quinta-feira, 31 de julho de 2025

Tchubaruba, o Audaz


Tchubaruba era um sujeito valente, dentro da sua categoria dos carros básicos, ou populares, como diziam. Tinha um motor 1.3 respeitável e com os seus quase 10 anos de lutas, circulando pelas estradas esburacadas desse Brasil, até que tinha um bom currículo e um vasto histórico de coragem e destreza, situações nas quais o seu talento sempre prevalecia com alguma altivez.

Era chuva, poça d’água ameaçadora, enchentes variadas que vinham após as marés altas, nada parava o meu Fiat Pálio azul de duas portas. Nas ladeiras íngremes ou em estradas empoeiradas e sinuosas, a minha confiança naquele distinto bólido era algo inabalável, e isso desde a sua festejada chegada.

Jamais ouvi dele qualquer reclamação acerca de trajetos, aventuras duvidosas ou intempéries intimidativas ao logo do caminho. Mesmo dormindo na rua quase todas as noites. Valentia era o seu segundo nome e tenho dito!

Foi com todos esses predicados que eu levei o eminente automóvel até uma concessionária para uma avaliação, com vistas a uma possível troca por um modelo mais novo. Os dois inspetores deram várias voltas em torno dele procurando algum defeito, uma mossa que fosse, uma palheta gasta do para-brisa, um desalinho na sua carroceria azul escuro. Nada. Depois abriram as portas e verificaram tudo que era possível, assoalho, teto, revestimento dos bancos e até o rádio que, já naquela época, tinha uma entrada exclusiva para Mp3Player, um luxo tecnológico que muito Picasso, dos grandes, não tinha.

Enfim, a avaliação foi ótima. A loja pagou um bom preço na troca por um modelo um pouco mais novo e passamos a preencher a papelada do financiamento, assim como dos demais documentos que seriam providenciados pela concessionária. Marcamos para dali a uma semana e eu iria apenas deixar o Tchubaruba e pegar o carro novo, ainda sem nome de batismo.

Naqueles dias eu conversei muito com ele, falei que era o ciclo da vida, que ele iria em breve conviver com um outro dono, que também seria bacana com ele, que seriam uma boa dupla por um bom tempo e eu disse tudo aquilo que se diz a um amigo de longa data.

Na data combinada o vendedor veio me entregar as chaves, o manual e o carro novo, me mostrando o motor ao abrir o capô, o pneu reserva, o triângulo e me alertando para alguns dispositivos no painel de instrumentos, suas luzes e seus significados. No final, disse que eu ia sentir muita diferença ao dirigir, simplesmente porque esse carro andava bem mais.

– Opa. Peraí. O meu andava muito bem. Sempre andou, se o senhor quer saber!

– Ah, mas esse novo vai andar muito mais, tem muito mais motor. O outro já era um carro mais cansado e tal.

– De jeito nenhum. O Tchubaruba anda e anda muito. Não era um carro velho, nem cansado, não. O senhor respeita o meu carro antigo, viu?

– Bem, eu estou apenas elogiando o seu carro novo. Não quero desprezar o outro, mas na verdade você mesmo vai sentir a diferença. Vai ser da água pro vinho.

Eu já tinha ficado bem bravo com o panaca do vendedor, desfazendo do meu Tchubaruba, e resolvi encerrar aquela conversa ali mesmo, antes que mandasse o tal pros quintos dos infernos. Nem mesmo o risinho de sarcasmo dele, na despedida, me tirou o bom ânimo. Ele que se lixe.

Realmente o carro novo era muito bom. Era novo. Seminovo, vai. Mas era novo. E alguma diferença tinha de ter, naturalmente. Mas o melhor de tudo foi quando eu recebi em casa, alguns dias depois, uma multa de trânsito. Era uma multa por excesso de velocidade, numa estrada na saída da cidade. E era uma multa do Tchubaruba. Não sei explicar com que alegria eu recebi aquela multa.

Aqui, suspeito que o leitor deve estar me achando um doido varrido. Alegre por receber uma multa? É isso mesmo? Mas a explicação virá a seguir.

De posse da multa faceira, que trazia inclusive a foto da traseira do Tchubaruba, com sua placa devidamente legível e sem interferências, fui eu até a concessionária. Claro, porque o carro não foi multado comigo, mas sim após eu tê-lo deixado na loja, efetivando a troca devida. Ou seja, a responsabilidade era da loja, ou do novo dono, caso já houvesse um.

