quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A Cacatua


Era uma manhã comum, ensolarada e quente. De repente um pássaro branco entrou no escritório, pousou na janela do segundo andar e ficou ali, como se já conhecesse o ambiente. Olhava pra todo lado, não se assustava com as pessoas que vinham vê-lo e quando foi oferecida uma vasilha com água ele se aproximou e bebeu, definindo a sua domesticidade.
O pássaro era uma cacatua e na citada mesa ao lado da janela trabalhava o meu irmão.  E foi ele o voluntário para conseguir uma gaiola e pra missão de deixar a cacatua em condições de sobrevida até que o seu dono aparecesse pra reclamar a fuga ou a sua ausência, quem sabe tendo uma criança chorosa em alguma casa com saudades do seu bichinho de estimação.
Ele correu na casa da mãe pra ver se tinha sobrado alguma gaiola de canário do pai, mas nada. Então passou numa loja de animais e conseguiu uma emprestada com o dono que, inclusive, ajudou a indicar a comida da cacatua e o modo como tratá-la.
Naquela noite, depois do expediente, meu irmão levou o pássaro devidamente instalado em sua gaiola pra casa da mãe. Lá ele o pendurou na varanda, na mesma varanda onde não faz muito tempo cantavam alguns canários da terra e chanchões do nosso pai.
Quando chegou a sua casa e contou pro João, meu sobrinho de 4 anos, o pequeno quis saber como era a cacatua, as cores, o que comia. O trabalho só ficou mais fácil quando os dois foram olhar na internet as fotos do bicho e as informações sobre ele. Claro que meu irmão avisou ao menino que o dono devia estar procurando pelo pássaro e que devia estar com saudade etc, assim ele ia entender e não ia ficar triste quando a cacatua fosse embora.
De manhã, se aprontando pra ir à escola o João perguntou como ia ser se o dono não fosse buscar o passarinho. E meu irmão respondeu que ainda não tinha pensado nisso, mas que talvez ele pudesse ficar com eles, caso o dono demorasse muito.
– E como é o nome dele? – perguntou o menino.
– Não sei – disse o pai. Se ele for mesmo ficar com a gente, vamos ter que dar um novo nome pra ele. Vai pensando um nome aí e de noite a gente escolhe.
– Não, pai. Eu já sei o nome. O nome dele vai ser Benício Mauro.
Como se fosse uma brincadeira de criança, tipo congela, Mandrake, estátua, tudo e todos pausaram no mesmo instante. De onde aquele guri tirou aquele nome? Pai e mãe se entreolharam, sem entender nada. Perguntaram de onde vinha aquele nome, se o menino conhecia alguém e nada, o menino só dizia que tinha escolhido e pronto, não era o nome de ninguém. Benício Mauro era o nome da cacatua e pronto.
Eu mesmo quando soube do ocorrido pensei logo que era mesmo coisa do João. Sempre surpreendendo a gente. Com a minha mãe não foi diferente. Depois da risada veio a mesma pergunta:
– De onde esse menino tirou esse nome? Benício Mauro não é nada comum. Ele tem cada uma.
O problema é que o pássaro, como já se suspeitava, era um doméstico animal de gaiola, perfeitamente adaptado ao ambiente de uma casa e por isso, lá pelas 5 da manhã começava o seu dia naturalmente, piando alto e bem forte. Para quem conhece o canto do periquito, atesto que é algo muito mais alto.
Às 5h da manhã não há bom humor que resista. E minha mãe já foi logo avisando que o bicho era muito barulhento. Bonitinho e tal, mas a incompatibilidade dos horários os afastava definitivamente no campo das espécies, como, aliás, a sábia natureza já havia separado biologicamente os psitacídeos dos hominídeos.
Enfim, dado o impasse, meu irmão também declinou da ideia fértil de ter de conviver com uma cacatua aos berros em pleno domingão, às 5 da madrugada. Impasse maior ainda veio célere no próximo pensamento, que incluía o que fazer com o bicho, como encontrar quem quisesse ficar com o tal animal barulhento, ou mesmo a necessidade de identificar na multidão um notívago e ornitófilo contumaz.
