sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A Lição


Quando eu cheguei em casa com o meu pedal para violão e o adaptador novo e ele não funcionou eu pensei: pronto, o que queimou então foi o pedal mesmo e não o conversor elétrico, como eu achava. Já estava medindo e prevendo o prejuízo e lembrei de, como último recurso, levar em uma loja de consertos elétricos pra ver se o técnico me dava alguma solução que não fosse comprar outro pedal, um tanto caro em relação ao adaptador, até então onde eu achava que estava o defeito.
Estranhei logo de cara quando entrei na loja e vi uma senhorinha, cabelos branquinhos, com alguns tons de azuis até, óculos de leitura e muita delicadeza, atendendo no balcão, usando aqueles medidores de voltagem e analisando um aparelho de um cliente. De longe eu fiquei quieto esperando pela chegada do dono, que eu já conhecia e sabia da competência.
- O seu Édison? – perguntou a senhora de cabeça baixa, sem tirar os olhos do voltímetro.
- Ô menino, estou falando com você – era comigo.
E emendou:
- Tá esperando o seu Édison? Ele não vem hoje de manhã não. Posso te ajudar?
Do alto do meu preconceito eu dei uma gaguejada, notadamente contrariado por ser ela a me atender, e disse que era o meu adaptador do pedal, que devia estar queimado e que eu queria verificar com o seu Édison.
Na verdade eu achava que aquela senhora devia estar ali na loja, durante a ausência do técnico, somente para pegar os serviços e repassar pra ele. Por mim ela não tinha a menor capacidade, nem conhecimento para fazer qualquer serviço elétrico, mesmo os mais simples.
Ela, então, foi bem direta:
- Espere um pouco que eu vejo isso pra você.
Eu já estava pensando em uma desculpa qualquer pra voltar em outro horário, pra falar com o próprio seu Édison, mas ela acabou o outro serviço e me chamou ao balcão.
- O que é isso aqui? – perguntou olhando o material que eu trazia.
- É um pedal de efeitos sonoros pra violão. Ele faz uns timbres diferentes e muda o som do instrumento. Esse aqui é o adaptador de corrente, pra 12 volts. Mas nada funciona. O antigo partiu o fio e eu comprei esse novo aqui, mas não liga nada, fica tudo apagado.
Ela pegou, virou, mexeu na peça, conferiu alguma coisa no voltímetro e disse:
- Ãhã... muito bem... Foi você que comprou esse novo?
- Sim, fui eu, ali na galeria. É da mesma marca e é igualzinho ao antigo. Tem algo errado? – disse de má vontade.
- Você comprou errado. O polo positivo deste aqui é invertido do seu pedal. Esse conector é negativo fora e positivo por dentro. E devia ser positivo fora e negativo dentro. Entendeu? Eu vou pegar um aqui do estoque e te mostrar.
Ela foi na prateleira, pegou uma caixinha, com agilidade tirou o adaptador de dentro, veio ao balcão, ligou o meu pedal e então ficou ali, olhando firme pra minha cara.
- Tá vendo? Ligou. Não tem nada queimado aqui. Nem o pedal, nem o adaptador. Você só comprou o tipo errado e não viu que os polos eram trocados. Isso acontece muito.
Diante da educada explicação da senhora eu vi o quanto preconceituoso eu estava sendo. Era uma bela de uma lição que eu estava tomando e eu, meio atônito, passei a julgar o meu próprio comportamento como reprovável e até um sentimento de vergonha me veio de repente.
Mas ainda tinha o gran finale.
- Quanto o moço pagou neste seu adaptador?
Um tanto confuso com a pergunta eu respondi:
- Acho que foi 35 Reais.
- Esse que eu vendo custa 40. Mas faz o seguinte, eu fico com o seu e você leva esse meu, e fica tudo certo. Eu acabei de tirar da caixa. É novinho assim como o seu, pode ficar tranquilo.
Eu tentei pagar os cinco reais da diferença, mas eu realmente não tinha argumento bastante, diante da negação daquela competente senhora em aceitar. O que me coube então foi somente agradecer, guardar bem tudo o que aconteceu ali e aprender mais esta. As lições estão por aí, na nossa vida, aos montes. É que muitas vezes a gente não percebe o quanto elas são ricas. E inesquecíveis.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O Último Comício


Sabe aquelas narrativas em que o autor adverte que mudou os nomes das pessoas ou que a sua história não tem nada a ver com a realidade, ressalvando as meras coincidências que, porventura, possam vir a acontecer? Pois bem, no caso deste relato, que não vem a ser uma obra de ficção, já que é tudo verdade, eu optei por omitir os nomes das pessoas e da cidade, de modo a não comprometer ninguém.
Dito isto, vamos a ele. Estava eu indo a uma reunião de trabalho em uma cidade do interior de Santa Catarina. O compromisso era no dia seguinte, bem cedo, e por isso fomos, eu e meu chefe, no dia anterior de modo a amanhecermos dispostos e pontuais na tal reunião.
