Eu tenho
algumas teorias bem peculiares em relação à vida. Isso muita gente já deve ter
notado. Mas poucas pessoas já se prestaram a ouvi-las, e quase ninguém entende ou
concorda muito bem com elas. Uma delas é em relação a dar presentes.
Sinceramente, eu odeio o fato de ser “obrigado” a presentear as pessoas que eu
gosto em datas definidas sabe-se lá por quem, como Natal, dia das mães, dia dos
namorados. Se a pessoa não tiver precisando de nada, e eu não encontrar, por
acaso, uma coisa que julgue ser de seu agrado, porque devo comprar qualquer
coisa que seja, só por comprar?
Dito
isso, apesar de parecer contraditório nesse momento, eu gosto de presentear as
pessoas. É claro, quando eu bem entender que isso deva ser feito, e não quando
a sociedade me obrigar. Só dou um desconto para aniversários, porque aí é uma
homenagem direta à pessoa. Faz algum sentido.
E,
em um desses aniversários, a frase que dá título a essa história foi repetida
algumas dezenas de vezes, por dias e dias. Eu, com vinte e poucos anos,
estudante de engenharia vivendo à base de bandejão e das ajudas de custo que
recebia de fundos familiares de origem duvidosa, resolvi presentear o meu pai. O
cara passou anos falando que queria ter uma clarineta. Anos! Mas o escorpião
que mora naquele bolso não permitia que ele resolvesse essa questão. Então,
tive que agir.
Em
tempo: “Clarineta é um instrumento musical de sopro constituído
por um tubo cilíndrico, geralmente de madeira, com uma boquilha cônica de uma
única palheta e chaves metálicas, ligadas a tampas para alcançar orifícios aos
quais os dedos não chegam naturalmente”.
Nossa
família tem um lado musical muito apurado e ele já dominava bem o violão e
lutava de igual para igual com o piano, conquistando algumas vitórias na maior
parte das músicas. Mas a clarineta é completamente diferente. Instrumento de
sopro, que não se aprende no quintal, como ele fez com o violão. É um instrumento
que as pessoas demoram anos para aprender. Era esse que ele queria.
Pois
bem. Vendo que o dito cujo não pretendia se movimentar para comprar o raio do
troço que ele queria, eu resolvi presenteá-lo. Obviamente, sem ele desconfiar
de absolutamente nada. Tomei a decisão por dois motivos. O primeiro é que ele
podia desistir da clarineta depois de tanto falar dela e não tê-la para tocar. E
o segundo é que o seu aniversário de cinquenta anos se aproximava, e era uma
justificativa boa para eu investir o dinheiro que eu nem tinha.
Pesquisei
durante um bom tempo sobre os modelos, preços, tamanhos. Entrei em fóruns,
falei com várias pessoas. Eu não sabia nada a respeito, e queria escolher um
que fosse digno para o aniversário de cinqüenta anos do meu pai. E que
permitisse, pelo menos, que eu continuasse me alimentando o resto do ano no
bandejão. Quando decidi pelo modelo que iria comprar, começou a etapa que pode
ser chamada de “alavancagem financeira”. Economizei dinheiro durante um bom
tempo e consegui juntar, apenas, um pouco mais da metade do valor até semanas
antes do aniversário dele.
Vi
que não daria tempo e precisaria de um patrocínio para conseguir comprar a
tempo. Consegui o resto do valor com alguns amigos e fui pagando minha dívida
em suaves prestações nos meses seguintes. Confesso que algumas vezes repensei
se deveria mesmo gastar um dinheiro que eu não tinha, para comprar um presente
que eu nem sabia se ele iria gostar e muito menos se ele seria capaz de usar. Mas
resolvi ir em frente. Algo me dizia que daria certo.
No
dia que comprei, acordei cedo, fui sozinho até o centro do Rio, (coisa que não
me apetece nem um pouco), entrei em todas as lojas de música da Rua da Carioca (recinto
que me apetece menos ainda) atrás da clarineta. E também, do melhor preço. Eu
nunca sequer tinha visto uma clarineta na vida. E não é que a bicha era bonita?!
Preta com detalhes prateados, cheias de coisas para apertar, de um lado e de
outro, em cima, embaixo.
E
eu pensando: “Esse cara não vai tocar isso nunca! Vai ficar de enfeite na
estante. Vou escolher uma bonita pra, pelo menos, incrementar a decoração da
casa”. Consegui um desconto não muito grande, mas que cabia no meu orçamento, e
comprei, me convencendo de que mesmo como enfeite, seria uma boa ideia. Ao
todo, foram uns três meses de estudos técnicos e econômicos até o dia da
compra.
No
dia do seu aniversário, levei escondido no carro até a casa da minha avó, subi
correndo quando ele estava distraído e deixei embaixo da cama dela. Cantamos
parabéns, ele recebeu alguns outros presentes, e eu tenso para entregar logo o
meu, sem saber se ele ia gostar, se ele ainda queria ter uma clarineta, e se
aquele troço seria capaz de produzir algum som digno do preço. Levantei, pedi a
atenção de todos para um pronunciamento que iria fazer. Contei a história, sem
dizer do que se tratava, e ele sem entender nada! Nem da história que eu
contei, e muito menos do que tinha naquela caixa.
- É
uma caixa de sapatos - disse o meu avô.
- É
uma câmera fotográfica - arriscou a minha avó.
Coloquei
a caixa em cima da mesa e lá foi ele abrir. Demorou longos segundos até ele se
dar conta do que era. Ele só conseguia olhar para mim, para a clarineta, para
todo mundo em volta, balançar a cabeça negativamente, sem acreditar e repetir:
- Tu
é maluco, Deco! Tu é maluco! Esse cara é maluco! Mãe, esse cara é maluco!
Essa
sequência de movimentos e frases se repetiu por alguns muitos minutos, não
necessariamente nesta ordem.
O
fato é que, após a tentativa frustrada de, pasmem, apenas montar a clarineta
(tinha que vir com um técnico do Pronatec pra montar aquela bosta!), e a mais
frustrada ainda de tentar tocá-la imediatamente após tirá-la da caixa, alguns
dias depois ele já conseguia tirar algumas notas, e depois de algumas semanas
algumas músicas, e depois mais algumas. E assim foi.
Hoje
em dia, ela já faz parte da família, juntamente com os violões (os que ele me
roubou de lá e os que eu roubei de cá), guitarras e os pianos. E sempre que ele
me diz que está tocando ou que tirou alguma música nova, eu lembro dessa
história e penso que valeu a pena a pesquisa, o investimento e essa maluquice
toda.
Até
porque, se bem conheço, até hoje ele não teria comprado clarineta nenhuma.
Ah,
mas não teria mesmo!
Texto
de autoria de André Caridade Loureiro, o Deco, meu filho.