domingo, 28 de junho de 2015

Tu é Maluco, Deco! (por André Loureiro)


Eu tenho algumas teorias bem peculiares em relação à vida. Isso muita gente já deve ter notado. Mas poucas pessoas já se prestaram a ouvi-las, e quase ninguém entende ou concorda muito bem com elas. Uma delas é em relação a dar presentes. Sinceramente, eu odeio o fato de ser “obrigado” a presentear as pessoas que eu gosto em datas definidas sabe-se lá por quem, como Natal, dia das mães, dia dos namorados. Se a pessoa não tiver precisando de nada, e eu não encontrar, por acaso, uma coisa que julgue ser de seu agrado, porque devo comprar qualquer coisa que seja, só por comprar?
Dito isso, apesar de parecer contraditório nesse momento, eu gosto de presentear as pessoas. É claro, quando eu bem entender que isso deva ser feito, e não quando a sociedade me obrigar. Só dou um desconto para aniversários, porque aí é uma homenagem direta à pessoa. Faz algum sentido.
E, em um desses aniversários, a frase que dá título a essa história foi repetida algumas dezenas de vezes, por dias e dias. Eu, com vinte e poucos anos, estudante de engenharia vivendo à base de bandejão e das ajudas de custo que recebia de fundos familiares de origem duvidosa, resolvi presentear o meu pai. O cara passou anos falando que queria ter uma clarineta. Anos! Mas o escorpião que mora naquele bolso não permitia que ele resolvesse essa questão. Então, tive que agir.
Em tempo: “Clarineta é um instrumento musical de sopro constituído por um tubo cilíndrico, geralmente de madeira, com uma boquilha cônica de uma única palheta e chaves metálicas, ligadas a tampas para alcançar orifícios aos quais os dedos não chegam naturalmente”.
Nossa família tem um lado musical muito apurado e ele já dominava bem o violão e lutava de igual para igual com o piano, conquistando algumas vitórias na maior parte das músicas. Mas a clarineta é completamente diferente. Instrumento de sopro, que não se aprende no quintal, como ele fez com o violão. É um instrumento que as pessoas demoram anos para aprender. Era esse que ele queria.
Pois bem. Vendo que o dito cujo não pretendia se movimentar para comprar o raio do troço que ele queria, eu resolvi presenteá-lo. Obviamente, sem ele desconfiar de absolutamente nada. Tomei a decisão por dois motivos. O primeiro é que ele podia desistir da clarineta depois de tanto falar dela e não tê-la para tocar. E o segundo é que o seu aniversário de cinquenta anos se aproximava, e era uma justificativa boa para eu investir o dinheiro que eu nem tinha.
Pesquisei durante um bom tempo sobre os modelos, preços, tamanhos. Entrei em fóruns, falei com várias pessoas. Eu não sabia nada a respeito, e queria escolher um que fosse digno para o aniversário de cinqüenta anos do meu pai. E que permitisse, pelo menos, que eu continuasse me alimentando o resto do ano no bandejão. Quando decidi pelo modelo que iria comprar, começou a etapa que pode ser chamada de “alavancagem financeira”. Economizei dinheiro durante um bom tempo e consegui juntar, apenas, um pouco mais da metade do valor até semanas antes do aniversário dele.