Só que chegamos à cidade de noite e era um período de eleições, sendo que naquela noite celebrava-se o último dia de campanha política e era também a última oportunidade para os famosos comícios de encerramento. Não sei se a maioria das pessoas sabe o que significa um comício em uma cidade do interior, com poucos habitantes, onde todos se conhecem etc. Mas enfim, naquela noite a cidade estava toda na rua, cada eleitor no seu comício preferido, aplaudindo o seu candidato idem.
Lembro que fui dormir bem tarde, pois os sons amplificados, tanto dos discursos como das músicas dos artistas convidados – sim, havia artistas convidados –, nada disso tinha um alcance pequeno, de modo que ecoavam por toda a praça central, onde ficava o nosso hotel, os vários comícios espalhados pela cidade, principalmente os dos dois candidatos principais: o atual prefeito e o seu opositor ferrenho de muitos anos que alternava com ele o poder de tempos em tempos, coisa típica de toda boa (ou ruim) cidade do interior.
Na manhã seguinte o assunto na cidade, e na nossa reunião, foi o comício do atual prefeito, que teve o seu encerramento antecipado por causa de um início de quebra-quebra bem antes do final. Nem mesmo a música dos cantores convidados deu jeito de restabelecer a paz.
O fato foi que o atual prefeito chamou para o seu comício três convidados de peso. Eram três figuras ilustres da cidade que deram bastante importância ao ato em si, mas que nas palavras do amigo que nos contou o incidente tiveram, digamos, pouco tato nos seus discursos.
Instado pelas palavras do prefeito, que em seu pequeno currículo se vangloriava de ser uma pessoa que veio de baixo, do povo, o primeiro convidado iniciou dizendo:
- Boa noite pessoal. Eu queria dizer a todos que eu também já fui um merda, assim como vocês – e apontou para o público.
Estupefatos os políticos em redor e indignado o público presente, todos passaram a gritar fora, fora, com xingamentos em franca expansão e volume, de modo que os correligionários, cabos eleitorais e demais assessores ali, de prontidão, trataram de retirar o cara do palco, não sem antes travar uma pequena batalha com o mesmo para tirar-lhe o microfone das mãos.
O segundo a falar, tomando o devido cuidado com as palavras, se mostrou eloquente e convincente. Preciso nas construções frasais, o sujeito utilizava até os plurais no lugar certo, coisa rara no mundo eleitoral do interior, conforme nos relatou o amigo local. Então, no final, em grande estilo, relatando uma a uma as qualidades do atual prefeito ele finalizou:
- É por estas e outras, e por ser ele um candidato lídimo que eu peço o voto de vocês ao nosso amigo fulano de tal – e disse o nome do candidato errado, da oposição.
O furdunço voltou então a se iniciar rapidamente. A galera das primeiras filas começou a adjetivar a mãe do orador, o próprio prefeito correu pra lhe arrancar também o microfone das mãos e surgiu um coro de vendido e filho-daquela, em pleno comício.
Afastado novamente pelos seguranças e assessores, em meio a um caminhão de desculpas pela falha na troca do nome, o homem foi levado direto para o bar mais próximo, de modo a esquecer o opróbrio de há pouco e que viria a acompanhá-lo ainda por muito tempo.
Neste ínterim já estava com a palavra o terceiro e último – ainda bem – convidado do prefeito. Era um conhecido dono de restaurante da cidade. Um tanto nervoso ele começou falando do início de carreira do prefeito, quando este começou na vida pública, e relembrou as vezes em que ele próprio, ainda um simples garçom no mesmo restaurante, servia as mesas e também muitas vezes serviu o candidato e atual prefeito.
Nas primeiras filas novamente começou um burburinho ameaçador, dando conta de que aquilo era mentira dele, pois na verdade todos sabiam que ele servia as mesas, sim, mas o restaurante era do seu pai. Então como dizer que começou de baixo daquela forma, se o restaurante também era seu por direito?
No meio da sua fala surgiu então o primeiro grito, de um velhinho:
- Deixa de conversa fiada, seu tanso, você não era garçom nada, o restaurante era do seu pai, ô istepô!
Ao que ele prontamente respondeu:
- Sua cambada de pobre do cara...o, vocês são todos uns fudi...s e ficam aqui atrapalhando a fala da gente. Vão todos pro diabo que os carregue  e jogou o microfone no chão com toda a sua força.
O corre-corre se deu mais uma vez, e alguns puderam ver um início de briga na plateia. Os cabos eleitorais por sua vez já não sabiam bem o que fazer e o prefeito fez um sinal salvador pra banda começar logo com a música.
Foi assim que se acabou a noite do último comício daquela cidade do interior. Vale dizer ainda, não como anedota, mas como verdade verdadeira que, mesmo assim, o prefeito foi reeleito. Não se sabe como ficou a amizade dele com os três aliados ou ex, mas isso a gente pode deixar pra ver quando chegar a próxima eleição. Aposto que todos estarão juntos novamente. Só não sei se haverá microfone pra todos. Mas aí já é uma outra história.