Bê e Tico se
conheceram em São Paulo, trabalhando para duas empresas diferentes, na mesma
obra. Os dois baianos tinham feito o curso de eletricista e depois de alguns
anos resolveram abrir o próprio negócio, um ramo que estava em alta no fim da
década de 1990, em razão do aquecimento da construção civil no país.
Assim que
entraram na cidade foram abordados por uma viatura.
– Bom dia
cavalheiros, o documento do veículo e a habilitação do condutor.
– Pois não, tá
aqui na mochila. Pronto. Aqui está.
– Vocês
avançaram um semaforum, ok? Bem ali atrás – apontou um dos guardas.
– Não, de
jeito nenhum. Saímos da BR há pouco e não vimos nenhum semáforo até aqui.
– Semaforum,
por favor. É latim. O senhor sabe latim? O senhor quer dizer que eu estou
mentindo?
Nesse momento
o outro policial perguntou ao chefe se queria fazer o teste. Ao que o outro
respondeu que “não tinha necessidade de usar o bafometrum”.
– Hein? – surpreendeu-se
o outro eletricista.
– Bafometrum.
O senhor não estava dirigindo, então carpe diem aí quietinho, por obsequium.
– Oi?
– Chefe, se
trata aqui de dois gentium ignorantis, cujo latim pra eles é o mesmo que grego.
– Pois então,
como é que fica essa história agora? Vocês passaram no semaforum e eu vou
multar.
Num breve
silêncio constrangedor, Bê e Tico voltaram a questionar que ali perto não havia
qualquer sinal de trânsito e que eles não tinham avançado, justamente por não
existir nada.
– E essa placa
aqui? Toda torta e sem o lacre?
– Mas o lacre
estava no lugar. Foi o senhor que tirou com esse alicate aí.
– Ôpa, aí o
senhor desqualifica o meu soldadum in totum. Ele foi apenas verificar e o lacre
saiu.
– Não, eu vi na
hora em que ele tirou usando o alicate.
– O senhor
seja justus. Além de avançar o sinal, ainda por cima a placa sem lacre? O que
nós podemos fazer? Certamente, se procurarmos generis causas, acharemos est
mais delitum claus no seu veiculum.
– Mas...
– O delegadum
vai abrir o processo e o veículo pode ficar apreendido no pátio por longus
tempus, se o senhor me entende!
– Meu amigo, deixa
eu dizer. Nós estamos vindo de São Paulo pra fazer um trabalho aqui no Rio. A
gente foi contratado pra fazer a instalação elétrica em um conjunto de salas
comerciais no Centro da cidade. Somos trabalhadores e fazemos tudo
corretamente. Não passamos semáforo nenhum – tentou explicar o Tico, já
nervoso.
Os guardas
então foram até a viatura e voltaram com uma prancheta. Com uma caneta em punho
davam voltas no carro apreendido, anotando aqui e ali, como se fosse uma
vistoria do Detran. De vez em quando falavam em voz alta para serem ouvidos.
– Ipsis lorum.
– Data venia.
– Casus
fortuitus. Delinquentium.
– Exatum. Sine
dia, sine causa, sine qua non.
– Pra mim, erga
omnes.
E toca de
anotar no formulário da prancheta. Às vezes um deles botava a caneta na boca e
meneava a cabeça em sinal de desaprovação.
– Olha, factis
complicatus este o de vocês. Me digam de uma vez como a gente pode resolver
isso, sem mais juris causa, ou seja, sem rigore juris, o que a essa altura não
seria bom pra ninguém.
– Minha nossa.
Estamos ferrados – disse baixinho o Bê, já contabilizando o prejuízo que viria.
De repente uma
sirene forte soou, ao mesmo tempo em que trazia uma viatura cheia de luzes no
teto. Os policiais tentaram correr, mas foram fechados pela picape oficial, que
impedia também a saída dos demais carros, parados na beira da estrada.
Com gritos de
mãos na cabeça, joelhos no chão e não se movam, os policiais, em questão de
minutos, algemaram os falsos policiais e apreenderam a falsa viatura.
Aliviados, os
dois amigos narraram a saga aflitiva que viveram desde que saíram da BR e entraram
na cidade, com todas aquelas ameaças e simulações de infrações.
– E eles
falaram com vocês em latim também?
Os dois amigos
se entreolharam, percebendo, com alguma pilhéria, que aquela abordagem era algo
repetitivo.
– Sim, a gente
não entendia nada. Nem sabia que na academia da polícia se ensinava latim.
– Não ensina, meu
caro. Esses caras são uns doidos varridos – disse o primeiro policial, passando
a bola pro outro que saía do carro e vinha se juntar a eles.
– A gente
prende e a justiça solta. É sempre assim. Até laudo psicológico eles têm pra se
livrar da cana. São doidinhos e a gente ainda dá graças a Deus por eles não terem
armas. Já pensou?
– E de onde
vem esse latim todo que eles falam. Doutor, é um troço imponente que dá até
medo.
– Nada, é tudo
farsa. Tá tudo escrito nesse formulário que eles usam enquanto fazem a falsa vistoria
no veículo. Aí vão lendo as frases com voz forte e cheios de postura.
– Isso mesmo –
completou o outro policial. Tá tudo escrito nesse papel aqui da prancheta. Tudo
em latim.
– Ufa, então graças
a Deus que vocês chegaram a tempo. A gente não tem nem pro almoço e eles já
estavam cobrando um suborno pra não levar o carro e também a gente direto pro
delegadum...
– Delegadum?
– Isso.
– Esses caras
são umas figuras mesmo. Olha, vocês estão liberados e, conforme eu disse, nem
adianta fazer boletim porque a justiça solta a dupla em dois dias. No máximo.
– Verdade.
Antes a gente até dava um pau neles, ameaçava e tal. Mas agora, nem isso
fazemos mais.
– Então valeu
e muito obrigado. Nós vamos indo porque temos muito trabalho ainda hoje.
– Ok. Boa
sorte pra vocês.
– E mandem um
abraço nosso pro delegadum...
– Pode deixar!