terça-feira, 24 de setembro de 2024

O Retrato

 

A campainha tocou e ele se deu conta de que estava nervoso com aquele reencontro. Havia cerca de um ano que o casal estava separado. Não houve briga, discussão, nada. Nem algo que se possa apontar como grande motivo para tudo ter acontecido da forma como aconteceu. Quando perguntado pelos amigos mais próximos, todos pegos de surpresa, diga-se, nenhum dos dois era capaz de listar qualquer causa satisfatória. “Isso não está indo a lugar algum”, diziam, segurando um suspiro na garganta.

De repente, num final de tarde, tomaram juntos a decisão e ela, já no dia seguinte, fechou silenciosamente a porta do quarto, desceu as escadas até a cozinha e se foi, deixando o chaveiro na mesa da sala. Ao lado das chaves, o retrato do Tarantino, com um osso na boca, parecia tentar entender o que se passava.

Reconhecendo o caminho, os móveis e a velha janela aberta para a palmeira da praça, ela foi entrando. Depois se sentou, pondo a bolsa no chão.

– Então, como está a vida?

– Na mesma. Muito trabalho e pouco dinheiro. E você?

– Minha mãe está um pouco doente.

– Grave?

– Ainda não sabemos. O Tarantino?

– Na casa de um amigo. O filho ficou louco por ele. Aí deixei ficar lá um tempo. Ele anda meio triste nessa casa.

Enquanto ele pegava um copo d’água e oferecia à visita, passou pelo corredor e trouxe uma sacola grande.

– Ah, as fotos...

– Sim, as fotos. Tenho olhado muito elas. Desde o dia que você falou que queria vir buscar algumas.

– Tem muita coisa aí. Dá pra ver que tá abarrotada.

Em pouco tempo o chão e a mesa ficaram cheios de fotos. De todos os tamanhos, lugares, gente conhecida e outras nem tanto. Algumas esmaecidas e outras avermelhadas pelo tempo, mas eram fotos de toda uma vida, ou melhor, de duas. Eles iam olhando, separando as que ela queria levar, comentando os vestidos, os destinos, os caminhos, tal qual a Marisa canta.

– Nossa, tô vendo que aqui tem muito mais foto minha do que sua.

– Mas é claro, a pessoa é linda desse jeito, tem que ter muito mais foto sua. Olha essa aqui, com esse vestido? Amarelo e rosa. Todo florido. E ainda por cima de tênis. Olha isso!?

Foi ouvir essa frase e o choro dela veio como um flúmen, sem força para ser contido. Ele sentou no chão, ao lado da sua cadeira e ela foi se recompondo. Em seguida disse que lembrava nitidamente daquele vestido, do dia, do lugar, de tudo. Ele disse “eu também”, mas falou tão baixinho que ela nem ouviu.

– Não vou conseguir ficar longe desses retratos.

– Nem eu – disse ele, agora com voz firme.

– O que a gente faz da nossa vida?

– O que a gente fez da nossa vida!

– Ficar sem você me fez ver que sozinha eu não vou a lugar algum.

– E a gente usou essa frase pra decidir por caminhos separados.

– Se eu não vou a lugar algum, então que seja com você.

Ainda segurando o retrato dela, de vestido florido com o tênis, eles se abraçaram longamente. Depois de um bom tempo, aos poucos, foram enxugando os olhos.

– Como foi em Paris?

– Faltou você! E como foi em Buenos Aires?

– Faltou você também.

– Vou buscar as minhas coisas. De tardinha estou de volta.

– Vou buscar o Tarantino. Ele está morrendo de saudades.

E os dois, juntos, desceram as escadas.