São duas as
cores que jamais alguém me verá usando: a preta e a cinza. Não tenho uma única
peça de roupa nessas cores e desde a infância sempre gostei das camisas
coloridas. Quanto mais, melhor.
A camisa roxa
do título era uma das minhas preferidas à época. Eu deixava pra usá-la em
ocasiões especiais e tinha até um cinto da mesma cor, compondo um traje que
ficava, além de completo, algo alinhado e elegante. Ao menos era assim que eu
me sentia.
No trabalho,
fui convocado para uma reunião importante que seria realizada numa igreja
famosa do Centro do Rio de Janeiro. Os dois arquitetos é que iriam participar
representando o Instituto e eu ia apenas como assessor de comunicação, para
então produzir uma matéria sobre os assuntos ali tratados, que diziam respeito
a obras de restauração e manutenção daquele imóvel histórico.
Claro que
imediatamente decidi que iria com a camisa roxa, passadinha e nos conformes.
Chegando na
igreja, uma enorme mesa estava preparada com os nomes dos participantes. De um
lado os padres, o representante da Cúria, os enviados da Congregação à qual a
igreja era filiada, alguns senhores responsáveis pela contabilidade daquela
instituição religiosa e do outro lado as equipes técnicas diretamente ligadas
às obras que seriam finalmente projetadas e mais tarde realizadas, tudo sob a
supervisão técnica do Iphan, o órgão federal de proteção ao patrimônio
histórico, onde eu trabalhava.
A seguir, uma
pequena plateia tomou assento na audiência, em cadeiras um pouco afastadas da
grande mesa, de onde passaria a acompanhar a reunião com grande atenção. Eu
deixei o gravador na mesa e fui me sentar junto dela, com o meu bloquinho de
anotações.
Passaram
apenas alguns minutos e logo foram chegando os personagens principais da
reunião. Da parte dos religiosos, já citados, era fácil identificá-los por suas
vestimentas eclesiais e suas posturas solenes. Cada um que entrava e ia em
direção à mesa, parava pra saudar a assembleia e eventualmente cumprimentar alguém
ali mais próximo.
Eu estava na
primeira fila e como o trajeto até a mesa passava necessariamente na minha
frente, o primeiro padre a entrar logo me estendeu as mãos em cumprimento.
Surpreso com o gesto, eu me levantei de súbito e retribuí a deferência à
altura, com o rigor que o cenário pedia. Logo a seguir, um outro religioso, de
terno preto e sua indefectível gola de padre, talvez por ter visto a cena
anterior, também parou na minha frente e propôs trocarmos um efusivo aperto de
mãos com direito a um efêmero afago nos braços, um tanto desconcertante.
Não sei quanto
tempo durou a formação da mesa para o início dos trabalhos. Só sei que todos
que entravam e passavam na frente da plateia, paravam pra falar comigo, em
cumprimentos amistosos. Eu não entendia bem a razão daquilo, e me limitava apenas
a cumprimentar de volta.
Passando o
último dos convidados para a reunião, tão logo eu o cumprimentei, deixei cair o
meu bloco de anotações que estava no braço da cadeira. Quando abaixei pra
buscá-lo notei que todos naquela audiência, atrás de mim, vestiam... roxo. Era um
mesmo e reluzente pano triangular, tipo uma túnica, que caía dos ombros até a
cintura e tinha o mesmo e exato tom de roxo da minha camisa.
Aturdido,
tentei parecer o mais natural possível. Peguei o bloco no chão e voltei ao meu
lugar. Daí em diante eu fui anotando as informações pra fazer o meu texto para
o informativo. Além das datas e dos nomes, tinha também as etapas da
restauração, os custos e, por fim, os espaços que iriam, forçosamente, ficar
interditados durante as obras, tanto dentro da nave principal da igreja como
também nos acessos, no adro e nas salas adjacentes, os nichos.
Dada por
encerrada a reunião o bispo pediu a palavra e passou a agradecer a todos,
começando pelo Iphan. Depois vieram as menções à Cúria, a congregação, a
diocese e ao conselho episcopal. Por fim, voltado agora para a plateia, o
religioso indicou que todos se levantassem e pediu uma salva de palmas à
Irmandade da Nossa Senhora, o tal grupo que trajava os aventais roxos da cor da
minha camisa.
Foi um sonoro
e longo aplauso até que todos da mesa, também já de pé, iniciaram uma rodada de
cumprimentos, eu diria de despedida, claramente dando por encerrados os
trabalhos. O bispo então, largou o microfone e veio cumprimentar, óbvio, os
membros da Irmandade, junto com o titular da paróquia, que ia dizendo os nomes
de cada um dos componentes e, eventualmente, as suas funções na tal agremiação.
Depois disso,
já quase na porta de saída ele se virou pra mim. Mais do que rápido, o pároco se
apressou em dizer:
– Esse é o
jornalista do Iphan.
Eu tinha
certeza de que ele achou que eu era da Irmandade. Mas ele se deteve um breve
segundo, ainda com as mãos estendidas na minha direção.
– Ah, do
Iphan!
– Sim, eu sou
o Assessor de Comunicação da Superintendência.
– Ah, sim...
Mas... Bem... muito bonita a sua camisa. Um tom de roxo bem específico! E de
muito bom gosto, eu diria – e pousou delicadamente a mão no meu ombro.
Enquanto ele
ia em direção ao carro, que o aguardava na calçada da igreja, eu saía de
fininho pra encontrar os meus colegas de trabalho o quanto antes.
Toda vez que
eu ia trabalhar com aquela camisa, sempre tinha alguém pra dizer: “olha, se não
é a camisa da Irmandade”.
E eu apenas
ria e, em troca, dava uma espécie de bênção, fazendo o sinal da cruz na direção
do gaiato da vez.