Entrei triunfante no saguão e fui até a mesa do vendedor, aquele, o panaca. Mostrei a multa e ele ficou olhando, olhando, digitou no computador alguma coisa, que eu presumi ter sido a placa, e conferiu a foto do radar.

– Ok. Realmente é uma multa. Pode deixar conosco que vamos resolver.

– Sim, é uma multa. É uma multa por excesso de velocidade, senão me engano.

– Ah, sim. É verdade.

– Para um carro que não anda bem é uma baita surpresa, não é?

– Isso acontece. Motorista com o pé pesado.

– Motorista com o pé pesado e dirigindo um carro que aceita pisar fundo pois o motor responde adequadamente.

– Foi na estrada. O radar registrou a foto e já viu.

– Exatamente. O limite ali era 100 e ele passou a quase 130Km/h. Que lindo, né? Um carro velho, cansado, com um motor muito rodado... Sabe como é?

O homem foi murchando. Deve ter se arrependido do que falou sobre o Tchubaruba no instante em que viu a multa nas mãos. E eu, enfim, não queria tripudiar do pobre. Podia falar ali, por horas a fio, do quanto era bom o meu bom e velho amigo Tchubaruba.

Mas assim como aquele inesquecível carro, eu também tive um dedo de compaixão do vendedor e somente agradeci, já indo embora.

Eu levava o mesmo risinho sarcástico que ele tinha me oferecido da outra vez.

Mas cuidei pra que ele não visse.

Pobre homem atônito, sem rumo, naquela mesa, olhando uma multa improvável.

Eu me senti um vencedor.

Mas a vitória foi do Tchubaruba, o audaz.

 

  

Ps – o título dessa crônica é uma citação a Toninho Horta e Fernando Brant, que compuseram a música “Manuel Audaz”, em homenagem a um Jipe amarelo histórico, ano 1951, de propriedade de Brant.

 

 


segunda-feira, 21 de julho de 2025

Gina e a Tevê

 

Nas primeiras horas da segunda-feira, assim que eu entrei no escritório, já lá estava a Gina, eufórica por contar as novidades do fim de semana. Ela, publicitária, e eu, jornalista, trabalhávamos juntos no setor de Marketing e ela tinha vindo de Sampa pra Salvador, com todo o entusiasmo de, pela primeira vez, viver fora da sua cidade e longe da família. Estávamos no verão e o ano era 1993.

Os demais colegas de trabalho ainda não tinham chegado e, por isso, a Gina preferiu esperar um pouco e contar a tal novidade com todos presentes, o que foi uma tortura pra ela, que não se continha.

– Me diz ao menos do que se trata. Se é alguma coisa grave; se você vai pedir demissão e voltar pra São Paulo, sei lá – eu apelei, com alguma angústia.

– Tá. Eu vou revelar pra você. Depois conto de novo pra todo mundo. É que eu finalmente comprei uma tevê. Encontrei uma grande liquidação numa loja ali do shopping e não resisti. Paguei e levei pra casa na hora. Tinha um monte em promoção e algumas, inclusive, sem controle remoto. Essas eram bem mais baratas porque com a invenção recente do controle, as pessoas não querem mais os modelos sem a nova tecnologia.

– Mas, Gina, você nem gosta de ver tevê? Sempre disse que não tem nada de bom na telinha, principalmente aqui na Bahia, onde nem os jornais locais prestam. Como que agora passou a gostar?

Nesse momento foram chegando outros colegas do setor e cada um ficava mais surpreso com a compra da colega. Uns pela surpresa da aquisição em si, já que ela sempre disse que detestava tevês, e outros pela decisão de, para pagar pouco, optar por uma tevê sem controle remoto. “Aí já é demais”, alguém disse. Já os que estavam longe dela apenas balbuciavam: “Essa Gina é doida de pedra. Sem controle remoto? Uma tevê. Tevê!”.

Estando a plateia devidamente formada a publicitária pôde finalmente fazer a sua explanação aos colegas incrédulos, explicando as suas motivações e intenções.

– Vejam vocês, eu tenho muitas questões em relação ao sedentarismo da vida moderna. Esse é o mal que assola grande parte da humanidade. As pessoas não se esforçam pra nada e tudo na vida é facilitado pra que a gente só precise apertar um botão. Além disso, não posso dizer que sou natureba, vegana ou algo assim, mas procuro comer alimentos saudáveis e tal. Então, tudo isso pra dizer a vocês que o que eu fiz combina com a minha postura de não me afundar no sedentarismo e que, afinal, levantar da cadeira pra trocar de canal vai me fazer muito bem, mental e fisicamente, isso sim.

