quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A Negociação


Eram dois irmãos. Um, artista plástico, pintor, e o outro, corretor de imóveis. Toda vez que o corretor fechava um novo negócio presenteava o seu cliente com um quadro do irmão, o que ajudava a divulgar o trabalho dele e, enfim, era um presente clássico, uma obra de arte, sempre bem recebida por quem quer que fosse o agraciado.
Certa vez um casal tradicional da cidade comprou com este corretor um apartamento em uma área nobre, em um condomínio dos mais caros de Florianópolis, em plena Avenida Beira-Mar Norte. Um dos metros quadrados mais valorizados da ilha, o negócio merecia pois um grande presente, uma tela de grandes proporções, no mesmo nível da comissão que a compra proporcionara ao corretor.
De fato, o quadro destinado ao cliente era dos mais expressivos do irmão-artista, uma tela cujos elogios foram tomando proporções de grande interesse a ponto de o comprador pedir ao corretor que mostrasse outras obras do seu irmão de modo que ele pudesse analisar uma possível compra de outras peças para o novo apartamento, que estava já em fase de finalização das obras.
Pois então, em data previamente agendada, o casal recebeu o próprio pintor no novíssimo apartamento, quase todo decorado, que já contava com mobílias, cortinas, além é claro de um lindo quadro na mais destacada parede da sala, o que sem dúvida fez surgir um sentimento de lisonja no seu autor. No canto da sala, uma enorme tevê de plasma, ainda uma novidade nos lares brasileiros, era instalada pelo homem da operadora a cabo, que juntava os fios e se despedia do casal com todas as formalidades que o serviço obrigava.
A senhora levou o instalador até a porta e na volta, com notável elegância, se postou ao lado do marido para tratar da negociação da compra dos quadros. Na conversa, que já se iniciava, o pintor falava sobre a sua carreira, sobre o irmão corretor que mencionou o interesse do casal sobre o seu trabalho, as suas influências artísticas e também informava que trouxera com ele umas poucas obras, três na verdade, e que poderiam ficar com eles para análise até que a compra fosse efetivamente definida, não só em termos do preço de cada obra, mas também quantas e quais seriam as escolhidas.
Os quadros estavam acondicionados adequadamente para garantir a segurança no transporte e os preços foram passados em uma pequena ficha técnica que também ficaria com o casal, para a decisão de ambos quanto à compra.
Foi então que no meio da conversa, do nada, o homem pegou o controle remoto da tevê e passou a mostrar as qualidades e as funções tecnológicas do aparelho recentemente instalado. Falou da possibilidade de gravação, da programação remota, do som, da imagem espetacular e foi mudando os canais um depois do outro, sem nem saber quantos eles eram ao todo.
De repente, como se fossem coisas combinadas, o número sintonizado era um canal pornográfico, o som ficou ainda mais alto e, tudo junto ao mesmo tempo, o controle parou de funcionar, deixando aquelas imagens grotescas à vista do casal e do artista que não sabia mais para onde olhar, o que fazer e o que dizer.
O marido, morto de vergonha ao ver o desempenho do casal na tela enorme da tevê, batia no controle remoto e olhava pra mulher, igualmente desesperada, já que o som que vinha da cena era algo insano, animal mesmo, com gemidos e grunhidos e os barulhos dos corpos em volúpia. Se tivesse ali um buraco no chão talvez todos se jogassem juntos naquele mesmo instante.
Parado o tempo, estáticos os três, nem se sabe direito qual dos dois donos da casa correu até a tomada e puxou todos os fios juntos da parede abruptamente.
Mesmo assim, o silêncio que se fez foi igualmente desconcertante. Um espesso desconforto pressionava a todos naquela sala. O marido saiu para o corredor do apartamento, calado. A esposa o seguiu de pronto, voltando poucos minutos depois, sozinha, pra dizer ao pintor que aguardava:
- Meu marido vai comprar todos os seus quadros. Nem é preciso abrir os pacotes. Nós somamos o total e aqui está o cheque.
O artista pegou o cheque, olhou pra ele, automático, sem sequer ler e saiu da casa, ainda mais atônito. Só depois de muitos anos é que conseguiu contar a verdade ao irmão, sobre como tinha sido “boa” aquela negociação.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A Lição 2


Todas as vezes que a corda da minha raquete de tênis arrebentou eu tinha alguém, um amigo, mais experiente, que entendia do assunto pra levar e trocar pra mim. Eu deixava a raquete com ele e depois ele me devolvia com tudo certinho e eu só pagava o que ele tinha gasto. Uma beleza.
