Muitas vezes fiz o trajeto São Paulo –
Florianópolis de ônibus. Eu saía de Sampa de noite, por volta das dez da noite
e chegava na Ilha na manhã do dia seguinte. Os ônibus eram ótimos e eu dormia
sem problemas toda a viagem.
Uma dessas idas eu entrei no ônibus e vi que a
minha poltrona estava ocupada. O sujeito percebeu e ficou logo incomodado com
isso, me mostrando o seu ticket que era exatamente igual ao meu. Diante do
impasse eu chamei o despachante, o funcionário da empresa que vistoriava as
passagens e também as bagagens. O homem entrou no ônibus atrás de mim e pediu
os comprovantes pra poder comparar alguns detalhes. Na subida ele comentou
comigo que, na sua vasta experiência, certamente algo podia estar errado mas certamente
a culpa não seria da empresa e sim um descuido dos próprios passageiros quanto
à data ou horário de saída das linhas.
Olhou as duas passagens iguais, sacudiu a cabeça
e disse que algo raro tinha acontecido pois as mesmas tinham sido adquiridas no
mesmo exato momento, segundo e tudo, e o sistema não tinha acusado a
duplicidade, aceitando emitir as duas no mesmo assento.
Quando ele deu por comprovado o erro do sistema,
que nos dias de hoje é o culpado de tudo, sempre que as falhas não são
imputáveis a alguém, o outro passageiro foi logo levantando e falando alto, com
o dedo em riste para o pobre do fiscal da empresa:
- Eu não quero saber se tem erro, quem é o
culpado, nada. Só digo que deste lugar eu não saio e vocês que se virem com
esse problema. Eu não saio deste lugar e pronto.
Com certo espanto, meu e do fiscal, todo mundo ali
passou a perceber mais claramente o que estava acontecendo. O despachante então
pegou o meu bilhete e saiu do ônibus, com uma caneta na mão anotando alguma
coisa no verso. Nisso o motorista veio até mim e perguntou se estava tudo bem.
Eu disse que sim e novamente o sujeito inquieto se apressou em dizer que dali
não sairia e que era um absurdo aquele erro. O motorista franziu a testa
sem dizer nada e fez sinal pra mim com as mãos espalmadas, pedindo calma e
alertando que tudo seria resolvido da melhor forma.
O despachante então voltou e me perguntou, meio sem jeito, se eu
poderia viajar no ônibus seguinte, pois naquele já não havia mesmo lugar vago. Eu
aceitei enquanto ouvia, constrangido, as frases repetidas, com os inúmeros pedidos
de desculpas de todos os modos, que aqueles funcionários já sabiam de cor e
salteado.
De repente um outro fiscal subiu correndo as
escadas dizendo que tinha visto no sistema uma desistência de um passageiro e
que a vaga surgida era na parte de baixo, onde ficavam os assentos leitos, que
tinham travesseiro, cobertor, água e café, mas que a empresa não iria me cobrar
a diferença do preço, me fazendo esta cortesia pela minha boa vontade em colaborar para resolver
o problema do bilhete em duplicidade.
Neste momento o sujeito com o bilhete igual ao
meu se levantou e disse:
- Mas isso não está certo. Se ele tem direito a
esta cortesia eu também quero ir de leito, pois isto não é justo se a passagem
dele é igual à minha.
Na mesma hora um ser humano, dotado de músculos
avantajados e algum cérebro prático se levantou e avisou com a sua voz de
trovão:
- Tem direito porra nenhuma. Tu vai ficar
quietinho aí e calado. Já arrumou barraco demais e agora a gente vai viajar
pianinho, tá certo? O rapaz (eu) vai lá pro leito dele e tu vai ficar aí com a
tua poltrona que tu não queria abrir mão de jeito nenhum. E se duvidar eu venho
sentar do seu lado pra tu deixar de ser babaca.
Eu juro, surgiram alguns inícios de aplausos e
assobios lá no fundo do ônibus. Juro que não foi o meu cérebro vibrando e dando
socos no ar. Juro que foi real mesmo aquela manifestação, embora pouca e tímida.
Por fim, o fiscal me pegou pelo braço, me ajudou com a
mochila e me levou passo a passo até a minha poltrona. Poltrona não, cama! E eu
viajei como um bebê, agradecido ao fortão que ajudou a convencer o
nervosinho que os seus direitos tinham algum limite. E ele entendeu, rapidinho.
Nada como um diálogo convincente e eficiente!