quinta-feira, 1 de maio de 2014

Deus Errou Feio


Deus perdeu, neste fim de semana, uma boa chance de dar um basta na Terra. Se eu sou imagem e semelhança do Criador, me acho no direito de dar-lhe uns bons conselhos, ao menos nessa hora de profunda amargura por que passo. Não porque me ache capaz de tal acinte, mas porque gostaria de dizer, cara a cara com Ele, que apesar da imagem e semelhança, sentenciada na Bíblia, nós homens, não temos o discernimento nem a sabedoria para entender alguns de seus atos.
Como entender o fato de fazer desaparecer o nosso Ayrton, homem cheio de promessas e glórias já conquistadas, em pleno êxito de sua carreira?  Como crer que isso não foi uma punição entre tantas injustas, impostas ao já tão sofrido povo do Brasil?    Um cara que só fez distribuir bondade e exemplo pra todos nós, Ayrton é autor de sublimes fatos marcados pela pura simplicidade, e por isso mesmo nos tocou a todos que tivemos o privilégio de viver na Terra na mesma época em que ele. Senna, certa vez, encontrando na França uma revista com uma reportagem sua, onde havia uma foto de seu caseiro, trouxe a revista para o empregado, como um presente sem valor comercial, daqueles que só os amigos se dão.
Deus perdeu, neste fim de semana, uma boa chance de dar um basta na Terra.    Minha tristeza há de ser, nessa hora, o meu perdão salvador.
Deus poderia, no último instante da constatação da morte do nosso piloto, salvá-lo. Sim, simplesmente salvá-lo, bem à frente dos olhos dos incrédulos especialistas italianos e de todo o mundo que lamentava o acidente. De repente, o paciente recobraria os sentidos e inexplicavelmente, recomeçaria a viver. Daí em diante Ele próprio, Deus em pessoa, surgiria aos olhos de todos e diria que aquilo era um momento de reflexão para o mundo todo. Diria tudo que está engasgado na sua garganta há muitos séculos:  Que a humanidade precisa recomeçar a ser humana; que Ele não é posse de nenhuma religião, pois nenhuma delas, nem a que não acredita na vinda de Seu Filho,  nem a que aguarda ansiosa o seu retorno, nenhuma é a dona da verdade. E que muito menos Jesus, Maomé, Buda, Ghandi, Bahau La e Jeová são causa para que estas crenças fomentem guerras e se matem por isso. Basta de tanta ignorância, diria Ele!!!
O Deus de todos, abençoando a Terra, lembraria que os homens estão aqui justamente para fazer o contrário do que estão se acostumando a fazer e que a escala evolutiva humana não passa pelo ódio, a matança, o racismo. A graça de Deus é a vida, completaria, olhando nos nossos olhos.
O mundo estarrecido, vendo Senna revivo ao lado do Criador, se recolheria e, tal como um pano que cai desvendando um enorme espelho, se veria face a face com sua individualidade, a qual enfim, fraternalmente chocada, olho no olho da imagem refletida, pediria com os olhos cheios, desculpas pela vergonha de estar desnuda de racionalidade e, diante do Deus, Pai enfim, pediria uma nova chance de tentar ser humana novamente.
Deus, por fim, acalmaria os médicos, ainda incrédulos, estenderia a mão e diria com sabedoria para que Ayrton ficasse em Paz. E se ia, desaparecendo numa nuvem.
Eu acordei, hoje cedo, nesta segunda-feira inacreditável, com vontade de chamar Deus para uma conversa. Queria que hoje fosse novamente domingo, o domingo de ontem. Um primeiro de maio sem acidentes, sem corrida, sem lágrimas... Ou então que Deus ouvisse esta minha oração meio sem jeito, meio sem rima, que deseja um basta, e que pede vida para o mundo, para Senna e para mim, que já nem sei mais chorar direito.
Deus perdeu, neste fim de semana, uma boa chance de dar um basta na Terra. E como perdeu...

Salvador, 2 de maio de 1994.