quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O Diagnóstico

 

Meu desconfiômetro diz que eu, provavelmente, estava no lugar errado, na hora errada. A beira-mar de Floripa é lugar de rico. Ali eles passeiam, fingindo treino, exibem seus carros suntuosos e o tom das roupas combina com o boné, a pulseira do relógio e com o tênis milionário.

O cenário cuida de confirmar a regra quando naquelas plagas surge um sol lindo, cristalino, no meio de uma manhã típica do inverno, um sol acolhedor brilhando no mar à espera das fotos que certamente o farão pano de fundo de qualquer lembrança. Como eu disse é lugar de rico.

O problema surge exatamente quando um zé ninguém, como eu, resolve dar uma paradinha ali a caminho do mercado. O sujeito para o carro, atravessa a rua, senta no banquinho, estica as pernas e, nos poucos minutos que restam para o cumprimento da sua função doméstica, se atreve a contemplar justamente aquele mar e aquele sol reluzente, que só os dias úteis oferecem, como que para mexer com o juízo do homem que vai trabalhar.

No banco de pedra atrás de mim, uma conversa começava a ficar audível.

– Eu não sou mendigo, não senhora. Não gosto de pedir dinheiro a ninguém. Mas a minha tia, que é quem me criou, teve um acidente de carro e sofreu um traumatismo crânio encefálico. Ela está em estado grave e eu, que sou do Paraná, vim aqui pra ficar com ela e com o passar do tempo acabei ficando sem dinheiro até pra comer. Na verdade eu nem devia ter vindo pra cá porque faz só um mês que a minha irmã faleceu. Ela foi atropelada por um ônibus e teve traumatismo crânio encefálico. Uma tristeza. Ficou uma semana na UTI e veio a óbito.

Depois de um certo tempo a mulher, de quem eu, até então, só ouvia a voz, respondeu:

– Realmente é uma história muito triste, mas o senhor entenda que eu hoje saí só pra dar uma caminhada e não trouxe nada comigo, nem mesmo o meu celular.

Ela continuou falando, se desculpando com o homem e, ao mesmo tempo, se ia levantando pra ir embora, na tentativa de se livrar daquele incômodo diálogo à beira-mar. Na cintura, por baixo da blusa rosa e do casaco rosa, o volume de um enorme celular preso ao corpo desmentia a sua negativa em poder ajudar.

O mundo é assim, pensei eu com os meus óculos escuros, na falta dos adequados botões da conhecida frase. Enquanto isso, a mulher ganhava a calçada e seguia o seu caminho, talvez também ressentida por não ter nem botões, nem óculos escuros para o caso de surgir algum aleatório impulso de refletir sobre o triste pedido do homem.

O meu tempo estava acabando, mas eu pude ver que o tal sujeito deu um arrodeio entre as árvores e nesse momento tentava falar com um casal que olhava o mar, apontando os barcos ao longe. Tentava porque ao iniciar as suas argumentações eu percebi que o casal abruptamente mudou de direção, a ponto de deixar o pobre falando sozinho, talvez, aí sim, com seus botões.

O amigo e a amiga leitora já desconfiam do inevitável. Sim, o cabra deu mais algumas voltas, arrodeios, como eu escrevi acima e, inapelavelmente, veio pleitear comigo a sua salvação. Mal sabia ele que eu já tinha ouvido tudo momentos antes e, desde então, liso como sempre, já maquinava as minhas desculpas, antes mesmo de a história começar.

– O senhor tenha um bom dia.

– Bom dia. Tudo bem?

– Olha, eu não sou mendigo, não, senhor. Não gosto de pedir dinheiro a ninguém. Mas a minha avó, que é quem me criou, teve um acidente de carro e sofreu um traumatismo crânio encefálico.

– Sua avó, não, sua tia – respondi automático.

– Como?

– Ué, não foi a sua tia que teve o traumatismo?

– O senhor quer saber mais do que eu?

– Ah, tá. Desculpe. Pode continuar.

– Ela está em estado grave e eu, que sou do Paraná, vim aqui pra ficar com ela e com o passar do tempo acabei ficando sem dinheiro até pra comer. Na verdade eu nem devia ter vindo pra cá porque faz só um mês que a minha esposa faleceu. Ela foi atropelada por um ônibus e teve traumatismo crânio encefálico. Uma tristeza. Ficou uma semana na UTI e veio a óbito.

– Sua esposa ou sua irmã?

– Que teve o traumatismo crânio encefálico?

– Sim.

– Não, foi minha mãe.

– Mas o senhor disse que foi sua avó, e que foi ela que te criou...

– Nada, quem me criou foi minha madrinha, Dondinha, lá de Ilhéus.

– E o Paraná?

– O que tem o Paraná a ver com isso, moço?

– O senhor não veio de lá?

– Ah, é, vim sim.

– Então, pra ficar claro, me diz quem está internada e quem morreu, afinal?

– De traumatismo crânio encefálico?

– Isso.

– Agora o senhor me confundiu todo.

– Quem está confuso sou eu, meu amigo! Desde que o senhor começou com essa história de traumatismo craniano pra todo lado.

– É traumatismo crânio encefálico.

– Que seja. Mas é muito estranho que todos os seus parentes sofram do mesmo diagnóstico.

– Não, de diagnóstico não tem ninguém na família sofrendo não. Com a Graça de Deus Pai.

Ficamos os dois um tempo calados, ali, só o sol por testemunha.

Depois, com um tom diferente, ele começou:

– A minha menina está lá do outro lado da avenida, me esperando, enquanto eu vim aqui ver se conseguia alguma coisa pra gente comer – falou isso pondo a mão esticada sobre a testa pra poder ver mais longe.

A menina avistou o pai de longe e deu um tchau lá do outro lado.

De repente tudo aquilo ficou triste.

Naquela linda manhã de sol, tudo ficou feio.

Eu já não ria das trapalhadas narrativas do homem.

Então eu fui até o carro e busquei a única nota que eu tinha dentro da carteira e lhe dei os 20 reais.

Ele agradeceu e, numa rapidez que meus olhos mal conseguiam acompanhar, sumiu entre os carros, atravessando a avenida em busca da filha.

Que o esperava, com a Graça de Deus Pai.