sexta-feira, 4 de abril de 2014

O Autógrafo


Estar diante do ídolo, do mestre, é algo indescritível. Contar a alguém esta emoção é também uma aventura pelo exercício de relembrar os sentimentos e como tudo se passou, de uma forma tão mágica que hoje faz parecer que tudo aquilo foi só um sonho. E daqueles sonhos bons, devo dizer.
O ano era 1997. Novembro para ser preciso. Eu estava no cinema Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, sentado no meio de uma plateia de umas 500 pessoas, que compreendia toda a capacidade da sala, mais os espaços do chão, das escadas, dos corredores e os que rodeavam o balcão, estes últimos inclusive tomados por felizes espectadores de pé. Naquela noite José Saramago estava promovendo o lançamento do seu livro Todos os Nomes bem ali na minha frente, em carne e osso e aquele seu sotaque português, um falar composto por pausas e construções desconcertantes para um jovem de trinta e poucos anos.
Jamais pensei que um dia seria tiete de alguém a ponto de ficar paralisado diante da sua presença. Mas ali naquela hora eu nem pensava nisso. Depois das apresentações de praxe subiram ao palco nada menos que duas das nossas principais atrizes. Marieta Severo e Fernanda Montenegro foram convidadas para ler uma passagem de um livro do escritor. Lembro que Fernanda leu um trecho do livro estreante, Todos os Nomes, em que um pastor de ovelhas narra o singelo hábito de trocar as placas de identificação dos túmulos daquele cemitério em que seus animais costumam pastar.
Como eu já tinha lido o livro sabia até as partes em que as pessoas iriam rir. Por isso ficava olhando em volta, esperando pra me divertir com as variadas reações da plateia. Foi assim também com o trecho lido pela Marieta que, inclusive, era de um livro mais antigo. Fechava a noite a palestra do próprio escritor, anunciada que foi por uma salva venerável de aplausos e seguida de um reverencioso silêncio, a ponto de fazer mérito à nossa pobre educação brasileira.
O mestre falou por uma hora, creio eu, embora na minha memória o registro fosse de breves e escassos minutos. A certa altura, falando sobre o injusto mundo que criamos todos nós, de exclusões e valorizações do consumo, do dinheiro e da exploração deste em todos os sentidos, nos revelou não ser mais filiado ao partido comunista português por não crer mais naquele sistema que, de tão utópico, já tinha se exaurido em quase todo o planeta.
Por outro lado contou à plateia que ainda aproveitava aquela mesma sigla, PCP, para enquadrar a sua nova ideologia, percebida a partir da crueldade com que vivemos, toda a humanidade, cientes da fome que ainda promovemos na África e em outros locais desprezados pelo capital. Era o Partido dos Cidadãos Preocupados, cuja ideologia fazia com que os amigos o considerassem um homem pessimista. Ele então dizia que bastava ao interlocutor olhar em volta, perceber a grande massa de pessoas que estão a sustentar a riqueza de uma minoria. Se isso não era razão para pôr-se preocupado, menos ainda para ser risonho, feliz e contente, displicentemente a negar uma realidade feia que a muitos incomoda, pois não. Se ser pessimista significava ser preocupado com o rumo que a humanidade está trilhando, que fosse. Melhor isso a ser alegre e alienado, um bobo feliz, que é o que mais se vê nas mídias eletrônicas atualmente. E assim os aplausos ressurgiram ainda com mais força e foram mais e mais quando o locutor anunciou o fim da palestra.
A organização da editora se deu conta, em certo momento, de que a fila dos autógrafos estava grande demais e um funcionário passou pedindo que colocássemos apenas o nosso nome em um pedaço de papel, de modo a facilitar o trabalho do escritor em atender todos os seus fãs. Eu fiz o que foi indicado, mas quando então chegou a minha vez deu-se a surpresa. Saramago pegou o meu livro, abriu na primeira página e viu que no papel onde deveria estar o nome estava escrito “Pessimista Anderson”.
Ele leu, olhou para mim com um leve sorriso e fez a sua assinatura. Ao me devolver o livro, levantou-se e apertou a minha mão, me olhando nos olhos, como se fôssemos do mesmo partido, o PCP. Não sei como consegui, mas apertei-lhe a mão como se recebesse uma graça e apenas disse obrigado, já com a voz falhando de emoção. Quando eu passei de volta pela fila, ainda atônito, pude perceber que a concessão do mestre em levantar da sua cadeira não tinha sido surpresa só para mim.
De vez em quando, em casa, eu abro aquele livro e fico admirando a sua caligrafia, o meu nome escrito por ele, as letras juntas ali. E lembro dos seus olhos, tão próximos de mim, a sua fisionomia de satisfação e surpresa quando leu o meu “nome”. Foi tudo tão extraordinário que nem o mais pessimista dos homens poderia imaginar. Nem os do PCP.