Quando
conheci a Fernanda ela era uma criança. Tinha uns 12 anos e eu 10. A gente era
do mesmo ônibus do colégio que pegava os alunos que moravam em Ramos e nos
bairros vizinhos.
Desde
pequena ela já tinha um ar de independência, falava com todo mundo, conversava
sobre todos os assuntos, inclusive com os adultos do colégio. Eu, muito tímido,
só admirava a sua desenvoltura, o que pra mim fazia dela quase uma adulta
também.
Cursamos
o ginasial e o científico naquele mesmo colégio e depois de certo tempo, um
belo dia nos encontramos na Igreja de Santa Rita, a igreja do bairro, pois eu
tinha sido convidado, junto com meu irmão, pra tocar violão em uma peça de
teatro que o grupo de jovens ia montar. Ela fazia parte do grupo e também
tocava. Posso dizer que foi a partir deste dia que a nossa amizade realmente
começou.
Mas eu gosto de lembrar da minha amiga Fernanda em uma das passagens
que mais dão a noção de como era o seu jeito. A gente estava indo para Bom
Jardim, cidade da região serrana do Rio de Janeiro quando, na estrada, uma
viatura da polícia nos parou. A gente estava subindo um acesso, tipo um
viaduto, quando a polícia ligou a sirene e nos acenou. O Theobaldo, o Fusca
mostarda da Fernanda, tinha um volante pequeno, rodas largas e um rádio que só
chiava. Os dois eram grandes parceiros, eram inseparáveis mesmo e ela dirigia
muito bem.
Então,
pensamos que a blitz devia ser algo de rotina, nada grave e, no momento em que
o policial apontou o acostamento, ela nos disse:
- Ninguém sai do carro. Deixa
que eu vou falar com o guarda.
Na verdade a nossa apreensão era só pela
quantidade de passageiros, pois éramos seis pessoas no Theobaldo e o guarda
poderia nos impedir de continuar. Então ela foi até a viatura falar com ele e a
gente achou bom, por que assim talvez ele não nos visse a todos. E ficamos
quietinhos.
De
longe a gente via a Fernanda e o guarda conversando enquanto o outro
policial continuava dentro do carro, ao volante. Eles conferiam os documentos,
depois olhavam a estrada, um apontava a subida do viaduto, circundava o braço desenhando o trajeto com o dedo e a gente tentando entender o que estava acontecendo ali.
Pensamos até que a Fernanda estivesse pedindo alguma informação sobre o resto do trajeto, ou simulando algo, mas só nos restava esperar pelo seu retorno ao
carro.
Deu
mais uns cinco minutos e vem a Fernanda, com um sorriso no rosto e um cartão na
mão. Assim que ela entrou todos nós começamos a fazer perguntas, todos juntos,
e ela então explicou:
- Putz, a gente entrou na contramão. Este acesso que a
gente pegou é pra quem vem de lá e por aqui é contramão. Por isso eles nos
pararam. Eu disse que não vi a sinalização e que a gente está indo tocar em uma
missa em Bom Jardim, por isso que o carro tá com seis pessoas. Expliquei
tudo e ele não vai me multar. Só disse que se ninguém saiu do carro pra ajudar é
porque vocês confiam em mim e por isso eu poderia seguir viagem.
Assustados
por termos corrido risco de bater ou causar um acidente andando na contramão,
alguém no carro lembrou de perguntar pra Fernanda o que era aquele cartão que o
policial havia lhe dado.
- É o cartão de um advogado, irmão dele. Ele disse que
nunca viu uma mulher na contramão com tanta argumentação, tanta lábia pra convencer e disse
que é inacreditável como eu tenho saída pra tudo, e que afinal não dava pra
multar alguém assim, que era melhor eu ir embora logo.
- Sim,
mas e o cartão do advogado?
- Ele disse que eu ainda vou arrumar muita merda
nessa vida e que, com certeza, eu vou precisar de um advogado, mais cedo ou mais tarde.
Todos
rimos juntos e a Fernanda tratou logo de ligar o carro para sairmos dali. Andou
mais à frente, fez um balão, pegou o caminho de volta e ainda deu uma buzinadinha básica
ao passar pelos policiais. O que estava fora do carro balançava a cabeça,
sorrindo, e vimos que enquanto a gente se afastava ele fazia o sinal da cruz,
como que resignado com o que acontecera.
Minha amiga Fernanda se graduou em
Matemática. Era um geniozinho, enfim. Dominava a informática como ninguém e casou com
um neozelandês. Ela nos deixou faz três anos. O fumo, que ela tanto gostava,
encurtou a sua vida implacavelmente. Tenho saudades dela. De ver o seu rosto
quando ela cantava e tocava violão nas missas junto comigo. Quando me pedia pra
tocar Luiza pra ela. Do seu jeito
moleque de rir e contar as suas aventuras. Das brincadeiras que venciam todas
as idades e que suscitavam no adulto a criança que ela nunca deixou de ser.
Acho
que é pela Fernanda que me tornei um chato com os amigos fumantes. É por ela
que hoje brigo com eles e sempre me arrependo de não ter sido um chato também
com ela. Se arrepender é muito ruim.