segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A Passagem Duplicada


Muitas vezes fiz o trajeto São Paulo – Florianópolis de ônibus. Eu saía de Sampa de noite, por volta das dez da noite e chegava na Ilha na manhã do dia seguinte. Os ônibus eram ótimos e eu dormia sem problemas toda a viagem.
Uma dessas idas eu entrei no ônibus e vi que a minha poltrona estava ocupada. O sujeito percebeu e ficou logo incomodado com isso, me mostrando o seu ticket que era exatamente igual ao meu. Diante do impasse eu chamei o despachante, o funcionário da empresa que vistoriava as passagens e também as bagagens. O homem entrou no ônibus atrás de mim e pediu os comprovantes pra poder comparar alguns detalhes. Na subida ele comentou comigo que, na sua vasta experiência, certamente algo podia estar errado mas certamente a culpa não seria da empresa e sim um descuido dos próprios passageiros quanto à data ou horário de saída das linhas.
Olhou as duas passagens iguais, sacudiu a cabeça e disse que algo raro tinha acontecido pois as mesmas tinham sido adquiridas no mesmo exato momento, segundo e tudo, e o sistema não tinha acusado a duplicidade, aceitando emitir as duas no mesmo assento.
Quando ele deu por comprovado o erro do sistema, que nos dias de hoje é o culpado de tudo, sempre que as falhas não são imputáveis a alguém, o outro passageiro foi logo levantando e falando alto, com o dedo em riste para o pobre do fiscal da empresa:
- Eu não quero saber se tem erro, quem é o culpado, nada. Só digo que deste lugar eu não saio e vocês que se virem com esse problema. Eu não saio deste lugar e pronto.
Com certo espanto, meu e do fiscal, todo mundo ali passou a perceber mais claramente o que estava acontecendo. O despachante então pegou o meu bilhete e saiu do ônibus, com uma caneta na mão anotando alguma coisa no verso. Nisso o motorista veio até mim e perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim e novamente o sujeito inquieto se apressou em dizer que dali não sairia e que era um absurdo aquele erro. O motorista franziu a testa sem dizer nada e fez sinal pra mim com as mãos espalmadas, pedindo calma e alertando que tudo seria resolvido da melhor forma.
O despachante então voltou e me perguntou, meio sem jeito, se eu poderia viajar no ônibus seguinte, pois naquele já não havia mesmo lugar vago. Eu aceitei enquanto ouvia, constrangido, as frases repetidas, com os inúmeros pedidos de desculpas de todos os modos, que aqueles funcionários já sabiam de cor e salteado.
De repente um outro fiscal subiu correndo as escadas dizendo que tinha visto no sistema uma desistência de um passageiro e que a vaga surgida era na parte de baixo, onde ficavam os assentos leitos, que tinham travesseiro, cobertor, água e café, mas que a empresa não iria me cobrar a diferença do preço, me fazendo esta cortesia pela minha boa vontade em colaborar para resolver o problema do bilhete em duplicidade.
Neste momento o sujeito com o bilhete igual ao meu se levantou e disse:
- Mas isso não está certo. Se ele tem direito a esta cortesia eu também quero ir de leito, pois isto não é justo se a passagem dele é igual à minha.
Na mesma hora um ser humano, dotado de músculos avantajados e algum cérebro prático se levantou e avisou com a sua voz de trovão:
- Tem direito porra nenhuma. Tu vai ficar quietinho aí e calado. Já arrumou barraco demais e agora a gente vai viajar pianinho, tá certo? O rapaz (eu) vai lá pro leito dele e tu vai ficar aí com a tua poltrona que tu não queria abrir mão de jeito nenhum. E se duvidar eu venho sentar do seu lado pra tu deixar de ser babaca.
Eu juro, surgiram alguns inícios de aplausos e assobios lá no fundo do ônibus. Juro que não foi o meu cérebro vibrando e dando socos no ar. Juro que foi real mesmo aquela manifestação, embora pouca e tímida.
Por fim, o fiscal me pegou pelo braço, me ajudou com a mochila e me levou passo a passo até a minha poltrona. Poltrona não, cama! E eu viajei como um bebê, agradecido ao fortão que ajudou a convencer o nervosinho que os seus direitos tinham algum limite. E ele entendeu, rapidinho. Nada como um diálogo convincente e eficiente!


