quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A Calça Vermelha


Esta história aconteceu por volta do ano de 2011. As bandas adolescentes eram uma febre nas rádios e nos programas de auditório da tevê, com suas roupas multicoloridas, calças apertadas, óculos grandes, às vezes até sem lentes e um sem número de adereços que fazia dos Secos e Molhados do meu tempo apenas uma trupe, das mais caretas.
A música, por sua vez, era incomparavelmente mais pobre, sem a qualidade que chegasse minimamente aos pés do que era cantado por Ney Matogrosso. Resumindo, quanto à música a conversa é totalmente outra. Seriam assim outros quinhentos.
Pois bem, foi nesta época que o filho de um amigo chegou em casa todo animado dizendo que tinha uma festa de aniversário de uma amiga da escola. Dizia pra mãe que tinha que comprar uma calça nova e esta tratou de falar com o pai, pra ele dar o dinheiro. O menino devia ter uns 13 anos e uma festa da escola, com todos os colegas da turma, nesta idade, é a coisa mais importante do mundo, da vida.
O pai, por sua vez, mesmo achando aquilo um tremendo desperdício de tempo e, principalmente, de dinheiro, pois que o rapaz tinha um monte de calças, acabou convencido pela mãe a liberar o cartão para a compra. Então, mãe e filho foram ao shopping dias depois e cuidaram da tal calça que daria ao menino as condições ideais de traje pra ir à tal festa do colégio.
Os dias se passaram, a calça foi comprada e a roupa da festa estava planejada com uns quinze dias de antecedência, sendo que a mãe combinou com o menino de passar a ferro toda a roupa na tarde do dia da festa, pra que ele não ficasse todo amassado etc. Aquelas coisas de mãe.
Assim foi. Na tarde daquele sábado, enquanto o pai via o futebol na tevê, a mãe cuidava da produção da roupa do filho, do gel no cabelo, dos óculos que tinham a mesma cor da pulseira do relógio, os broches e, de quebra, combinou que ela própria levaria o filho na festa e depois iria buscar, tratando de pedir as chaves do carro ao marido.
Prontinho, arrumado do jeito que sempre quis, o menino, antes de sair, veio até a sala pra que o pai visse como ele estava bonito. Mostrou a calça vermelha, o tênis combinando e todo o resto, como se agradecesse a grana das roupas. Na verdade, o pai custou um pouco a perceber que o filho tinha ido ali só pra ele ver e elogiar e, diante da pergunta fatídica do menino, que vinha com um alegre “que tal?”, ato contínuo, o pai apenas respondeu:
- Bacana, com essa calça vermelha parece até o Tiririca.
No segundo seguinte o menino estava de volta ao quarto. Tirou a calça, toda a roupa, desistiu de ir à festa e foi dormir. Tudo isso sem dizer uma palavra.
A mãe ainda tentou conversar com ele, mas nada. Depois, partiu com fúria para a sala, decidida a repreender o quanto fosse o marido pelo modo cruel como falou com o filho. Só que quando chegou lá ela não conseguiu de jeito nenhum brigar com o pai. Sentado na beirada do sofá, com a cabeça segura entre as mãos, o homem era o retrato do desalento.
- Me desculpe. Eu só quis fazer uma brincadeira. Não era pra ele se zangar assim. Eu fiz tudo errado. Caramba!
Aquilo desarmou a mãe. O marido, entristecido pelo mal que fez ao filho passou a noite toda recebendo os afagos da esposa e também as dicas dela de como deveria proceder no dia seguinte. Antes de dormir ele ainda perguntou se o filho o perdoaria algum dia, ao que a esposa respondeu que aquilo ia passar, que ele não se preocupasse, que era só coisa de adolescente.
Quando meu amigo contou e comentou este episódio comigo eu senti que ele ainda estava por demais arrependido. No fim, já mais descontraído ele disse:
- Meu filho é lindo, cara! Um sujeito bonito ele vai ser. E nem precisava daquelas roupas coloridas.
E eu, entendendo que ele ainda tinha coisas a dizer ao filho, arrematei:
- Bem, eu acho que isso é uma coisa que você tem que dizer a ele, o quanto antes.
O que meu amigo nem desconfiou é que eu também estava com saudade do meu filho. E que eu suspeitava ter dito poucas vezes a ele, o quanto eu o acho lindo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A Bossa Nova de Caetano


