, todo mundo resolveu reformar os móveis de casa e meu velho passou até a construir mesmo, do zero, muitos deles, o que dá ainda mais lucro.

– Poxa, que bom isso. Eu tenho mesmo lido notícias sobre o surgimento e o aumento de pequenas empresas, no Nordeste todo, de todos os ramos imagináveis. E com isso, muita gente voltando pra terrinha.

– Sim, meu tio é o artista da família. Ele é santeiro, sabe? Mas está com o meu pai lá, ajudando.

– Como assim, santeiro?

– Ele faz santos de barro e de madeira. Escultura. Cria os moldes, pinta certinho. Já ganhou até uns prêmios lá nos concursos das igrejas. Um dia desses ele me contou que, numa noite, já fechando o quartinho onde ele trabalha, o São Benedito que ele estava finalizando murmurou que era pra eu voltar pra casa, que a hora era essa. Quando eu soube disso, fiquei todo arrepiado. Ninguém sabia que eu estava pensando naquilo. Eu não tinha falado com ninguém, doutor!

E o auxiliar de limpeza continuou a sua prosa alegre, enfatizando que, daquele dia em diante, até passou a conseguir juntar um dinheirinho, todo mês um pouquinho, já com o olho na viagem de volta e nos planos para o futuro.

Josevaldo era muito querido, um sujeito bacana mesmo. E só o seu sotaque, junto com o modo de falar ligeirinho e as palavras que usava, já fazia com que a gente começasse qualquer conversa com um sorriso no rosto. Ele fazia a limpeza do prédio junto com mais dois auxiliares e, no final da tarde, quem quisesse lavar o carro era só deixar o limpador de para-brisa levantado e o dinheiro no banco do motorista.

Flamenguista doente, quando recebeu a camisa do clube na sua festa de despedida, não conseguiu se conter e seus olhos se encheram d’água. Nem o bolo, nem os salgadinhos, e nem mesmo a graninha com a vaquinha gorda arrecadada fizeram tanto sucesso quanto a camisa do rubro-negro.

O discurso emocionado, e todo sem jeito, do Josevaldo deu a todos ali a nítida dimensão do quão grande é a necessidade que o homem tem de retornar à sua terra natal, às suas raízes. E muitos de nós, do Sul maravilha, naquela hora entendemos também como é difícil a decisão de sair de sua casa, deixar a família, os seus, pra ir ganhar a vida em outras paragens, longe demais para fazer uma visita, simplesmente quando dói o peito.

– Pela imperativa razão de ganhar a vida, perde-se uma boa parte dela – comentou a senhora do 501.

No meu canto, durante alguns dias, eu só pensava na cena e nas palavras da Compadecida, de Suassuna saudade:

“[O sertanejo] suporta as maiores dificuldades numa terra seca. Passa sem sentir pela infância. Acostuma-se ao pouco pão e muito suor. Na seca come macambira. Bebe o sumo do xique-xique. Passa fome. E quando não pode mais, reza. E quando a reza não dá jeito, vai se juntar a um grupo de retirantes que vai tentar viver no litoral. Humilhado, derrotado, cheio de saudade.

“E logo que tem notícia da chuva, pega o caminho de volta. Anima-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revê a sua terra dá graças à Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé.”


Assim foi que vimos Josevaldo partir alegre para o seu Ceará.

O ano era 2007.

E a esperança tinha o nome de Luís Inácio Lula da Silva.



segunda-feira, 8 de março de 2021

Tia Mariquinha


Foi precisamente no almoço de domingo que a família foi surpreendida com aquela frase. Surgida no meio da conversa, nos espaços de silêncio que ninguém sabe bem como acontecem, a sentença veio em alto e bom som, pra que não houvesse dúvida.

– Eu não vou me vacinar!

No mesmo instante deu-se o burburinho ininteligível. Todo mundo na mesa argumentando ao mesmo tempo, cada um do seu jeito, no seu tom de voz e todos perguntando o motivo daquele desatino, àquela altura.

Fato é que aquilo virou uma feira, até que alguém mais calmo pediu uma explicação, tentando propor minimamente uma conversa, enquanto uma das sobrinhas saiu porta afora e foi chamar o pai. Quando ambos voltaram o clima já estava calmo, dando lugar a uma incômoda desolação, causada justamente pela frase da Tia Mariquinha que, por sua vez, parecia ter fincado sua sentença em rocha vulcânica, como se fosse a espada do Rei Artur, para não mais se afastar dela.

Tia Mariquinha era a matriarca daquela família. Mesmo sendo avó e bisavó, trazia de muitos anos o Tia já incorporado ao nome. Assim era conhecida pelos vizinhos e amigos, e, com o Tia sempre à frente, até as netas tinham dificuldades pra chamá-la pelo nome. Era a avó no tratamento e Tia Mariquinha quando se referiam a ela. Quando perguntavam se uma delas era a neta da Tia Mariquinha, esta respondia que sim.

