Barra
de Jacuípe é uma praia linda, pertinho de Salvador. Tem uma foz de rio em um
dos cantos, sua areia é limpa e fina e a água é quentinha e transparente. Uma
praia calma em todos os sentidos, de poucas ondas e dotada de uma fartura de
peixes coloridos de todos os tipos.
Nos
anos em que morei em Salvador era normal ir à praia em Jacuípe sempre que dava.
Pois foi neste paraíso que uma vez eu estava deitado na beirinha da água,
quando senti algo estranho e dolorido. Uma água viva, chamada caravela, veio na
correnteza e começou a me queimar as pernas. Uma dor imediata e dilacerante se
espalhava e a minha reação era tentar tirar a cauda da caravela com as mãos, o que
só fazia aumentar a área queimada, porque no local onde encostava aquela linha
fina azulada que pendia da água viva, queimava na hora e a dor só aumentava.
Com
as mãos também queimando a minha reação foi de puro desespero. Arrumamos as
coisas correndo e a minha ansiedade era chegar ao pronto-socorro e conseguir
logo algum alívio. Estávamos recolhendo as coisas pra jogar tudo dentro do carro,
às pressas, quando uma velhinha chegou perto e disse:
-
Faz xixi na queimadura. Alguém faz xixi na queimadura da água viva que passa.
Transtornado
pela dor eu disse algo ríspido, evitando xingar a maldita velha que mais
parecia uma bruxa. Na verdade eu já tinha reparado um pouco antes aquela figura
na praia. Acho que ela era nativa do lugar, devia morar ali perto da praia e
nem usava roupas de banho, mas sim uma saia grande e uma blusa e ficava sentada
numa cadeira de madeira, debaixo da sombra de um coqueiro. Tinha os cabelos
brancos desalinhados, a pele bem enrugada pelo sol e um ar sinistro, de bruxa, e
ficava ali observando todo mundo que estava na praia.
Na
hora que a velha falou aquilo eu não tinha nem condições de brigar com ela.
Minha vontade era sair dali o mais rápido possível e não iria perder tempo com
xingamento. Lembro que no carro, aí sim, eu reclamava da dor e dizia que aquela
velha era uma bruxa, uma maluca e só me faltava uma doida dizendo pra fazer
xixi no local dolorido e que àquela altura já estava até esfolado e
avermelhado.
Demorou
uma eternidade até o hospital. E quando chegamos e entramos na sala de emergência
a primeira coisa que o médico disse depois de entender o ocorrido foi:
-
Se alguém tivesse feito xixi no local da queimadura ia estancar a dor
imediatamente.
-
Velha filha-da-puta – eu disse de pronto.
E
depois de contar toda a história ao médico, enquanto a auxiliar passava uma
pomada anestésica, nós três demos umas boas risadas pela minha ignorância em não
ter ouvido a sábia velhinha, a bruxa da praia do Jacuípe.
O
doutor disse que pessoas com certos tipos de alergia correm até risco de vida
com essas queimaduras. Eu fiquei pensando por muito tempo por que a velha não
insistiu em me convencer a passar o raio do xixi na perna. Porque não me
sacudiu e me obrigou a fazer aquilo logo? Ela sabia que a dor ia passar, eu ia
agradecer e ela não tinha nada a temer. Porque ela não insistiu? E afinal, da
minha parte porque eu não tentei passar o xixi logo pra ver o que dava? Ela
tinha a experiência, o conhecimento e eu tinha a ignorância, o desconhecimento.
Ainda por cima não confiei que aquela figura sinistra pudesse me ajudar de
alguma forma, jamais.
Quando
eu contei o caso para um amigo, também um sábio como a velha bruxa, e também velho,
ele apenas disse de cabeça baixa:
-
Meu amigo, a nossa experiência não serve pra nada. Só pra nós mesmos.
Eu
nunca mais encontrei a tal velhinha da praia do Jacuípe. Todas as vezes que fui
lá, depois do episódio da caravela, ainda ficava procurando, olhando em volta na
areia, nas sombras dos coqueiros, mas nunca mais a vi. Não sei na verdade o que
eu diria a ela. Mas a ideia de vê-la de novo era, eu acho, pra me certificar de
que ela existe mesmo, sei lá talvez pedir perdão, ou também pra que eu pudesse rever a
sua figura e tentar entender a razão por que eu não lhe dei ouvidos, enquanto
ela só tentava me ajudar.
Se
eu fosse ela, jamais me perdoaria.
Ela,
sim.