Os filmes de
terror de antigamente começavam assim: era uma noite escura, uma noite de muita
chuva, os perigos estavam em todos os lugares, espreitando os caminhos e os
becos sinistros. Na minha escola tinha uma narrativa parecida que se somava a
esta primeira. Era assim: Com todos os raios e trovões, na porta do cemitério,
uma senhora de cabelos brancos em profusão... com uma faca na mão... passava
manteiga no pão! E todo mundo ria junto, depois do suspense.
O carro era
pequeno e já bem velhinho. O caminho prometia ser longo e cheio de incertezas.
Chovia há dias na cidade e as previsões eram de que ia continuar assim até o
destino final. Mas mesmo sendo uma grande distância, no início todas as
esperanças são as melhores possíveis e o astral está sempre lá em cima.
Já tinham sido
decorridas umas boas horas e o rapaz que dirigia o veículo resolveu confirmar o
trajeto e também se o rumo estava mesmo correto. No banco ao lado, a mulher e,
atrás, o filho de uns cinco anos, que dormia e acordava de tempos em tempos.
Ele baixou os
vidros e perguntou ao homem na saída do posto de gasolina, à beira da estrada:
– Boa noite,
amigo. Essa estrada aqui vai pra Salvador?
– O quê? Salvador?
– Sim, ela vai
até Salvador?
– Uau, vai
sim. Mas, olha, tá longe pra ca...lho!
O motorista
deu uma risadinha, ante o espanto do informante, agradeceu e voltou a fechar o
vidro. O plano era seguir até mais um pouco e, quando caísse a noite, não se
demorar muito pra, pelo menos, jantarem com calma e dormirem em algum local
minimamente confortável para o menino.
Mas a chuva
estava mesmo forte. As previsões do tempo, que sempre erram as suas projeções,
naqueles dias resolveram acertar e em cheio. Era raio, era vento, e vinham de
todos os lugares, estalando na lateral do carro e dificultando até a
visualização das poças e dos buracos, que também com a chuva sempre resolvem
surgir, descolando pedaços do asfalto e logo se tornando em uma nova ameaça.
Os limpadores,
frenéticos, pareciam que a qualquer momento sairiam voando do vidro pra uma das
laterais da pista, mato a dentro. Com o passar do tempo, cada vez ficava mais
escuro e com cada vez menos carros a dividir a rodovia, o que acaba por reduzir
os parâmetros do espaço de cada via, fazendo com que o motorista perca a noção
exata de sua localização no centro da linha de rodagem. Enfim, chega uma hora
que a pessoa nem sabe direito onde está trafegando ou se está perto ou longe do
acostamento.
No mesmo
instante em que o rapaz reduziu a velocidade, uma caminhonete, das grandes, que
ia à frente fez o mesmo. Talvez fosse uma medida puramente de segurança, uma
vez que a estrada ficava definitivamente deserta e a noite, infinitamente mais escura.
Mas nessa redução, quando o carro de trás chegou bem pertinho, foi possível ler
o adesivo que ia na picape, bem acima do para-choque. Estava escrito “Salvador
– Olodum – Pelourinho”. Pronto, era a tão almejada bússola no meio do nevoeiro.
Ele olhou para
a mulher e, sem dizer palavra, intuiu um assentimento que, de pronto, já estava
sendo posto em prática. Ou seja, a ideia era seguir aquela caminhonete de perto
e usar da sua robustez como escudo para o restante da viagem. Era muito mais
fácil para o carro grande e alto encontrar o melhor caminho naquelas condições.
Isso era fato. E para o carro pequeno que ia atrás seria uma forma de angariar
alguma chance de sucesso, enquanto a chuva tratava de chicotear a todos, sem
distinção.
Os quilômetros
foram se somando. A chuva aumentava, diminuía, o vento idem e a atenção estava
toda nas luzes das lanternas da caminhonete, principalmente a de acionamento do
freio, pois era o momento de buscar também a frenagem e seguir pertinho, mas sempre
com segurança.
Em alguns
momentos, parecia que a picape ia parar, de tanto que diminuía a velocidade.
