quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Latim

 

Bê e Tico se conheceram em São Paulo, trabalhando para duas empresas diferentes, na mesma obra. Os dois baianos tinham feito o curso de eletricista e depois de alguns anos resolveram abrir o próprio negócio, um ramo que estava em alta no fim da década de 1990, em razão do aquecimento da construção civil no país.

Assim que entraram na cidade foram abordados por uma viatura.

– Bom dia cavalheiros, o documento do veículo e a habilitação do condutor.

– Pois não, tá aqui na mochila. Pronto. Aqui está.

– Vocês avançaram um semaforum, ok? Bem ali atrás – apontou um dos guardas.

– Não, de jeito nenhum. Saímos da BR há pouco e não vimos nenhum semáforo até aqui.

– Semaforum, por favor. É latim. O senhor sabe latim? O senhor quer dizer que eu estou mentindo?

Nesse momento o outro policial perguntou ao chefe se queria fazer o teste. Ao que o outro respondeu que “não tinha necessidade de usar o bafometrum”.

– Hein? – surpreendeu-se o outro eletricista.

– Bafometrum. O senhor não estava dirigindo, então carpe diem aí quietinho, por obsequium.

– Oi?

– Chefe, se trata aqui de dois gentium ignorantis, cujo latim pra eles é o mesmo que grego.

– Pois então, como é que fica essa história agora? Vocês passaram no semaforum e eu vou multar.

Num breve silêncio constrangedor, Bê e Tico voltaram a questionar que ali perto não havia qualquer sinal de trânsito e que eles não tinham avançado, justamente por não existir nada.

– E essa placa aqui? Toda torta e sem o lacre?

– Mas o lacre estava no lugar. Foi o senhor que tirou com esse alicate aí.

– Ôpa, aí o senhor desqualifica o meu soldadum in totum. Ele foi apenas verificar e o lacre saiu.

– Não, eu vi na hora em que ele tirou usando o alicate.

– O senhor seja justus. Além de avançar o sinal, ainda por cima a placa sem lacre? O que nós podemos fazer? Certamente, se procurarmos generis causas, acharemos est mais delitum claus no seu veiculum.

– Mas...

– O delegadum vai abrir o processo e o veículo pode ficar apreendido no pátio por longus tempus, se o senhor me entende!

– Meu amigo, deixa eu dizer. Nós estamos vindo de São Paulo pra fazer um trabalho aqui no Rio. A gente foi contratado pra fazer a instalação elétrica em um conjunto de salas comerciais no Centro da cidade. Somos trabalhadores e fazemos tudo corretamente. Não passamos semáforo nenhum – tentou explicar o Tico, já nervoso.

Os guardas então foram até a viatura e voltaram com uma prancheta. Com uma caneta em punho davam voltas no carro apreendido, anotando aqui e ali, como se fosse uma vistoria do Detran. De vez em quando falavam em voz alta para serem ouvidos.

– Ipsis lorum.

– Data venia.

– Casus fortuitus. Delinquentium.

– Exatum. Sine dia, sine causa, sine qua non.

– Pra mim, erga omnes.

E toca de anotar no formulário da prancheta. Às vezes um deles botava a caneta na boca e meneava a cabeça em sinal de desaprovação.

– Olha, factis complicatus este o de vocês. Me digam de uma vez como a gente pode resolver isso, sem mais juris causa, ou seja, sem rigore juris, o que a essa altura não seria bom pra ninguém.

– Minha nossa. Estamos ferrados – disse baixinho o Bê, já contabilizando o prejuízo que viria.

De repente uma sirene forte soou, ao mesmo tempo em que trazia uma viatura cheia de luzes no teto. Os policiais tentaram correr, mas foram fechados pela picape oficial, que impedia também a saída dos demais carros, parados na beira da estrada.

Com gritos de mãos na cabeça, joelhos no chão e não se movam, os policiais, em questão de minutos, algemaram os falsos policiais e apreenderam a falsa viatura.

Aliviados, os dois amigos narraram a saga aflitiva que viveram desde que saíram da BR e entraram na cidade, com todas aquelas ameaças e simulações de infrações.

– E eles falaram com vocês em latim também?

Os dois amigos se entreolharam, percebendo, com alguma pilhéria, que aquela abordagem era algo repetitivo.

– Sim, a gente não entendia nada. Nem sabia que na academia da polícia se ensinava latim.

– Não ensina, meu caro. Esses caras são uns doidos varridos – disse o primeiro policial, passando a bola pro outro que saía do carro e vinha se juntar a eles.

– A gente prende e a justiça solta. É sempre assim. Até laudo psicológico eles têm pra se livrar da cana. São doidinhos e a gente ainda dá graças a Deus por eles não terem armas. Já pensou?

– E de onde vem esse latim todo que eles falam. Doutor, é um troço imponente que dá até medo.

– Nada, é tudo farsa. Tá tudo escrito nesse formulário que eles usam enquanto fazem a falsa vistoria no veículo. Aí vão lendo as frases com voz forte e cheios de postura.

– Isso mesmo – completou o outro policial. Tá tudo escrito nesse papel aqui da prancheta. Tudo em latim.

– Ufa, então graças a Deus que vocês chegaram a tempo. A gente não tem nem pro almoço e eles já estavam cobrando um suborno pra não levar o carro e também a gente direto pro delegadum...

– Delegadum?

– Isso.

– Esses caras são umas figuras mesmo. Olha, vocês estão liberados e, conforme eu disse, nem adianta fazer boletim porque a justiça solta a dupla em dois dias. No máximo.

– Verdade. Antes a gente até dava um pau neles, ameaçava e tal. Mas agora, nem isso fazemos mais.

– Então valeu e muito obrigado. Nós vamos indo porque temos muito trabalho ainda hoje.

– Ok. Boa sorte pra vocês.

– E mandem um abraço nosso pro delegadum...

– Pode deixar!