Como alguém podia argumentar algo diante de um discurso daquele? A gente até entendeu o lado dela, a partir dessas ponderações e todo o seu esforço pra não sucumbir aos ditos maus hábitos da contemporaneidade. Ela decidiu por comprar uma tevê, que bom, pois trata-se de uma pessoa que sempre falou negativamente do aparelho e a gente até se animava de contar as coisas que víamos nos programas porque tudo parecia novidade pra ela. E entre nós ela era “a colega que não tinha tevê em casa”, uma distinção alegórica que chegava a conter alguma graça.

“Tempo, tempo, tempo, tempo”. O tempo cantado por Caetano ouve, altivo, o elogio supremo. “És um dos deuses mais lindos”, diz o poeta.

O tempo cuida de nos assentar as ideias, propor novas trajetórias, mostrar outras estratégias. Enfim, o tempo passou pra mim, pros colegas de trabalho e pra nossa amiga Gina. Ela até resistiu um bom tempo. Um tempo até por demais elástico. Talvez pra não dar o braço a torcer. Não reclamava abertamente, mas a gente sabia que uma hora aquele controle remoto da tevê ia fazer uma baita falta.

Foi então que, durante um almoço, algumas semanas depois, ela disse que vinha dormindo mal ultimamente. Acordava muito à noite e seu sono era sempre leve. Somente depois de muita conversa ela admitiu, quase que em segredo, que passou a dormir com a televisão ligada e que simplesmente deixava ligada por que iluminava o quarto e que, enquanto estava assistindo, o sono teimoso sempre chegava de mansinho. Ela não se referia abertamente ao problema de ter de levantar pra desligá-la, mas a gente intuía a real situação, sem pressionar muito a coitada.

Na verdade, nem ela nem nós jamais levamos o caso da tevê sem controle remoto para o lado da crítica ou do julgamento. Nunca alguém falou que ela estava errada ou que foi uma loucura aquela compra. E isso ajudou a dirigir as conversas para um campo leve, até que finalmente chegou ao ponto em que todos já estávamos rindo, junto com ela, pelo imbróglio que aquela novela teria criado na cabeça de todos nós. Enfim, o passo seguinte foi a rodada de sugestões, sempre bem-humoradas, no sentido de indicar alguma solução para tudo aquilo.

A realidade de passar as noites sem dormir direito tinha de acabar. Aquilo não era vida. Alguma coisa devia ser feita. Era a nossa preocupação do dia a dia, a tal ponto que as pessoas, no meio da tarde, iam até a mesa dela pra dar alguma dica, apontar alguma saída, uma gambiarra que fosse, pra que a colega tivesse uma relação melhor com a sua famigerada televisão.

Eis que numa singela segunda-feira chega a Gina, de novo, ávida por nos contar a solução encontrada.

– Gente, eu achei uma boa solução. Comprei uma extensão elétrica bem longa e aí passei a ligar a tevê nela. A tomada fica na cabeceira da cama, onde eu ponho o rádio relógio. Quando eu sinto sono eu puxo o fio da tomada e pronto, desliga tudo. Mesmo nas noites em que eu esqueço e pego no sono, assim que acordo no meio da noite, incomodada com a luz, é só me virar, puxar o fio e voltar a dormir como um bebê.

Rolou um certo entreolhar de indagação mas, ao final, todos nós ficamos aliviados e demos boas risadas dela, enquanto aprovávamos a sua solução. Alguns lembraram que ela devia aprender a lição e nunca mais comprar nada sem controle remoto. “Mesmo que seja de graça! Onde já se viu desprezar a tecnologia assim?”

Ela ria meio sem jeito e dizia que tinha aprendido sim, a lição.

Até que alguém perguntou sobre a segunda parte.

– Que segunda parte, gente?

– Ué, agora tem que resolver como vai fazer pra trocar de canal, sem ter que levantar da cama. Desligar já tá resolvido.

– Ah, isso não vai ser preciso, não.

– Como assim? Você não troca de canal?

– Bem, gente, vou explicar: é que como eu também não tenho antena, a minha tevê só pega um único canal. E eu digo a vocês, sinceramente: Graças a Deus que é assim!

E a gente repetiu em coro:

– Graças a Deus!