quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A Blitz


Quando conheci a Fernanda ela era uma criança. Tinha uns 12 anos e eu 10. A gente era do mesmo ônibus do colégio que pegava os alunos que moravam em Ramos e nos bairros vizinhos.
Desde pequena ela já tinha um ar de independência, falava com todo mundo, conversava sobre todos os assuntos, inclusive com os adultos do colégio. Eu, muito tímido, só admirava a sua desenvoltura, o que pra mim fazia dela quase uma adulta também.
Cursamos o ginasial e o científico naquele mesmo colégio e depois de certo tempo, um belo dia nos encontramos na Igreja de Santa Rita, a igreja do bairro, pois eu tinha sido convidado, junto com meu irmão, pra tocar violão em uma peça de teatro que o grupo de jovens ia montar. Ela fazia parte do grupo e também tocava. Posso dizer que foi a partir deste dia que a nossa amizade realmente começou.
Mas eu gosto de lembrar da minha amiga Fernanda em uma das passagens que mais dão a noção de como era o seu jeito. A gente estava indo para Bom Jardim, cidade da região serrana do Rio de Janeiro quando, na estrada, uma viatura da polícia nos parou. A gente estava subindo um acesso, tipo um viaduto, quando a polícia ligou a sirene e nos acenou. O Theobaldo, o Fusca mostarda da Fernanda, tinha um volante pequeno, rodas largas e um rádio que só chiava. Os dois eram grandes parceiros, eram inseparáveis mesmo e ela dirigia muito bem.
Então, pensamos que a blitz devia ser algo de rotina, nada grave e, no momento em que o policial apontou o acostamento, ela nos disse:
- Ninguém sai do carro. Deixa que eu vou falar com o guarda.
Na verdade a nossa apreensão era só pela quantidade de passageiros, pois éramos seis pessoas no Theobaldo e o guarda poderia nos impedir de continuar. Então ela foi até a viatura falar com ele e a gente achou bom, por que assim talvez ele não nos visse a todos. E ficamos quietinhos.
De longe a gente via a Fernanda e o guarda conversando enquanto o outro policial continuava dentro do carro, ao volante. Eles conferiam os documentos, depois olhavam a estrada, um apontava a subida do viaduto, circundava o braço desenhando o trajeto com o dedo e a gente tentando entender o que estava acontecendo ali. Pensamos até que a Fernanda estivesse pedindo alguma informação sobre o resto do trajeto, ou simulando algo, mas só nos restava esperar pelo seu retorno ao carro.
Deu mais uns cinco minutos e vem a Fernanda, com um sorriso no rosto e um cartão na mão. Assim que ela entrou todos nós começamos a fazer perguntas, todos juntos, e ela então explicou:
- Putz, a gente entrou na contramão. Este acesso que a gente pegou é pra quem vem de lá e por aqui é contramão. Por isso eles nos pararam. Eu disse que não vi a sinalização e que a gente está indo tocar em uma missa em Bom Jardim, por isso que o carro tá com seis pessoas. Expliquei tudo e ele não vai me multar. Só disse que se ninguém saiu do carro pra ajudar é porque vocês confiam em mim e por isso eu poderia seguir viagem.
Assustados por termos corrido risco de bater ou causar um acidente andando na contramão, alguém no carro lembrou de perguntar pra Fernanda o que era aquele cartão que o policial havia lhe dado.
- É o cartão de um advogado, irmão dele. Ele disse que nunca viu uma mulher na contramão com tanta argumentação, tanta lábia pra convencer e disse que é inacreditável como eu tenho saída pra tudo, e que afinal não dava pra multar alguém assim, que era melhor eu ir embora logo.
- Sim, mas e o cartão do advogado?
- Ele disse que eu ainda vou arrumar muita merda nessa vida e que, com certeza, eu vou precisar de um advogado, mais cedo ou mais tarde.
Todos rimos juntos e a Fernanda tratou logo de ligar o carro para sairmos dali. Andou mais à frente, fez um balão, pegou o caminho de volta e ainda deu uma buzinadinha básica ao passar pelos policiais. O que estava fora do carro balançava a cabeça, sorrindo, e vimos que enquanto a gente se afastava ele fazia o sinal da cruz, como que resignado com o que acontecera.
Minha amiga Fernanda se graduou em Matemática. Era um geniozinho, enfim. Dominava a informática como ninguém e casou com um neozelandês. Ela nos deixou faz três anos. O fumo, que ela tanto gostava, encurtou a sua vida implacavelmente. Tenho saudades dela. De ver o seu rosto quando ela cantava e tocava violão nas missas junto comigo. Quando me pedia pra tocar Luiza pra ela. Do seu jeito moleque de rir e contar as suas aventuras. Das brincadeiras que venciam todas as idades e que suscitavam no adulto a criança que ela nunca deixou de ser.
Acho que é pela Fernanda que me tornei um chato com os amigos fumantes. É por ela que hoje brigo com eles e sempre me arrependo de não ter sido um chato também com ela. Se arrepender é muito ruim.