No
final da rua da igreja tinha uma favela. Convidado para tocar violão na peça de
teatro que ia ser montada pelo grupo de jovens da paróquia, eu acabei ficando no
grupo por cerca de cinco anos. Tocava nas missas e dava aulas de violão lá
mesmo em uma das salas da igreja.
Fazia
parte do grupo e do teatro a Bel. Iabelônia de nascimento, a Bel morava no
final da rua, atravessando a Avenida Brasil. Cantava com a gente nas missas e
era uma menina simples, alegre e trabalhadora.
Eu
tinha passado recentemente dos vinte anos e, num belo dia, a Bel disse que ia
casar. De pronto, me convidou para padrinho e também pediu que eu a levasse à
igreja no dia do casamento. Foi uma coisa assim que me pegou de surpresa e eu
nem pude argumentar nada, nem sobre ser padrinho, o que muito me envaidecia,
como também sobre o fato singelo de que o meu carro não era adequado pra transportar
uma noiva para a igreja, visto que se tratava de um Fiat 147 amarelo, de duas
portas e não muito novo.
Eu
adorava o meu carrinho, que eu chamava carinhosamente de Duca. Valente,
companheiro e eu o trazia sempre bem cuidado mas, convenhamos, não era daqueles
carrões de noiva. Isso ele não era.
Quando
caiu a ficha do convite, do pacote completo padrinho-carro-motorista, eu fiquei
bem preocupado e pensei em falar com a Bel sobre outras alternativas, quem sabe
o padrinho aqui alugava um outro carro, ou pedia a um amigo que a levasse,
enfim.
Mas
ela me disse coisas tão simples e tão amigas sobre o fato de querer que fosse
eu e o meu carro a lhe buscar em casa que eu nem tive como objetar. Na verdade eu não
lembro direito o que ela falou, só sei que foram lindas palavras, lindas de
conteúdo mesmo, sobre a nossa amizade, a nossa convivência de anos que eu só
lembro de ter ficado emocionado e de lhe ter dado um grande e carinhoso abraço.
Todos
os amigos da igreja, claro, ficaram sabendo do casamento e muitos se surpreendiam com
o fato de ela querer ir a bordo do Duca. Uns me perguntavam se eu tinha aceito
aquilo, se eu ia fazer mesmo, e eu respondia apenas que sim, porque ela
me disse que queria que fosse daquele jeito.
O
tempo passou depressa e logo chegou o grande dia. De terno, eu estava nervoso,
pedindo a Deus para o carro não dar nenhum problema mecânico. Quando desci as
escadas de casa e vi novamente o Duca, parecia que ele estava muito contente,
assim tão polido, limpinho e perfumado, com as rodas pretinhas e as calotas
brilhando. Então, lá fomos nós buscar a noiva.
Quando
eu estava entrando na rua, pelo contorno da Avenida Brasil, me dei conta de que
jamais tinha ido na casa da Bel. Sabia onde era e tal, mas nunca tinha ido lá.
E aí eu percebi a estreiteza das ruas sem calçamento e tive a sensação de que
se o Duca fosse um tantinho mais largo talvez nem desse pra abrir a porta. Pude
notar também que as curvas eram pequenas e apertadas para um carro maior, o que
sem dúvida me deu tranquilidade na direção do meu carrinho.
Na
frente da casa da noiva uma multidão de amigos e vizinhos. Todos já vestidos
para o casório mas, como a igreja era perto, eles só iriam pra lá depois de ver a
Bel sair de casa. Quando parei o carro fui aplaudido por todos e fui muito
cumprimentado quando saí para abrir a outra porta. De repente a noiva surge na
porta da casa, as pessoas em volta ajudando, segurando o véu e as flores e ela
me estendeu a mão para entrar no carro.
Sem
o banco do carona, o Duca agora estava espaçoso para o seu vestido e ela me
agradeceu por isso, sorrindo, antes de eu fechar a porta.
Ao
dar a volta para entrar, novos aplausos ao motorista, ao carro e à noiva. Uma
das amigas da Bel então veio ao meu lado e disse baixinho:
- O
senhor pode ir bem devagarzinho? É que a gente vai indo atrás pra poder ver
quando ela entrar na igreja, tá?
E
todos foram andando em volta, enquanto eu dirigia bem devagar. Confesso que eu
me segurei pra não chorar quando olhei pelo retrovisor e vi aquelas pessoas
andando atrás do carro, ao lado e em volta de nós, como se levassem nos braços,
junto comigo aquela noiva linda e feliz.
A
lembrança que eu tenho hoje, já meio desbotada, sobre aquele dia, é de ter
vivido um exemplo de amizade, aquele imenso carinho, todas aquelas pessoas
amigas da Bel. Me toca até hoje a simplicidade daquele momento, a sensação de
que qualquer coisa a mais ali seria demais.
Mais
do que isso, intuo que a gente se acostuma com tanta coisa supérflua que perde a noção do
que é realmente necessário na vida. Pois ali estava eu, levando a minha amiga
Bel, com o maior prazer do mundo, oferecendo o que eu tinha de melhor para ela,
para aquele seu momento de realização. Ela não se importou com o modelo do meu
carro, nada. Só com o que era importante e ponto. E eu estava muito feliz por isso
e por ela.
Hoje,
nas minhas melhores lembranças, depois de mais de 30 anos sem notícias da Bel,
posso imaginar ela mostrando as fotos do seu casamento para os filhos, apontando
o Duca e dizendo a eles “este aqui, que dirigiu o carro, é o meu grande amigo
Anderson.” Amém!