quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Torcida


Certo jornal do Rio de Janeiro promoveu, pelos idos de 1973, um torneio de futebol de salão entre os bairros da cidade. Era uma promoção dos encartes regionais que o jornal havia criado recentemente, tipo caderno zona sul, baixada fluminense etc, e qualquer time poderia participar, desde que não tivesse na sua relação de atletas qualquer jogador federado ou em fase de profissionalização.
A cidade só falava nisso e eu, com cerca de 12 anos, estava eufórico pra assistir aos jogos, ainda mais que o pessoal da minha rua estava pra lá de animado. Lembro que se reuniram um dia lá na porta da minha casa para listar quem seria convocado, quem ia inscrever o time, quem ia ver a questão dos uniformes, pedir apoio financeiro na padaria ou no barzinho da esquina e batizar o time, entre outras coisas.
Eu conhecia todos os craques da rua. Não jogava junto com eles porque era muito pequeno, mas quando tinha jogo deles, ali na rua mesmo, eu ficava só olhando sentado em cima do muro. Nós, os meninos mais novos, só jogávamos entre nós e alguns que se destacavam, como prêmio, passavam a jogar com os adultos nas peladas dos finais de semana, que era tipo o jogo principal.
Depois de o grupo definido convidaram o meu pai pra ser o técnico e eu gostei porque, sendo ele obrigado a ir aos jogos eu também não perderia nenhum. Na verdade eu admirava mesmo aqueles boleiros e ainda hoje sou capaz de lembrar algumas jogadas deles, do tipo físico de muitos e até da maneira de jogar de alguns. Para mim era um timaço e seria difícil aparecer um outro tão bom quanto aquele.
O torneio então foi amplamente divulgado e como eram muitos times inscritos o jornal reservou com a prefeitura todas as quadras do Aterro do Flamengo, que são muitas, para receber as partidas iniciais do certame, que eram eliminatórias.
O nosso time foi sorteado pra enfrentar o Senador Camará, que representava aquele bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Considerada uma área violenta, vizinha de Bangu e Realengo, era um local que os cariocas chamariam de barra pesada. Então, num sábado de manhã, eu estava lá no Aterro junto com alguns vizinhos para assistir ao jogão Ramos x Senador Camará, pela Copa dos Bairros.
Foi emocionante ver o time todo uniformizado, se arrumando para o jogo. Aquelas caras conhecidas lá da rua pareciam ainda mais com os craques que eu só via pela televisão ali dentro de uma quadra, de uniforme completo, roupa de goleiro e tudo, com bolas novinhas, juiz, trave com redes, praticamente um cenário profissional.
Os jogadores se cumprimentaram cordialmente e o jogo ia começar. O juiz reuniu todos eles no centro da quadra pra dizer alguma coisa que eu não pude ouvir da pequena arquibancada, mas certamente foi algo ponderado, pois todos voltaram a se cumprimentar e tomar as suas posições.
Pelos primeiros cinco minutos de jogo tudo levava a crer que íamos dar de goleada. Os passes rápidos e precisos, a bola rodando ágil de pé em pé, as infiltrações, o rodízio das posições faziam do adversário um mero espectador, já que eles só podiam mesmo ver a bola, mas sem conseguir sequer tocar nela. Fechando este primeiro espetáculo de pura perícia futebolística, Alfredo marcou o primeiro gol do jogo, levando a realidade da goleada a ser apenas uma questão de tempo. Um tempo que parecia que nada poderia mudar ou influenciar, tamanha era a diferença de técnica e talento entre os dois times.
Dez minutos e ainda um a zero. A marcação deles apertou um pouco, surgiram os primeiros dribles, o técnico pediu garra e eles tomaram uma bola no meio da quadra, partiram num dois-contra-um para o ataque e putz, marcaram o gol de empate. Até aí nada, um gol de empate não ia abalar a nossa superioridade. Não ia, a não ser pelos tiros para o alto que a torcida adversária passou a disparar durante a comemoração.
Todos nós ficamos paralisados. Parecia que tinham usado aquele efeito câmera lenta na vida, sem som ambiente. A gente se viu ali, sem ação, vendo os tiros saindo das armas apontadas para o alto. Um olhava pro outro tentando entender, mas era tudo muito confuso. Foi enfim uma longa cena. Uma desconcertante cena, das mais sinistras.
Nosso time foi eliminado naquele primeiro jogo, perdendo por 4 a 1. Nossa torcida não deu mais um pio até o final e a gente perdeu todas as divididas, todas as tabelinhas foram mal feitas, os passes se perderam pelas laterais da quadra e o meu pai, ali técnico e pai, repetia apenas um “está bom”, meio sem jeito, batendo palmas na beira da quadra e torcendo, assim como nós, pelo fim do jogo.
Na volta pra casa a única certeza que a gente tinha era de que perder aquele jogo foi a melhor coisa que podia nos acontecer. A gente olhava um pro outro, procurando nos resignar, e rapidamente cuidamos de combinar uma grande e verdadeira pelada para o dia seguinte, domingo, em frente à minha casa, que era o nosso melhor parque de diversões e onde a gente só corria o risco de machucar o dedão do pé nos paralelepípedos que teimavam em se desalinhar e em desafiar a nossa habilidade com a bola no pé descalço.
Perdemos aquele jogo, sim. Frustramos alguns sonhos, é verdade. Mas ficamos todos bem.