Só que desta vez foi diferente. Eu me deparei com a obrigação de decidir qual a corda que eu vou comprar, qual a ideal para o meu estilo de jogo (hein?), com qual calibragem esta corda deve ser colocada em relação às características construtivas da minha raquete e, por fim, qual os parâmetros de durabilidade que eu vou querer que a minha corda tenha, considerando o tempo que eu vou usá-la. Eu só sei é que, normalmente, minhas cordas duram muitos meses, ao contrário dos jogadores top, que usam duas, três raquetes no mesmo jogo e mandam encordoar, cada uma, novamente para o jogo seguinte.
Enfim, eu estava num mato sem cachorro, sem raquete e sem corda. Foi então que eu pensei que levando o problema a uma loja especializada eu pudesse ter uma ajuda competente, à altura das minhas dúvidas que, naturalmente, eram muitas, ou melhor, eram todas.
Na loja, dois atendentes do setor de tênis vieram com a conversa de que eu já deveria saber isso, pois quem joga tem de saber qual corda usa etc. E disseram também que a pessoa certa pra me ajudar era a Camila, pois ela sim é que sabe tudo e poderia me orientar. Mas ela ainda não estava na loja.
Durante a pouca espera em que eu circulei pela loja pude ver de longe os dois vendedores falando com uma menina que chegou. Como estava com o uniforme da loja presumi que fosse a tal Camila e fui então ao encontro dela.
No caminho juro que minha descrença só aumentava. Primeiro ao ver que era uma menina, de uns vinte e poucos anos. Qual a experiência que ela teria? Depois, com certo preconceito, notei que ela era baixinha e que não tinha a menor aparência das jogadoras que a gente está acostumado a ver. Pra mim ela até poderia conhecer os produtos que a loja vende, as marcas e tal, mas ela jamais saberia, pela pouca idade que tem, dos meandros do jogo em si, os tipos de jogadores, as variações em termos de raquete, corda e tal. Ela nunca deve ter sequer empunhado uma raquete numa quadra, pensei comigo.
Assim que a Camila começou a falar eu quis lhe pedir perdão. Diria a ela que fui preconceituoso e pré julguei a sua aparência e idade. A menina era uma técnica, uma sumidade em matéria de tênis. Logo de início ela pegou umas cordas da prateleira e me mostrou uma a uma. Falava com total desenvoltura sobre como adequar a corda e a raquete ao tipo de jogo de cada um.
Depois ela abordou também os temas tensão das cordas, os componentes dos materiais e o controle, a durabilidade e a potência, estabelecendo as relações entre cada um deles, de modo que eu avaliasse as minhas preferências quanto a necessitar de mais força ou mais controle da bola, se meus golpes eram longos ou curtos e se eu preferia sacar mais forte ou mais colocado. Eu estava atônico e constrangido ao mesmo tempo, sem capacidade para responder a maioria das perguntas dela.
Como peladeiro de final de semana, o meu tênis não está à altura de uma especialista como a Camila e, portanto, nem dez por cento do que ela me explicou eu iria usar pra escolher a famigerada corda, sobre a qual eu nada sabia. Tanto que eu quis procurar uma ajuda e agora vi que a ajuda era muito acima do que eu sou e sempre serei como tenista.
- Mas como você sabe isso tudo? – perguntei amável.
- Eu fui campeã infantil e juvenil no meu estado, o Paraná. Joguei acho que uns 10 anos como ranqueada do estado e participava de torneios pelo Brasil e até pela América do Sul, de vez em quando.
- E não joga mais?
- Vim morar em Florianópolis para estudar Arquitetura e parei de jogar em competições. Jogo de vez em quando, mas gosto mesmo é da parte técnica, dos treinamentos etc. Quem sabe um dia eu abro uma academia de tênis?
- Camila, é admirável o quanto você sabe de tênis. Agradeço muito mesmo pelo seu trabalho e sua atenção comigo. Agora, me desculpe se no início eu fui rude e duvidei da sua capacidade.
- Imagina. Isso acontece muito comigo. Essa é a minha competição atualmente. Os meus campeonatos hoje em dia são pra que eu seja aceita no meu trabalho, na minha faculdade, na minha vida. É uma batalha diária a gente ser negra e vencer a partir das nossas próprias qualidades.
Nós somos um país de negros. Historicamente os melhores esportistas brasileiros são negros. Mas nossos tenistas são todos brancos.
Nos desculpe, Camila.