Assim que eu entrei no elevador, a porta quase se fechando, notei que o vizinho havia apertado o botão de segurança e, de pronto, agradeci. A depender do andar em que se vai, essas subidas rápidas só dão tempo mesmo de falar do clima ou de alguma manchete de jornal.
Meu vizinho optou pela segunda, pela notícia que começava a ganhar o condomínio, e disparou:
– Já soube do Josevaldo?
– Não. O que houve com ele?
Segurando a porta do elevador, já no seu andar, o homem contou que o rapaz tinha pedido demissão e que os moradores estavam fazendo uma vaquinha pra ajudá-lo nessa nova empreitada.
Eu não entendi muito bem a história, mas também não tinha tempo de ficar perguntando e conversando ali, com o vizinho segurando a porta do elevador.
Dois dias depois eu encontrei com o Josevaldo na garagem do prédio e ele me contou os seus planos. Sempre chamando todo mundo por doutor, o auxiliar de limpeza parecia feliz com a mudança de vida que estava prestes a se iniciar.
– Eu vou voltar pro meu Ceará, doutor. Achei que esse dia nunca ia chegar. Minha mãe até chorou no telefone quando eu disse que estava decidido dessa vez. Eu gosto do Rio de Janeiro, essa cidade é linda e tal, a gente tem trabalho, mas, quase tudo que eu ganho eu gasto pra poder sobreviver aqui. Então, essa oportunidade, eu tenho de pegar.
– Mas, enfim, que oportunidade é essa, rapaz?
– Meu pai tem uma oficina de conserto de móveis, de sofá, mesas e cadeiras, no fundo do terreno lá em casa. E de uns anos pra cá aumentou muito o trabalho. Ultimamente ele tem até comprado algumas máquinas, trocado outras que estão velhas, tudo pra poder dar conta de tanto pedido. Parece que, de repente, doutor, todo mundo resolveu reformar os móveis de casa e meu velho passou até a construir mesmo, do zero, muitos deles, o que dá ainda mais lucro.
– Poxa, que bom isso. Eu tenho mesmo lido notícias sobre o surgimento e o aumento de pequenas empresas, no Nordeste todo, de todos os ramos imagináveis. E com isso, muita gente voltando pra terrinha.
– Sim, meu tio é o artista da família. Ele é santeiro, sabe? Mas está com o meu pai lá, ajudando.
– Como assim, santeiro?
– Ele faz santos de barro e de madeira. Escultura. Cria os moldes, pinta certinho. Já ganhou até uns prêmios lá nos concursos das igrejas. Um dia desses ele me contou que, numa noite, já fechando o quartinho onde ele trabalha, o São Benedito que ele estava finalizando murmurou que era pra eu voltar pra casa, que a hora era essa. Quando eu soube disso, fiquei todo arrepiado. Ninguém sabia que eu estava pensando naquilo. Eu não tinha falado com ninguém, doutor!
E o auxiliar de limpeza continuou a sua prosa alegre, enfatizando que, daquele dia em diante, até passou a conseguir juntar um dinheirinho, todo mês um pouquinho, já com o olho na viagem de volta e nos planos para o futuro.
Josevaldo era muito querido, um sujeito bacana mesmo. E só o seu sotaque, junto com o modo de falar ligeirinho e as palavras que usava, já fazia com que a gente começasse qualquer conversa com um sorriso no rosto. Ele fazia a limpeza do prédio junto com mais dois auxiliares e, no final da tarde, quem quisesse lavar o carro era só deixar o limpador de para-brisa levantado e o dinheiro no banco do motorista.
Flamenguista doente, quando recebeu a camisa do clube na sua festa de despedida, não conseguiu se conter e seus olhos se encheram d’água. Nem o bolo, nem os salgadinhos, e nem mesmo a graninha com a vaquinha gorda arrecadada fizeram tanto sucesso quanto a camisa do rubro-negro.
O discurso emocionado, e todo sem jeito, do Josevaldo deu a todos ali a nítida dimensão do quão grande é a necessidade que o homem tem de retornar à sua terra natal, às suas raízes. E muitos de nós, do Sul maravilha, naquela hora entendemos também como é difícil a decisão de sair de sua casa, deixar a família, os seus, pra ir ganhar a vida em outras paragens, longe demais para fazer uma visita, simplesmente quando dói o peito.
– Pela imperativa razão de ganhar a vida, perde-se uma boa parte dela – comentou a senhora do 501.
No meu canto, durante alguns dias, eu só pensava na cena e nas palavras da Compadecida, de Suassuna saudade:
“[O sertanejo] suporta as maiores dificuldades numa terra seca. Passa sem sentir pela infância. Acostuma-se ao pouco pão e muito suor. Na seca come macambira. Bebe o sumo do xique-xique. Passa fome. E quando não pode mais, reza. E quando a reza não dá jeito, vai se juntar a um grupo de retirantes que vai tentar viver no litoral. Humilhado, derrotado, cheio de saudade.
“E logo que tem notícia da chuva, pega o caminho de volta. Anima-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revê a sua terra dá graças à Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé.”
Assim foi que vimos Josevaldo partir alegre para o seu Ceará.
O ano era 2007.
E a esperança tinha o nome de Luís Inácio Lula da Silva.