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A Doença da Curva


Nem sempre as mães que trabalham fora têm um esquema infalível de cuidados com o filho pequeno. A minha amiga Angélica, que trabalhava na mesma empresa que eu, tinha uma auxiliar muito competente, misto de faxineira e cozinheira, a dona Rosa, que cuidava do menino Carlos e era sempre ela que levava o Cacá pro colégio.
Um dia, como era de praxe, o telefone tocou e a Angélica atendeu já esperando apenas o mesmo “tudo Ok” de sempre, que era o indicativo de que tudo estava normal e que o Cacá tinha ficado no colégio certinho, sem qualquer problema.
Só que naquele dia dona Rosa disse:
- O Cacá falou que não pode ir à escola, pois não está se sentindo bem. Disse que está com a doença da curva e está muito estranho, dona Angélica.
A mãe, imediatamente ficou nervosa e anunciou que estava indo pra casa. Nós, seus colegas, que ouvimos a conversa, quando ela repetiu a tal doença da curva, ficamos um tanto apreensivos. Ela mesma falou em algo como labirintite, que podia ser uma tonteira ou até coisas mais graves, neurológicas, que dão em crianças etc.
Demos todo o apoio pra que ela fosse até a sua casa e dissemos que ficasse tranquila, pois a gente segurava o serviço e tal. Para não preocupá-la ainda mais, só depois que ela saiu é que a gente passou a analisar a possibilidade de ser mesmo algo grave, que poderia ser até meningite, que é uma doença que vai e vem em surtos assustadores e periódicos no Brasil.
Todo mundo no escritório, quando soube do ocorrido, ficou preocupado, naturalmente, e de vez em quando um novo colega entrava no gabinete perguntando se já tínhamos alguma notícia do Cacá. Essas perguntas, insistentes, só aumentavam a nossa aflição e como naquele tempo não havia celular, a cada ligação que um atendia todos os demais ficavam em volta pra saber se era a Angélica.
Dali a umas duas horas entrou a Angélica esbaforida pela porta do escritório. Sem fôlego e com as mãos espalmadas pedindo que esperássemos, ela explicou:
- Aquele guri ainda me mata! Aonde já se viu? Era só um torcicolo que ele tinha, aquele safado. Aí, de pescoço duro, disse pra coitada da Rosa que estava com a tal doença da curva.
- Mas de onde ele tirou esse nome? Que raio de doença da curva é essa? – perguntamos todos quase juntos.
- Ele é um sacana. Como o caminho da escola é só seguir a rua e virar no final do quarteirão, ele disse que não poderia ir à escola porque não ia conseguir fazer aquela curva. Daí ele chamar de doença da curva, a doença que a pessoa não consegue fazer a curva. E eu aqui achando que era labirintite! Esse menino é muito liso. Eu pego ele.
A partir daí a gente só queria mesmo era se divertir com a história. Depois de todo aquele susto era hora de saber mais dos detalhes pra poder rir da coitada da Angélica.
- E como ele estava quando você chegou em casa? – instigamos.
- Vendo televisão! Disse que desenho ele podia ver porque não precisava virar o pescoço, mas ir à escola, não. Enfim, quando eu percebi que era malandragem dele dei uns três ou quatro gritos, uns dois tapas e pegamos a mochila pra ir pra escola na hora. Antes de sairmos passei uma pomada nele, um anestésico muscular, desses comuns, e pronto.
- E ele?
- Ah, comigo ele fez a curva direitinho! Quando chegamos no portão da escola ainda me perguntou se eu tinha botado o short azul e a camisa do Brasil na mochila. Eu disse que sim e ele, meio rindo, falou que era porque ia ter jogo de futebol no final da aula. Safado esse moleque! Ainda me mata de susto!
A gente passou aquele dia todo, e os outros também, contando a história do Cacá 171 e a sua doença da curva que deixou a mãe doida. O fato fez história na empresa. Quando alguém do escritório queria dar alguma desculpa pra recusar algum trabalho chato, dizia logo que estava com a doença da curva. E todos caíam na risada.