Eu queria muito que meus filhos também tocassem violão. Eu e meu irmão, que é o artista da família, temos um primo mais velho e foi ele quem nos inspirou a começar a tocar. Lembro que meu primo ia lá pra casa nas festas e um monte de gente ficava em volta dele cantando, pedindo músicas e fazendo segundas vozes. Aquelas festas iam madrugada adentro e o repertório era sempre interminável.
Assim que pude, ainda adolescente, comecei com o violão e logo fui seguido pelo meu irmão, dois anos mais novo que eu. A gente tocava com um instrumento antigo que era do meu avô e quando cada um de nós fez 18 anos nosso pai nos levou ao Centro pra escolher e comprar um violão novinho, na loja Guitarra de Prata, na Rua da Carioca.
Com isso, não foi surpresa alguma pra família o interesse dos meus filhos pelo violão. Tanto o Niel como o Deco, ali por volta dos 12, também começaram a querer tocar e, aí, um dos violões antigos da família foi emprestado, pra eles irem fazendo os famosos calos nos dedos.
Mesmo de longe, morando em outra cidade, eu conseguia perceber e mesmo comprovar a evolução dos dois com o violão. O problema é que eles gostavam de tocar uns rocks bobos, umas músicas fáceis demais. Acho que aquilo era o que tocava nas rádios e que talvez fosse, enfim, o universo deles, as músicas que eles ouviam e que os colegas da escola talvez fizessem mais questão de ouvir, nas rodinhas em que eles também já começavam a participar.
E eu não tinha outra escolha. Não podia obrigar nada, correndo o risco de pôr tudo a perder. Na verdade, eu me continha procurando pensar que repertório cada um tem o seu, é como um gosto etc. Mas no fundo eu torcia pra eles gostarem de umas bossas novas, umas músicas mais desafiadoras, com acordes dissonantes, uma letra mais erudita e poética, inclusive com um jeito de tocar que exigia certo aprimoramento no dedilhado e na puxada das cordas.
Sempre que podia eu falava pra eles, com todo o cuidado, sem pressionar, sobre essas músicas, sobre os seus autores e os caras da MPB que eram os responsáveis por levar a música brasileira a ser uma das mais apreciadas no mundo. Às vezes eu sacava que eles tinham pego umas cifras de bossa nova porque um ou outro me ligava pedindo pra eu ensinar um acorde de sétima aumentada, por exemplo. Eu não dizia nada, ensinava, mas sabia que aquilo não era pra tocar rockinho inglês, de jeito nenhum.
Um dia o Deco me ligou e, botando os assuntos em dia, da escola e do Flamengo, eu perguntei se estava tudo bem com a viola. Ele fez um silêncio e pausadamente disse:
- Pai, esse Chico é foda, né?
Eu nem sabia o que dizer do outro lado, mas consegui responder alguma coisa automática pra dar corda e ele continuou:
- Essa música dele, Apesar de Você, ele tá falando mesmo direto com o governo. Muito sinistro ele!
Eu então suspirei aliviado no telefone e daí nós passamos a falar da letra da música, dos acordes difíceis que tinha e de como o momento político do Brasil dos anos 70 precisava daquele tipo de composição, uma denúncia cheia de poesia onde o Chico dizia que apesar daquilo tudo de ruim por que o país passava, amanhã haveria de ser outro dia.
Me lembrei dessa história recentemente quando minha amiga Lia, flautista, pianista e futura professora de música, me falou do disco novo do Caetano Veloso, Abraçaço. Já gostando do CD pela dica da Lia, eu peguei e fui ouvir quieto, com ouvidos calmos e receptivos. Porém minha calma não durou muito, pois logo na primeira música havia um verso, o mais repetido, onde Caetano afirmava com todas as letras: “a bossa nova é foda”. Pronto. Estava tudo dito.
Minha lembrança me levou, no ato, àquele telefonema do Deco. E eu me dei conta de que devia ter respondido pra ele, de cara:
- O Chico é foda, sim, filho!



Caetano - A Bossa Nova É Foda - http://www.youtube.com/watch?v=orPhkLpX3ps#t=237