A família morava numa vila simpática, no bairro da Tijuca, típica dos anos 1930. Uma ruazinha só de casas de dois andares, com um grande portão na entrada, que dava acesso à rua e garantia a segurança das residências. Tia Mariquinha morava com a filha, o genro e duas netas e, na casa em frente, um outro filho morava também com sua família.

O almoço já tinha se acabado, ainda mais depois do anúncio feito pela matriarca. Mas a cada momento um parente vinha pra perto, tentar tirar dela o motivo da decisão. Perguntavam se ela tinha medo da vacina, se foi alguma coisa que viu ou mesmo algo que alguém falou na tevê.

– Não tá com medo de virar jacaré não, né, vó? – perguntou uma das meninas.

– Não é nada disso. A vó não é idiota a esse ponto.

– Então mamãe, diz pra gente a razão disso. Não pode ser um “eu não vou vacinar” e ficar por isso mesmo.

– Não se preocupem. Eu estou bem. Só não quero me vacinar. Só isso.

E voltava o mesmo burburinho de antes, cada um tentando tirar a espada da pedra, usando os seus próprios métodos, todos eles inócuos.

A família não falava de outra coisa. O filho veio perguntar se era medo da picada da agulha, a nora por sua vez disse que ia com ela até o posto, que era tudo muito seguro, e a neta falou que as avós das amigas já tinham se vacinado e estavam muito bem, aliviadas por estarem imunes ao vírus.

Alguns dias depois a sobrinha preferida dela fez uma ligação pela internet, só pra falar com a Tia Mariquinha sobre a vacina. Ela morava na Bélgica com o marido e justificava a regra de que a preferida é sempre aquela que mora longe.

As duas conversaram por um longo tempo. Falaram do clima em Bruxelas, das diferenças civilizatórias em relação aos cuidados durante a pandemia, os pronunciamentos do governo e do ministro da saúde belgas, e até de São Nicolau, o Papai Noel deles, que leva os presentes no dia 6 de dezembro, conforme a tradição local.

Até que, em certo momento, tendo a sobrinha retornado à pergunta principal com toda a cautela, a tia surpreendeu:

– É que todo mundo vai saber a minha idade, filha.

– Como assim? Acho que não entendi direito, tia.

– Eles vão saber que eu estou indo vacinar no grupo da idade tal, e vão saber a minha idade. É muito ruim isso. Eu não quero me expor não. Ninguém precisa saber a minha idade. Isso é uma coisa pessoal, íntima.

Ao mesmo tempo aliviada por não ser nada mais grave, mas também preocupada em como resolver o imbróglio, a sobrinha disse que ia falar com os pais, que moravam na vila também, e ia dar um jeito naquela pendenga familiar pra que, finalmente, Tia Mariquinha concordasse em ser vacinada.

É verdade que a família ficou um tanto inconformada com aquele motivo vago. Uns soltaram de pronto um “eu não acredito nisso!”, indignados. Outros, por sua vez, até gostaram da vaidade ainda pungente da idosa, mas todos ao final relevaram as condições da matriarca e, a pedido da sobrinha preferida, engendraram um plano pra resolver a questão vacina.

No dia combinado lá vai a Tia Mariquinha, toda de preto, levada pelo filho, para a missa de sétimo dia de uma amiga do colégio de freiras. Ela desce os degraus de casa direto para o carro e, com o semblante triste, sai pelo portão da vila, ganhando a rua.

A princípio, os familiares apenas confirmavam para os vizinhos a tal missa fúnebre. Depois de um tempo, contudo, pediam segredo e acabavam narrando toda a história verdadeira, sempre contando com a concordância deles em respeitar a vontade da Tia Mariquinha, tão amável e querida na vizinhança.

No almoço de domingo a avó deu os detalhes da vacinação. Disse que a aplicadora se assustou ao vê-la toda de preto e que outras enfermeiras vieram olhar mais de perto. Contou ainda que foi tranquilo tomar a vacina e que na hora de fazer a ficha teve de explicar o luto para a enfermeira responsável pelo posto. No final ela mesma riu de toda a situação que acabou criando, pois admitiu que teve até de mentir por causa dessa confusão toda.

Sentindo o ambiente cômico da mesa do almoço, uma das netas aproveitou pra fazer troça com a avó.

– Na segunda dose vais ter de “matar” outra colega do colégio Imaculada. Sabe disso, né?

Com o garfo em riste e um matreiro sorriso no rosto, ela devolveu:

– Sim. Mas depois a gente pensa nisso!