Vi que não daria tempo e precisaria de um patrocínio para conseguir comprar a tempo. Consegui o resto do valor com alguns amigos e fui pagando minha dívida em suaves prestações nos meses seguintes. Confesso que algumas vezes repensei se deveria mesmo gastar um dinheiro que eu não tinha, para comprar um presente que eu nem sabia se ele iria gostar e muito menos se ele seria capaz de usar. Mas resolvi ir em frente. Algo me dizia que daria certo.
No dia que comprei, acordei cedo, fui sozinho até o centro do Rio, (coisa que não me apetece nem um pouco), entrei em todas as lojas de música da Rua da Carioca (recinto que me apetece menos ainda) atrás da clarineta. E também, do melhor preço. Eu nunca sequer tinha visto uma clarineta na vida. E não é que a bicha era bonita?! Preta com detalhes prateados, cheias de coisas para apertar, de um lado e de outro, em cima, embaixo.
E eu pensando: “Esse cara não vai tocar isso nunca! Vai ficar de enfeite na estante. Vou escolher uma bonita pra, pelo menos, incrementar a decoração da casa”. Consegui um desconto não muito grande, mas que cabia no meu orçamento, e comprei, me convencendo de que mesmo como enfeite, seria uma boa ideia. Ao todo, foram uns três meses de estudos técnicos e econômicos até o dia da compra.
No dia do seu aniversário, levei escondido no carro até a casa da minha avó, subi correndo quando ele estava distraído e deixei embaixo da cama dela. Cantamos parabéns, ele recebeu alguns outros presentes, e eu tenso para entregar logo o meu, sem saber se ele ia gostar, se ele ainda queria ter uma clarineta, e se aquele troço seria capaz de produzir algum som digno do preço. Levantei, pedi a atenção de todos para um pronunciamento que iria fazer. Contei a história, sem dizer do que se tratava, e ele sem entender nada! Nem da história que eu contei, e muito menos do que tinha naquela caixa.
- É uma caixa de sapatos - disse o meu avô.
- É uma câmera fotográfica - arriscou a minha avó.
Coloquei a caixa em cima da mesa e lá foi ele abrir. Demorou longos segundos até ele se dar conta do que era. Ele só conseguia olhar para mim, para a clarineta, para todo mundo em volta, balançar a cabeça negativamente, sem acreditar e repetir:
- Tu é maluco, Deco! Tu é maluco! Esse cara é maluco! Mãe, esse cara é maluco!
Essa sequência de movimentos e frases se repetiu por alguns muitos minutos, não necessariamente nesta ordem.
O fato é que, após a tentativa frustrada de, pasmem, apenas montar a clarineta (tinha que vir com um técnico do Pronatec pra montar aquela bosta!), e a mais frustrada ainda de tentar tocá-la imediatamente após tirá-la da caixa, alguns dias depois ele já conseguia tirar algumas notas, e depois de algumas semanas algumas músicas, e depois mais algumas. E assim foi.
Hoje em dia, ela já faz parte da família, juntamente com os violões (os que ele me roubou de lá e os que eu roubei de cá), guitarras e os pianos. E sempre que ele me diz que está tocando ou que tirou alguma música nova, eu lembro dessa história e penso que valeu a pena a pesquisa, o investimento e essa maluquice toda.
Até porque, se bem conheço, até hoje ele não teria comprado clarineta nenhuma.
Ah, mas não teria mesmo!


