sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A Chuva


Quando Maurício acordou de madrugada já sabia que outra vez seria difícil dormir de novo. O calor, a vida, as coisas que não andavam, não se resolviam, tudo era motivo pra aquela insônia que insistia em fazer parte das suas noites. E dias.
Abriu a geladeira sem registrar o que tinha dentro e bebeu água automaticamente. Olhou também o relógio só pra se certificar que o tempo passava e pensou em pegar um livro, quem sabe ligar a tevê. Aí, logo depois, desistiu dos dois. Sentou-se na poltrona da sala e ali ficou dormitando um tempo sem fim. Um tempo que não tinha sentido, nem decorrência, muito menos direção, indo e voltando nas suas lembranças.
Aquela inércia típica que Maurício já conhecia, o incomodava cada vez mais. Não tinha forças pra lutar contra ela, mas lá no fundo ele sabia que era preciso.
O tempo passou e os barulhos na janela bem à frente o acordaram. Era a chuva que trazia o dia pela mão. A chuva batia na vidraça, bicando a janela como um pássaro que pede pra entrar. Uma chuva boa, chuva de verão, chuva cheia dos seus cheiros, cheia de movimento nas árvores, no gramado, na terra que acolhe os pingos, na flor que se exibe em brilhos. Um teatro da natureza que normalmente só o alvorecer pode ver e testemunhar. E Maurício, agora, podia também.
Mais o dia clareava, mais chuva caía. Sentado na cadeira, o homem não se movia. Às vezes alguns de seus músculos se mexiam sozinhos como se fossem, eles mesmos, levantar aquele corpo, independente da vontade do cérebro. As pernas e os braços se crispavam, uma faísca corria pelo tecido humano, mas logo a apatia vencia.
Do lado de fora, um vulto de crianças passando intrigou Maurício. Ele levantou o pescoço e mesmo sentado pode ver uns meninos correndo, gritando, brincando na chuva no seu quintal. Jogavam água uns nos outros, pisavam nas poças, empurravam-se e riam muito. E havia meninas também, uma delas até parecia a sua prima Angélica e a outra, a sua irmã Maria quando crianças. Estavam todos ali agora brincando e ele recordou que na sua infância era ele próprio o primeiro a ir pro quintal, quando o verão chegava, e ficava lá fora chamando os outros primos pra ir com ele tomar banho de chuva.
A algazarra, a chuva caindo, e Maurício, ali sentado, desejou por um segundo estar lá fora. Podia até sentir na pele os pingos da chuva e como a água era fria àquela hora da manhã, mesmo no verão. Pensou de novo em levantar, em ir, os músculos mais uma vez se crisparam, mas ele apenas disse baixinho “não”, e deixou-se recostar outra vez na poltrona.
Na sua cabeça uma frase insistia em sair da boca, mas ele relutava em pronunciá-la pelo absurdo que seriam aquelas palavras quando tornadas reais. Mesmo assim ele olhou em volta como que constatando que estava sozinho em casa e balbuciou com desalento:
- Se a chuva quiser, ela que venha me buscar – e em seguida se censurou com um tsc-tsc mal-humorado.
Nesse momento o sensor de incêndio da casa disparou, começou a sair água de todos aqueles bocais do teto da sala e ele estava bem embaixo de um deles, tomando os jatos diretamente, como se estivesse numa chuva dentro de casa. Ele bateu com a mão na testa, disse “o café” e lembrou que tinha deixado água no fogo na cozinha. Correu até lá, desligou o gás e voltou pra sala sorrindo, todo molhado, olhando em volta e não acreditando no que via, pois tudo estava ensopado.
Meio sorrindo, meio assustado com a cena, Maurício pôs as mãos no rosto e deixou o choro rolar solto. Deixou sair tudo o que tinha pra sair. A chuva da vida tinha ido buscá-lo, resgatá-lo e ele sentiu o tranco, literalmente.
Foi então que notou todos os meninos e meninas do lado de fora da janela, pertinho da vidraça, ainda ofegantes, olhando diretamente pra ele. No meio estava um menino que antes ele não havia notado. Era ele próprio, com uns 9 anos. Aos prantos, ele apontou pra cada uma das crianças, juntou as palmas das mãos e disse várias vezes:
- Obrigado, obrigado!
Os meninos então voltaram pra chuva dando adeus e, brincando, sumiram um a um no meio das árvores. Só teve um que antes de correr atrás dos outros ainda veio mais uma vez perto do vidro e apontou ao Maurício um livro que estava junto da janela e que tinha sido, inexplicavelmente, o único a não molhar.
O menino simplesmente apontou o livro, Maurício o pegou e leu o título: Pequenos Desencontros. Depois sorriu, abraçou o livro e ficou olhando o menino desaparecer correndo no meio das folhagens.
A chuva tinha parado.