Mas logo em seguida tornava a acelerar e aí o carrinho seguidor se esforçava
para não a perder de vista, o que seria um risco de grandes montas. Nessas
horas a mulher levava a cabeça bem pra frente, junto do para-brisa, como se
pudesse ver melhor daquele modo e ajudasse o marido na missão.
Andaram assim
os dois veículos por muitos quilômetros, muitas horas. Até que uma luz, que até
então não tinha piscado, piscou. Era a seta para direita. E agora? O motorista
não via nada à frente e a sensação era de que se o outro ia entrar em algum
lugar, sair da estrada, o que fosse, ele ia junto, e tenho dito. A mulher fez o
sinal positivo com o polegar e eles ligaram a seta também. Para surpresa de
ambos a caminhonete desligou a seta e foi em frente, seguida por eles novamente
que, de algum modo intuíram que a parada escolhida, um posto de gasolina que
viram passar, não era a mais adequada. Àquela altura, vai saber!
Dali a mais
uns poucos quilômetros, novamente a seta pra direita. Dessa vez eles não
ligaram a sua e ficaram esperando pra ver se era mesmo uma parada ou um novo blefe.
Ali já havia um início de desconfiança acerca do intuito da picape, pois se era
uma necessidade de parar mesmo ou algum teste para o carro de trás.
Finalmente,
pararam todos. A caminhonete buscou uma vaga bem perto da entrada da loja do posto
e, assim que pararam, seus ocupantes saíram do carro às pressas e entraram na
loja. Lá de dentro passaram vigiar o carro que os seguiu, até que seus
ocupantes também entrassem na loja.
Uma sensação
de alívio envolveu toda a cena da entrada na loja. Pai, mãe e o filho foram
celebrados pelo casal da picape que, nessas alturas já riam de si mesmos,
assustados com a perseguição na estrada, temendo algo que definitivamente
aquela família jamais faria com eles.
– Vocês deram
um susto da porra na gente, viu? – disse sorrindo a mulher da caminhonete.
– Olha, depois
de muito tempo seguindo vocês, a gente começou a pensar nisso também. Que vocês
poderiam ficar encucados com tudo aquilo – respondeu o rapaz, com o filho no
colo e estendendo a mão ao outro motorista.
– Sabe como é,
a gente saindo do Rio de Janeiro, já vem assustado. Então, repare, um carro
seguindo a gente esse tempão todo, só pode ser assalto. Aquela picape chama
muito a atenção.
– Sim, e acho
que vocês têm toda a razão. O Rio é assim mesmo.
– Mas, escute,
por que vocês seguiram a gente mesmo?
– Cara, a
gente estava com medo da chuva e da escuridão na estrada. Aí vimos que vocês
são de Salvador, que tinha lá o adesivo do Olodum, aí a gente pensou: deve ser
gente boa, vamos atrás deles. Se tiver buraco a gente desvia junto, se tiver
água a gente evita junto, e assim vamos. Mas, desculpe por assustar vocês.
– Rapaz, então
vocês são do Rio e estão indo conhecer Salvador? – perguntou a mulher.
– Não. A gente
é do Rio mas já mora em Salvador. Meu filho veio pra cá com a minha sogra. A
gente veio depois, de carro, e agora estamos voltando juntos.
– Caramba, veja
como é a nossa cabeça. Pensamos que era assalto e no fim estávamos ajudando
vocês. Que mundo lindo, meu rei.
– E vocês são
do Olodum mesmo? Olha que o Olodum acabou sendo o nosso Salvador nessa viagem.
– A gente faz
só a assessoria deles. E a divulgação também. Pronto, já no fim de semana vocês
vão com a gente no camarote. Vai ter um show em Stela Maris e eu quero ver
vocês dois lá com a gente. Fechado?
Não só aquela
conversa varou todo o jantar, como também no dia seguinte saíram cedinho os
dois carros, juntos pela estrada, em direção a Salvador.
Nos dois
veículos as frases parecidas. Cada qual com o seu indefectível sotaque:
– Esses
cariocas são gente legal da porra, né não?
– Olha, esses
baianos se não existissem, alguém ia ter de inventar. Eita, gente boa. Da
porra, como eles falam.
A chuva tinha
parado e fazia um lindo dia de sol.