segunda-feira, 24 de março de 2014

O Biscoito Recheado


Uma história que eu tenho, de certa maneira, evitado parar para contar foi essa que me aconteceu no final do ano passado, quando eu estava no Rio de Janeiro, dentro de um mercado. Era um comércio bem simples, um supermercado, sim, dentro das devidas proporções, mas um mercado de bairro, muito comum naquelas áreas igualmente simples da cidade.
Eu estava na fila do caixa com uns refrigerantes e mais adiante, uns três clientes à minha frente, havia uma mulher com sua filha, que devia ter uns 10 anos aproximadamente. Quando chegaram ao caixa mãe e filha cuidavam de tirar do carrinho as compras para serem registradas, cada uma pegando um produto e colocando no balcão. Foi então que eu pude ver que desde o início a menina trazia nas mãos um pacote de biscoito recheado, de chocolate, aqueles cujas embalagens são cheias de detalhes e que trazem fotos mostrando justamente o recheio.
Indecisa sobre a hora certa de colocar o biscoito no balcão, a menina olhava pra mãe, como que perguntando quando podia passar o pacote. A mãe por sua vez fazia sinal com a mão, como se pedisse calma, indicando um “ainda não” sem qualquer palavra, apenas com os olhos. A menina então tornava a pegar os outros produtos do carrinho.
A essa altura a moça do caixa percebeu o mesmo que eu: que a mãe iria passar as compras e, se sobrasse dinheiro, aí sim, levaria o biscoito para a filha. Apreensivos eu e ela, mais ela que estava de frente para aquela maldita máquina, inflexível, que só aumentava os valores das compras, nós nos olhávamos de tempos em tempos considerando telepaticamente que do jeito que ia aquela registradora a menina ia acabar ficando sem o seu biscoito.
A mãe, por sua vez, concentrada nos números do painel e no dinheiro, pois que sabia exatamente a quantidade que trazia, conferia a sua lista escrita em um pedaço de papel, o que só aumentava o suspense e a nossa ansiedade. De repente ela fez um sinal para a filha e a menina, toda contente, entregou o biscoito recheado para a moça do caixa. Imediatamente a caixa registrou e devolveu o pacote pra menina, isso não sem antes me olhar e eu vi que ela também mostrava um sorriso aliviado, ao qual eu retribuí integralmente.
Atrás de mim, um senhor disse para alguém na fila que estava decidido a pagar ele mesmo o biscoito da menina caso a mãe não tivesse dinheiro. E então eu percebi que todos nós estávamos ali paralisados, torcendo pela menina que só queria o seu biscoito recheado. Para nós, naqueles longos minutos recentes, parecia que todo o som em volta era apenas ruídos difusos e que as pessoas dentro daquele mercado eram meros figurantes da vida.
A vida mesmo, de verdade, eram aqueles olhos. Os da mãe e da filha, uma relação de amor que eu jamais conseguiria explicar. A vida em volta da gente, ali, era um pequeno milagre que poderia ou não acontecer, como tantos que são vividos por tantas meninas e meninos, em tantos outros supermercados neste mundo e que se torna milagre justamente por raramente acontecer.
Então, quando chegou a minha vez, a moça do caixa se apressou em dizer:
- Eu vi que o senhor estava aflito ali. Eu sei bem o que é isso. Eu sei o que é ter menino em casa. Eu tenho três. Aposto que o senhor tem menino em casa também.
Eu queria responder. Queria contar umas coisas para ela, talvez a minha vida toda até chegar ao dia em que aquele diálogo começou, na fila do supermercado. Mas eu só consegui sorrir de novo, peguei o meu troco e saí.
No caminho até a casa da minha mãe eu me lembrava do rosto da menina do biscoito. Da sua resignação enquanto esperava o veredito da mãe. Foi então que eu lembrei da minha infância, dos biscoitos que eu dividia com o meu irmão, e eles nem eram recheados! Depois pensei na minha mãe, nos biscoitos que ela me deu a vida toda, sem deixar eu perceber a dificuldade que devia ser para ela dizer o seu maravilhoso sim para mim. Eu andava para casa e novamente a menina alegre me sorria. Linda e feliz com o seu pacote de biscoito.
Se cada coração é uma casa, sim, eu tenho menino em casa. E são dois. É o que eu respondo agora.