Texto de autoria de André Caridade Loureiro, o Deco, meu filho.


terça-feira, 16 de junho de 2015

O Casamento da Bel

No final da rua da igreja tinha uma favela. Convidado para tocar violão na peça de teatro que ia ser montada pelo grupo de jovens da paróquia, eu acabei ficando no grupo por cerca de cinco anos. Tocava nas missas e dava aulas de violão lá mesmo em uma das salas da igreja.
Fazia parte do grupo e do teatro a Bel. Iabelônia de nascimento, a Bel morava no final da rua, atravessando a Avenida Brasil. Cantava com a gente nas missas e era uma menina simples, alegre e trabalhadora.
Eu tinha passado recentemente dos vinte anos e, num belo dia, a Bel disse que ia casar. De pronto, me convidou para padrinho e também pediu que eu a levasse à igreja no dia do casamento. Foi uma coisa assim que me pegou de surpresa e eu nem pude argumentar nada, nem sobre ser padrinho, o que muito me envaidecia, como também sobre o fato singelo de que o meu carro não era adequado pra transportar uma noiva para a igreja, visto que se tratava de um Fiat 147 amarelo, de duas portas e não muito novo.
Eu adorava o meu carrinho, que eu chamava carinhosamente de Duca. Valente, companheiro e eu o trazia sempre bem cuidado mas, convenhamos, não era daqueles carrões de noiva. Isso ele não era.
Quando caiu a ficha do convite, do pacote completo padrinho-carro-motorista, eu fiquei bem preocupado e pensei em falar com a Bel sobre outras alternativas, quem sabe o padrinho aqui alugava um outro carro, ou pedia a um amigo que a levasse, enfim.
Mas ela me disse coisas tão simples e tão amigas sobre o fato de querer que fosse eu e o meu carro a lhe buscar em casa que eu nem tive como objetar. Na verdade eu não lembro direito o que ela falou, só sei que foram lindas palavras, lindas de conteúdo mesmo, sobre a nossa amizade, a nossa convivência de anos que eu só lembro de ter ficado emocionado e de lhe ter dado um grande e carinhoso abraço.
Todos os amigos da igreja, claro, ficaram sabendo do casamento e muitos se surpreendiam com o fato de ela querer ir a bordo do Duca. Uns me perguntavam se eu tinha aceito aquilo, se eu ia fazer mesmo, e eu respondia apenas que sim, porque ela me disse que queria que fosse daquele jeito.
O tempo passou depressa e logo chegou o grande dia. De terno, eu estava nervoso, pedindo a Deus para o carro não dar nenhum problema mecânico. Quando desci as escadas de casa e vi novamente o Duca, parecia que ele estava muito contente, assim tão polido, limpinho e perfumado, com as rodas pretinhas e as calotas brilhando. Então, lá fomos nós buscar a noiva.
Quando eu estava entrando na rua, pelo contorno da Avenida Brasil, me dei conta de que jamais tinha ido na casa da Bel. Sabia onde era e tal, mas nunca tinha ido lá. E aí eu percebi a estreiteza das ruas sem calçamento e tive a sensação de que se o Duca fosse um tantinho mais largo talvez nem desse pra abrir a porta. Pude notar também que as curvas eram pequenas e apertadas para um carro maior, o que sem dúvida me deu tranquilidade na direção do meu carrinho.
Na frente da casa da noiva uma multidão de amigos e vizinhos. Todos já vestidos para o casório mas, como a igreja era perto, eles só iriam pra lá depois de ver a Bel sair de casa. Quando parei o carro fui aplaudido por todos e fui muito cumprimentado quando saí para abrir a outra porta. De repente a noiva surge na porta da casa, as pessoas em volta ajudando, segurando o véu e as flores e ela me estendeu a mão para entrar no carro.
Sem o banco do carona, o Duca agora estava espaçoso para o seu vestido e ela me agradeceu por isso, sorrindo, antes de eu fechar a porta.
Ao dar a volta para entrar, novos aplausos ao motorista, ao carro e à noiva. Uma das amigas da Bel então veio ao meu lado e disse baixinho:
- O senhor pode ir bem devagarzinho? É que a gente vai indo atrás pra poder ver quando ela entrar na igreja, tá?
E todos foram andando em volta, enquanto eu dirigia bem devagar. Confesso que eu me segurei pra não chorar quando olhei pelo retrovisor e vi aquelas pessoas andando atrás do carro, ao lado e em volta de nós, como se levassem nos braços, junto comigo aquela noiva linda e feliz.
A lembrança que eu tenho hoje, já meio desbotada, sobre aquele dia, é de ter vivido um exemplo de amizade, aquele imenso carinho, todas aquelas pessoas amigas da Bel. Me toca até hoje a simplicidade daquele momento, a sensação de que qualquer coisa a mais ali seria demais.
Mais do que isso, intuo que a gente se acostuma com tanta coisa supérflua que perde a noção do que é realmente necessário na vida. Pois ali estava eu, levando a minha amiga Bel, com o maior prazer do mundo, oferecendo o que eu tinha de melhor para ela, para aquele seu momento de realização. Ela não se importou com o modelo do meu carro, nada. Só com o que era importante e ponto. E eu estava muito feliz por isso e por ela.
Hoje, nas minhas melhores lembranças, depois de mais de 30 anos sem notícias da Bel, posso imaginar ela mostrando as fotos do seu casamento para os filhos, apontando o Duca e dizendo a eles “este aqui, que dirigiu o carro, é o meu grande amigo Anderson.” Amém!