Meu
desconfiômetro diz que eu, provavelmente, estava no lugar errado, na hora
errada. A beira-mar de Floripa é lugar de rico. Ali eles passeiam, fingindo
treino, exibem seus carros suntuosos e o tom das roupas combina com o boné, a
pulseira do relógio e com o tênis milionário.
O cenário
cuida de confirmar a regra quando naquelas plagas surge um sol lindo,
cristalino, no meio de uma manhã típica do inverno, um sol acolhedor brilhando
no mar à espera das fotos que certamente o farão pano de fundo de qualquer lembrança.
Como eu disse é lugar de rico.
O problema
surge exatamente quando um zé ninguém, como eu, resolve dar uma paradinha ali a
caminho do mercado. O sujeito para o carro, atravessa a rua, senta no
banquinho, estica as pernas e, nos poucos minutos que restam para o cumprimento
da sua função doméstica, se atreve a contemplar justamente aquele mar e aquele
sol reluzente, que só os dias úteis oferecem, como que para mexer com o juízo
do homem que vai trabalhar.
No banco de
pedra atrás de mim, uma conversa começava a ficar audível.
– Eu não sou
mendigo, não senhora. Não gosto de pedir dinheiro a ninguém. Mas a minha tia,
que é quem me criou, teve um acidente de carro e sofreu um traumatismo crânio
encefálico. Ela está em estado grave e eu, que sou do Paraná, vim aqui pra
ficar com ela e com o passar do tempo acabei ficando sem dinheiro até pra
comer. Na verdade eu nem devia ter vindo pra cá porque faz só um mês que a
minha irmã faleceu. Ela foi atropelada por um ônibus e teve traumatismo crânio
encefálico. Uma tristeza. Ficou uma semana na UTI e veio a óbito.
Depois de um
certo tempo a mulher, de quem eu, até então, só ouvia a voz, respondeu:
– Realmente é
uma história muito triste, mas o senhor entenda que eu hoje saí só pra dar uma
caminhada e não trouxe nada comigo, nem mesmo o meu celular.
Ela continuou
falando, se desculpando com o homem e, ao mesmo tempo, se ia levantando pra ir
embora, na tentativa de se livrar daquele incômodo diálogo à beira-mar. Na
cintura, por baixo da blusa rosa e do casaco rosa, o volume de um enorme
celular preso ao corpo desmentia a sua negativa em poder ajudar.
O mundo é
assim, pensei eu com os meus óculos escuros, na falta dos adequados botões da
conhecida frase. Enquanto isso, a mulher ganhava a calçada e seguia o seu
caminho, talvez também ressentida por não ter nem botões, nem óculos escuros
para o caso de surgir algum aleatório impulso de refletir sobre o triste pedido
do homem.
O meu tempo
estava acabando, mas eu pude ver que o tal sujeito deu um arrodeio entre as
árvores e nesse momento tentava falar com um casal que olhava o mar, apontando
os barcos ao longe. Tentava porque ao iniciar as suas argumentações eu percebi
que o casal abruptamente mudou de direção, a ponto de deixar o pobre falando
sozinho, talvez, aí sim, com seus botões.
O amigo e a
amiga leitora já desconfiam do inevitável. Sim, o cabra deu mais algumas
voltas, arrodeios, como eu escrevi acima e, inapelavelmente, veio pleitear
comigo a sua salvação. Mal sabia ele que eu já tinha ouvido tudo momentos antes
e, desde então, liso como sempre, já maquinava as minhas desculpas, antes mesmo
de a história começar.
– O senhor
tenha um bom dia.
– Bom dia.
Tudo bem?
– Olha, eu não
sou mendigo, não, senhor. Não gosto de pedir dinheiro a ninguém. Mas a minha avó,
que é quem me criou, teve um acidente de carro e sofreu um traumatismo crânio
encefálico.
– Sua avó,
não, sua tia – respondi automático.
– Como?
– Ué, não foi
a sua tia que teve o traumatismo?
– O senhor
quer saber mais do que eu?
– Ah, tá.
Desculpe. Pode continuar.
– Ela está em
estado grave e eu, que sou do Paraná, vim aqui pra ficar com ela e com o passar
do tempo acabei ficando sem dinheiro até pra comer. Na verdade eu nem devia ter
vindo pra cá porque faz só um mês que a minha esposa faleceu. Ela foi
atropelada por um ônibus e teve traumatismo crânio encefálico. Uma tristeza.
Ficou uma semana na UTI e veio a óbito.
– Sua esposa
ou sua irmã?
– Que teve o
traumatismo crânio encefálico?
– Sim.
– Não, foi minha
mãe.
– Mas o senhor
disse que foi sua avó, e que foi ela que te criou...
– Nada, quem
me criou foi minha madrinha, Dondinha, lá de Ilhéus.
– E o Paraná?
– O que tem o
Paraná a ver com isso, moço?
– O senhor não
veio de lá?
– Ah, é, vim sim.
– Então, pra
ficar claro, me diz quem está internada e quem morreu, afinal?
– De
traumatismo crânio encefálico?
– Isso.
– Agora o
senhor me confundiu todo.
– Quem está
confuso sou eu, meu amigo! Desde que o senhor começou com essa história de
traumatismo craniano pra todo lado.
– É traumatismo
crânio encefálico.
– Que seja.
Mas é muito estranho que todos os seus parentes sofram do mesmo diagnóstico.
– Não, de
diagnóstico não tem ninguém na família sofrendo não. Com a Graça de Deus Pai.
Ficamos os
dois um tempo calados, ali, só o sol por testemunha.
Depois, com um tom diferente, ele
começou:
– A minha
menina está lá do outro lado da avenida, me esperando, enquanto eu vim aqui ver
se conseguia alguma coisa pra gente comer – falou isso pondo a mão esticada
sobre a testa pra poder ver mais longe.
A menina
avistou o pai de longe e deu um tchau lá do outro lado.
De repente tudo aquilo ficou triste.
Naquela linda manhã
de sol, tudo ficou feio.
Eu já não ria
das trapalhadas narrativas do homem.
Então eu fui
até o carro e busquei a única nota que eu tinha dentro da carteira e lhe dei os
20 reais.
Ele agradeceu
e, numa rapidez que meus olhos mal conseguiam acompanhar, sumiu entre os carros,
atravessando a avenida em busca da filha.
Que o
esperava, com a Graça de Deus Pai.