Naquela mesma tarde surgiu o seu Carlos. Motorista de van, um sujeito calmo e paciente, de meia idade e casado. Contou que sua mulher estava triste, pois havia perdido o casal de periquitos que tanto amava. Desde então, cerca de seis meses, o grande viveiro de pássaros estava vazio. Ele foi à casa da minha mãe conhecer a cacatua e foi paixão à primeira vista. O homem só falava na alegria que seria a esposa vendo-o chegar em casa com o pássaro.
Quando ele já ia indo embora com a gaiola na mão e um baita sorriso no rosto, virou-se e perguntou se a cacatua tinha nome. E todos responderam:
– Benício Mauro. O senhor vai levar o pássaro, mas o nome dele não pode mudar. Meu neto já batizou e ele se chama Benício Mauro.
Minha mãe ainda conta que, quando chegou em casa, o seu Carlos ligou pra ela, todo sem jeito:
– A senhora me desculpe, mas eu tô ligando pra saber como é mesmo o nome do pássaro, que eu esqueci. Agora estou aqui com uma caneta e vou anotar direitinho. Minha esposa adorou o bicho e a gente vai mandar fazer uma placa com o nome dele pra botar no viveiro. Ele ficou lindo lá dentro e tem muito espaço pra ele.
– Então anota aí: o nome dele é Benício Mauro – disse a avó.
– Veja só, Benício Mauro. Isso mesmo. Que curioso. De onde o seu neto tirou esse nome, né?
– É verdade seu Carlos. Isso a gente também se pergunta até hoje. Um abraço seu Carlos – e desligou rindo.


quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A Raquete (por André Loureiro)


Quando me mudei para Tijuca, no ano 2000, fui morar na rua do clube do bairro, que como o próprio nome já diz, é um clube dedicado ao tênis. Nesse mesmo ano, meu pai foi morar em Florianópolis, cidade natal do Guga, maior tenista brasileiro, e que à época estava no auge de sua carreira. Inevitavelmente, por esses motivos, comecei a conhecer e gostar do esporte.
Eu que sempre joguei futebol pelo subúrbio do Rio, resolvi me arriscar de verdade e aprender a jogar tênis. Fiz aulas no clube durante um bom tempo, e sempre que visitava meu pai, dava um jeito de fazer caber uma raquete na mala, e jogava por lá também, quase todos os dias.
Os problemas do tênis, na minha opinião, são dois. Primeiro: diferente do futebol, não é um esporte que se aprende sozinho. Dificilmente alguém consegue jogar relativamente bem sem fazer aulas. E segundo: é um esporte caro. As aulas são caras, uma raquete razoável é cara, manutenção de cordas, calçado especial pra jogar, tudo é bem caro. Logo que comecei nas aulas, tive que negociar uma raquete com a minha mãe. Comprei uma vermelha e branca, bem bonita, que não era tão cara, nem tão boa, mas me atendia muito bem. Apesar de não ser uma raquete top de linha, sempre tentei cuidar bem dela e consegui que ela durasse alguns longos anos.
Enquanto aprendia um pouco do esporte, e vendo no clube, e na TV alguns jogos, descobri que alguns jogadores, profissionais ou de finais de semana, tinham o estranho (pra dizer o mínimo) hábito de descontar suas frustrações pelas jogadas mal executadas nas próprias raquetes. Era um tal de jogar raquete no chão, na grade no fundo da quadra, bater com a raquete na rede. No calor do jogo, valia tudo pra descontar a raiva. Cansei de ver cenas desse tipo.
Em Floripa, meu pai também vinha jogando nos finais de semana, e fazendo novas amizades nas quadras, para garantir a partida na semana seguinte. Um dos amigos que meu pai fez através do tênis, chama-se Diogo. Nascido no interior do Paraná, numa cidade chamada Pato Branco, é um cara gente boa até dizer chega. Bem educado, de uma família tradicional com boa condição financeira, conversa bem sobre qualquer assunto e é muito tranquilo, calmo com as palavras. Estudou cinema na Universidade Federal de Santa Catarina e toca violino. O rapaz é nesse nível.
