Eu queria muito que meus filhos também tocassem violão. Eu e meu
irmão, que é o artista da família, temos um primo mais velho e foi ele quem nos
inspirou a começar a tocar. Lembro que meu primo ia lá pra casa nas festas e um
monte de gente ficava em volta dele cantando, pedindo músicas e fazendo
segundas vozes. Aquelas festas iam madrugada adentro e o repertório era sempre
interminável.
Assim que pude, ainda adolescente, comecei com o violão e logo fui
seguido pelo meu irmão, dois anos mais novo que eu. A gente tocava com um instrumento
antigo que era do meu avô e quando cada um de nós fez 18 anos nosso pai nos
levou ao Centro pra escolher e comprar um violão novinho, na loja Guitarra de
Prata, na Rua da Carioca.
Com isso, não foi surpresa alguma pra família o interesse dos meus
filhos pelo violão. Tanto o Niel como o Deco, ali por volta dos 12, também começaram
a querer tocar e, aí, um dos violões antigos da família foi emprestado, pra
eles irem fazendo os famosos calos nos dedos.
Mesmo de longe, morando em outra cidade, eu conseguia perceber e
mesmo comprovar a evolução dos dois com o violão. O problema é que eles
gostavam de tocar uns rocks bobos, umas músicas fáceis demais. Acho que aquilo era
o que tocava nas rádios e que talvez fosse, enfim, o universo deles, as músicas
que eles ouviam e que os colegas da escola talvez fizessem mais questão de
ouvir, nas rodinhas em que eles também já começavam a participar.
E eu não tinha outra escolha. Não podia obrigar nada, correndo o
risco de pôr tudo a perder. Na verdade, eu me continha procurando pensar que
repertório cada um tem o seu, é como um gosto etc. Mas no fundo eu torcia pra
eles gostarem de umas bossas novas, umas músicas mais desafiadoras, com acordes
dissonantes, uma letra mais erudita e poética, inclusive com um jeito de tocar
que exigia certo aprimoramento no dedilhado e na puxada das cordas.
Sempre que podia eu falava pra eles, com todo o cuidado, sem
pressionar, sobre essas músicas, sobre os seus autores e os caras da MPB que
eram os responsáveis por levar a música brasileira a ser uma das mais
apreciadas no mundo. Às vezes eu sacava que eles tinham pego umas cifras de
bossa nova porque um ou outro me ligava pedindo pra eu ensinar um acorde de
sétima aumentada, por exemplo. Eu não dizia nada, ensinava, mas sabia que
aquilo não era pra tocar rockinho inglês, de jeito nenhum.
Um dia o Deco me ligou e, botando os assuntos em dia, da escola e
do Flamengo, eu perguntei se estava tudo bem com a viola. Ele fez um silêncio e
pausadamente disse:
- Pai, esse Chico é foda, né?
Eu nem sabia o que dizer do outro lado, mas consegui responder
alguma coisa automática pra dar corda e ele continuou:
- Essa música dele, Apesar de Você, ele tá falando mesmo
direto com o governo. Muito sinistro ele!
Eu então suspirei aliviado no telefone e daí nós passamos a falar
da letra da música, dos acordes difíceis que tinha e de como o momento político
do Brasil dos anos 70 precisava daquele tipo de composição, uma denúncia cheia
de poesia onde o Chico dizia que apesar daquilo tudo de ruim por que o país
passava, amanhã haveria de ser outro dia.
Me lembrei dessa história recentemente quando minha amiga Lia,
flautista, pianista e futura professora de música, me falou do disco novo do
Caetano Veloso, Abraçaço. Já gostando do CD pela dica da Lia, eu peguei
e fui ouvir quieto, com ouvidos calmos e receptivos. Porém minha calma não
durou muito, pois logo na primeira música havia um verso, o mais repetido, onde
Caetano afirmava com todas as letras: “a bossa nova é foda”. Pronto. Estava
tudo dito.
Minha lembrança me levou, no ato, àquele telefonema do Deco. E eu
me dei conta de que devia ter respondido pra ele, de cara:
- O Chico é foda, sim, filho!