As obras de
revitalização daquele museu consumiram um longo tempo. Todo o processo foi bem
demorado e desde os primeiros projetos, cada vez que a sua equipe vislumbrava
algum prazo, logo este insistia em se deslocar para mais longe. Os meses,
os anos, as semanas, tudo tinha como tempero a própria angústia, pela incerteza
do dia em que o prédio poderia voltar a estar aberto e funcionando como sempre.
Não só o fato
de garantir os recursos do governo federal para todo o projeto, mas também os
trâmites das contratações e das execuções, tudo tinha um período para acontecer
e certos prazos estabelecidos. As licitações, por exemplo, demandavam sempre normas
regimentais que envolviam as empresas participantes, com seus recursos e
apelações que deviam ser julgados em tempos específicos, até a indicação final
dos vencedores e, só então, os prazos de execução se iniciavam.
Naturalmente,
quando as pessoas encaram essa realidade, surge a palavra burocracia como
elemento que alude a atraso, retardo e tal, mas quando se trata de dinheiro
público é imperativo seguir à risca todas as normas, em respeito ao justo
apreço ao erário, que é, em suma, de responsabilidade de todos nós, ou pelo
menos deveria.
No meio de
todo esse trabalho, na barafunda que normalmente cerca uma obra pública, eis
que surge o maior de todos os problemas: a mudança de governo. E que governo! Não
bastasse a necessidade de isolar a área das obras, não fosse a necessidade do
cuidado redobrado com o acervo, enquanto parede, teto e chão vão sendo
restaurados, ainda tinha a ruptura institucional patrocinada pelos novos
eleitos, cuja primeira canetada foi a extinção do próprio Ministério da
Cultura.
Pois os
escrevinhadores não sabiam sequer o que era um processo dentro da administração
pública federal. Também não tinham ideia de como proceder para realizar os
pagamentos mais simples, referentes às etapas de obras já executadas. A
inviabilidade de um museu existir naquele contexto corria um risco
inimaginável, principalmente diante da necessidade palaciana de se provar que a
Terra era plana e de que a cloroquina era o remédio santo, enquanto que as
vacinas, por sua vez, eram comunistas e transformariam as pessoas em jumentos,
desculpe, jacarés.
O que era
ruim, ficou bem pior. Para as obras, para o museu e para todos os alfabetizados.
Militares e pastores viravam chefes da noite para o dia e, ao menor contato com
estes infames, a sensação era de morte, de estar falando alguma língua remota,
extinta ou interplanetária. A vontade era pular, sem hesitar, de algum canto da
Terra plana, rumo ao infinito sideral.
Caminhando
rumo ao calvário, os dias pareciam todos iguais para as entidades da Cultura.
As intervenções em cada reunião com os novos mandachuvas eram deploráveis,
dignas mesmo de choro. E isso não só em relação às questões técnicas e
museológicas mas, com muito mais ênfase, quanto ao próprio uso do vernáculo.
A sucessão de absurdos sem precedentes na história desse país – ah, desculpe, essa é uma outra história – parecia não ter fim. Dava sinais de que aquelas aberrações jamais seriam superadas.
Num belo dia,
eis que diante do término das obras que se aproximavam finalmente, o comunicado da direção
central dava conta de que o ministro de sobrenome Terra – sem trocadilhos –
viria participar da reinauguração do museu. Sim, o citado nobre estava disposto
a deixar os seus ostentosos afazeres em Brasília e voar ao sul do país, para descerrar
uma placa em evento pomposo, de uma obra que foi custeada, em sua totalidade, com recursos do governo anterior ao dele.
Um emissário então
enviou os dizeres, as letras e as logos, tudo para a confecção da placa que
seria instalada na entrada da edificação museal. No dia marcado, na presença
dos correligionários locais, após um discurso titubeante, eis que a tal placa
foi solenemente descerrada. E ela trazia o nome do belzebu.
Desmontado o
circo político, entretanto, a volta à normalidade dos trabalhos era um alívio
muito esperado. E nesse interregno ocorreu que, cada vez que um integrante da
equipe do museu passava na frente da maldita, prometia aos demais que na
primeira oportunidade... se tivesse uma chance... e a promessa ficava em
suspenso, no ar. Não foram poucas as vezes que essa mesma cena aconteceu.
Foi então que
o vigilante entrou na sala da chefe relatando que as fortes chuvas do final de
semana, haviam causado grande infiltração em uma das janelas da entrada.
Realmente era nítida a mancha da água que vinha de cima e percorria toda a
parede até o chão. No caminho, por pura sorte, a mancha passava bem pertinho da
placa. Sim, a placa da inauguração. E foi nesse mesmo momento que todos se
entreolharam, mas nada foi dito.
Não se
passaram muitos dias, talvez coisa de uma semana, ou um pouco mais, e a parede amanheceu
novinha, pintadinha de branco. Surgiu assim lisinha, luminosa, pura e incólume,
sem mancha de água, sem umidade, sem placa e sem parafusos.
Com alguma
estranheza, mas sem a certeza se deveria ou não perguntar, um velhinho entrou no museu e logo percebeu algo.
Ficou ali por algum tempo, disfarçando, olhando em redor, identificando a
parede e, eis que vem um servidor e o cumprimenta, indicando o caminho para a
visitação.
Ele sorriu com
alguma malícia e perguntou, apontando para a parede:
– A placa... que
estava... aquela da... daquele dia... que tinha o nome do...
A resposta
veio curta e precisa:
– É nóis!
E mais não
disseram ambos.