O Diogo deve ser uns 7, 8 anos mais velho que eu. E como tínhamos um nível parecido no tênis passamos a jogar, quase sempre, nós três, quando eu estava por lá. Devido a nossa habilidade limitada no esporte, mesmo depois de muitas aulas, a maioria das jogadas não saíam como nós planejávamos. E no tênis, não dá pra apontar pro lado e dizer que a culpa foi do zagueiro que fez gol contra, ou do atacante que chutou pra fora. A culpa é sua mesmo, não tem muito jeito.
Eu e meu pai errávamos tanto ou mais que o Diogo, mas a gente se “auto-xingava” repetidas vezes, repensava sobre nossa própria existência no universo, mas ficava por isso mesmo. Dávamos até uma limpadinha na raquete pra ela se sentir melhor para a próxima jogava. Mas o Diogo, quando errava, ficava furioso! O cara se transformava de um pacato cidadão cineasta e violinista num potencial serial killer em poucos segundos! Proclamava os mesmos palavrões que nós, com seu sotaque característico do interior paranaense, mas vez ou outra sobrava para a pobre raquete. E claro, a coitada não resistia a muitos momentos de fúria.
Acho que, pelo menos umas três raquetes eu vi, ou meu pai me contou, que foram destruídas pelo ímpeto de frustração dele. Mas a última raquete que ele quebrou eu lembro bem. Eu tinha uns 16 anos. Estávamos jogando nas quadras da Universidade Federal de Santa Catarina, que eram abertas ao público. Quem quisesse, era só chegar e aguardar a vez para jogar. Num dos milhares de erros que cometíamos, ele lançou a raquete com toda a força contra o alambrado que ficava no fundo da quadra. Mas por azar dele, a raquete atingiu exatamente a parte de ferro, que ficava na vertical, e sustentava o alambrado. Pronto, a raquete quebrou na hora. Bem no encaixe do cabo com a parte das cordas. Quebrou de um lado do cabo e ficou pendurada pelo que ainda restava do outro lado.
Logo depois de se dar conta do que tinha feito, o Diogo já se arrependeu e começou a reclamar consigo mesmo. Disse que não queria quebrar, que jogou para atingir o alambrado, que amorteceria o impacto. Mas não teve jeito, o estrago já estava feito. Vendo que nada podia ser feito, jogou o que sobrou da raquete numa lata de lixo, daquelas grandes que ficavam ao lado da quadra. Ainda joguei um pouco com meu pai neste dia, mas logo fomos embora para nos solidarizarmos com nosso amigo que ficou sem raquete.
Alguns dias se passaram, e durante a semana seguinte o Diogo conseguiu comprar outra raquete. Amarela e preta, idêntica a que ele tinha quebrado. Ligou pra gente e quis logo marcar uma partida no sábado seguinte para estrear a nova raquete que ele dizia que nunca quebraria, nem jogaria no alambrado. Mesmo que fosse só na parte que amorteceria a queda!
Mas, ao chegarmos na universidade, no sábado seguinte, cada um com sua raquete, mais uma vez, a vida nos dá um daqueles tapas na cara que, esses sim, nos fazem repensar o sentido na nossa existência e no limite da nossa idiotice. Ao todo, são umas quatro quadras que ficam lado a lado, e que estão quase sempre cheias. De longe vimos que todas estavam ocupadas, e nos aproximamos para aguardarmos a vez em uma delas.
Chegando mais perto, a cena que vimos foram dois moleques, com uns 10, 12 anos, provavelmente da comunidade que fica perto da universidade jogando em uma das quadras. Um deles com uma raquete já bem surrada, descascando, com as cordas em péssimo estado, e o outro com uma raquete amarela e preta cheia de fita adesiva amarrando o cabo quebrado à parte das cordas. Eles jogavam felizes da vida.
Olhamos um pra cara do outro, o aperto no peito atingiu nós três igualmente, e o Diogo se deu conta de que, o que era descartável pra ele, era a única (e melhor) opção para aqueles garotos. Ele realmente sentiu o baque naquele momento.
Nem sei como foi o nosso jogo naquele dia, mas sei que a lição serviu para todos nós. Não só no tênis, mas para a vida. Cuidemos das nossas “raquetes”. Muita gente sonha com elas.