domingo, 9 de março de 2014

Tony



Um dos caras mais legais que eu conheci na Bahia foi o Tony. Assim que eu cheguei a Salvador ele foi logo dizendo que adorava o Rio de Janeiro e que mesmo sem ter jamais ido lá, aquela era a sua cidade favorita.
Ele gostava muito de ouvir o sotaque carioca e, de vez em quando, entrava na minha sala no meio do expediente, do nada, parava do lado da minha mesa e simplesmente dizia:
- E aí carioca, fala alguma coisa aí pra eu ouvir.
- Como assim, falar o quê?
- Nossa, esse sotaque de vocês é muito massa.  Tá vendo só? É muito legal – e ia de volta pra sua sala, todo feliz.
- Quem tem sotaque são vocês, baianos – dizia eu, enquanto ele ia pelo corredor.
A gente trabalhava na mesma empresa e ele era do RH. Na verdade, naquele tempo era Departamento Pessoal, que depois as empresas passaram a chamar de Recursos Humanos e hoje virou Gestão de Pessoas, mesmo que a gente seja tratado cada vez menos como pessoas e cada vez mais como números. Algum administrador recém-formado, na certa, decidiu que bastava mudar o nome das coisas, das seções, para que elas funcionassem como deviam.
Enfim, falta ainda dizer que o Tony era, como todo bom baiano, batizado como Antônio Carlos, em homenagem àquele que foi o político mais escroque e malvado da Bahia e que, mesmo assim, tinha um monte de gente que gostava dele. Vai entender!
Mas como eu ia dizendo, lembro de várias vezes o Tony entrar na minha sala só pra papear e ficar rindo do jeito que eu falava. Uma tarde ele entrou lá com um amigo. Me apresentou e emendou logo em seguida, apontando pra mim:
- Esse é o carioca que eu te falei.
- Fala alguma coisa aí, carioca, pra ele ver.
Eu ficava sem jeito e começava a falar qualquer coisa que me vinha à cabeça, enquanto ele brincava com o meu sotaque.
Nessas de ele sempre se divertir às minhas custas, uma vez eu estava falando no telefone com um amigo, também carioca, e falei que ele era um boiola. Pronto, assim que eu terminei a ligação ele disse que aquela era uma palavra maneira e que ele não conhecia. E perguntou o que queria dizer boiola, pois devia ser uma gíria do Rio que ele gostou muito e queria usar também.
- Boiola é quando o cara é assim muito legal, um cara gente boa, parceiro mesmo – disse eu, tirando o sarro tão esperado, tipo um troco por tudo que ele fazia comigo.
Uma semana se passou e um certo dia eu estava dentro do Banco do Brasil, acho eu que ia pagar alguma conta. No segundo andar da agência ficavam os terminais de extrato e no térreo os caixas. Ligando os dois pisos uma imensa escada rolante, fazendo com que a agência mais parecesse um shopping.
Tirei o meu extrato e quando eu estava descendo a escada o Tony, lá embaixo, da fila do caixa, me avistou. Bem, ele não só me viu como fez a sua saudação a plenos pulmões, pra toda a agência ouvir.
- Fala amigo Anderson, grande boiola. O carioca mais boiola daquela cidade maravilhosa. Entra aqui na minha frente, meu rei.
Eu só me lembro que toda a agência parou e se virou pra mim, pra ver quem era o tal boiola famoso. E além de rir de mim mesmo, na minha cabeça eu só pensava em quantas pessoas ali naquele banco sabiam o significado da palavra boiola e como estariam me olhando naquele exato momento.
Até chegar lá perto dele, fui pensando que, no fundo, eu sabia que uma hora aquela história não ia dar certo. Só não imaginava que o feitiço se viraria justamente contra mim.  Grande Tony.


Para o meu amigo Noronha - que também é Antônio - que gosta muito desta história, e que poderia também ser Tony.