Tchubaruba era
um sujeito valente, dentro da sua categoria dos carros básicos, ou populares,
como diziam. Tinha um motor 1.3 respeitável e com os seus quase 10 anos de
lutas, circulando pelas estradas esburacadas desse Brasil, até que tinha um bom
currículo e um vasto histórico de coragem e destreza, situações nas quais o seu
talento sempre prevalecia com alguma altivez.
Era chuva,
poça d’água ameaçadora, enchentes variadas que vinham após as marés altas, nada
parava o meu Fiat Pálio azul de duas portas. Nas ladeiras íngremes ou em
estradas empoeiradas e sinuosas, a minha confiança naquele distinto bólido era
algo inabalável, e isso desde a sua festejada chegada.
Jamais ouvi
dele qualquer reclamação acerca de trajetos, aventuras duvidosas ou intempéries
intimidativas ao logo do caminho. Mesmo dormindo na rua quase todas as noites.
Valentia era o seu segundo nome e tenho dito!
Foi com todos
esses predicados que eu levei o eminente automóvel até uma concessionária para
uma avaliação, com vistas a uma possível troca por um modelo mais novo. Os dois
inspetores deram várias voltas em torno dele procurando algum defeito, uma
mossa que fosse, uma palheta gasta do para-brisa, um desalinho na sua
carroceria azul escuro. Nada. Depois abriram as portas e verificaram tudo que
era possível, assoalho, teto, revestimento dos bancos e até o rádio que, já
naquela época, tinha uma entrada exclusiva para Mp3Player, um luxo tecnológico
que muito Picasso, dos grandes, não tinha.
Enfim, a
avaliação foi ótima. A loja pagou um bom preço na troca por um modelo um pouco
mais novo e passamos a preencher a papelada do financiamento, assim como dos demais
documentos que seriam providenciados pela concessionária. Marcamos para dali a
uma semana e eu iria apenas deixar o Tchubaruba e pegar o carro novo, ainda sem
nome de batismo.
Naqueles dias
eu conversei muito com ele, falei que era o ciclo da vida, que ele iria em
breve conviver com um outro dono, que também seria bacana com ele, que seriam
uma boa dupla por um bom tempo e eu disse tudo aquilo que se diz a um amigo de
longa data.
Na data combinada o vendedor
veio me entregar as chaves, o manual e o carro novo, me mostrando o motor ao
abrir o capô, o pneu reserva, o triângulo e me alertando para alguns
dispositivos no painel de instrumentos, suas luzes e seus significados. No
final, disse que eu ia sentir muita diferença ao dirigir, simplesmente porque
esse carro andava bem mais.
– Opa. Peraí. O
meu andava muito bem. Sempre andou, se o senhor quer saber!
– Ah, mas esse
novo vai andar muito mais, tem muito mais motor. O outro já era um carro mais
cansado e tal.
– De jeito
nenhum. O Tchubaruba anda e anda muito. Não era um carro velho, nem cansado,
não. O senhor respeita o meu carro antigo, viu?
– Bem, eu
estou apenas elogiando o seu carro novo. Não quero desprezar o outro, mas na
verdade você mesmo vai sentir a diferença. Vai ser da água pro vinho.
Eu já tinha
ficado bem bravo com o panaca do vendedor, desfazendo do meu Tchubaruba, e
resolvi encerrar aquela conversa ali mesmo, antes que mandasse o tal pros
quintos dos infernos. Nem mesmo o risinho de sarcasmo dele, na despedida, me
tirou o bom ânimo. Ele que se lixe.
Realmente o
carro novo era muito bom. Era novo. Seminovo, vai. Mas era novo. E alguma
diferença tinha de ter, naturalmente. Mas o melhor de tudo foi quando eu recebi
em casa, alguns dias depois, uma multa de trânsito. Era uma multa por excesso
de velocidade, numa estrada na saída da cidade. E era uma multa do Tchubaruba.
Não sei explicar com que alegria eu recebi aquela multa.
Aqui, suspeito
que o leitor deve estar me achando um doido varrido. Alegre por receber uma
multa? É isso mesmo? Mas a explicação virá a seguir.
De posse da
multa faceira, que trazia inclusive a foto da traseira do Tchubaruba, com sua
placa devidamente legível e sem interferências, fui eu até a concessionária. Claro,
porque o carro não foi multado comigo, mas sim após eu tê-lo deixado na loja,
efetivando a troca devida. Ou seja, a responsabilidade era da loja, ou do novo
dono, caso já houvesse um.
Entrei
triunfante no saguão e fui até a mesa do vendedor, aquele, o panaca. Mostrei a
multa e ele ficou olhando, olhando, digitou no computador alguma coisa, que eu
presumi ter sido a placa, e conferiu a foto do radar.
– Ok.
Realmente é uma multa. Pode deixar conosco que vamos resolver.
– Sim, é uma
multa. É uma multa por excesso de velocidade, senão me engano.
– Ah, sim. É
verdade.
– Para um
carro que não anda bem é uma baita surpresa, não é?
– Isso
acontece. Motorista com o pé pesado.
– Motorista
com o pé pesado e dirigindo um carro que aceita pisar fundo pois o motor responde
adequadamente.
– Foi na
estrada. O radar registrou a foto e já viu.
– Exatamente.
O limite ali era 100 e ele passou a quase 130Km/h. Que lindo, né? Um carro
velho, cansado, com um motor muito rodado... Sabe como é?
O homem foi
murchando. Deve ter se arrependido do que falou sobre o Tchubaruba no instante
em que viu a multa nas mãos. E eu, enfim, não queria tripudiar do pobre. Podia
falar ali, por horas a fio, do quanto era bom o meu bom e velho amigo
Tchubaruba.
Mas assim como
aquele inesquecível carro, eu também tive um dedo de compaixão do vendedor e
somente agradeci, já indo embora.
Eu levava o
mesmo risinho sarcástico que ele tinha me oferecido da outra vez.
Mas cuidei pra
que ele não visse.
Pobre homem
atônito, sem rumo, naquela mesa, olhando uma multa improvável.
Eu me senti um
vencedor.
Mas a vitória foi
do Tchubaruba, o audaz.
Ps – o título dessa crônica é uma
citação a Toninho Horta e Fernando Brant, que compuseram a música “Manuel Audaz”,
em homenagem a um Jipe amarelo histórico, ano 1951, de propriedade de Brant.