quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A Raquete (por André Loureiro)


Quando me mudei para Tijuca, no ano 2000, fui morar na rua do clube do bairro, que como o próprio nome já diz, é um clube dedicado ao tênis. Nesse mesmo ano, meu pai foi morar em Florianópolis, cidade natal do Guga, maior tenista brasileiro, e que à época estava no auge de sua carreira. Inevitavelmente, por esses motivos, comecei a conhecer e gostar do esporte.
Eu que sempre joguei futebol pelo subúrbio do Rio, resolvi me arriscar de verdade e aprender a jogar tênis. Fiz aulas no clube durante um bom tempo, e sempre que visitava meu pai, dava um jeito de fazer caber uma raquete na mala, e jogava por lá também, quase todos os dias.
Os problemas do tênis, na minha opinião, são dois. Primeiro: diferente do futebol, não é um esporte que se aprende sozinho. Dificilmente alguém consegue jogar relativamente bem sem fazer aulas. E segundo: é um esporte caro. As aulas são caras, uma raquete razoável é cara, manutenção de cordas, calçado especial pra jogar, tudo é bem caro. Logo que comecei nas aulas, tive que negociar uma raquete com a minha mãe. Comprei uma vermelha e branca, bem bonita, que não era tão cara, nem tão boa, mas me atendia muito bem. Apesar de não ser uma raquete top de linha, sempre tentei cuidar bem dela e consegui que ela durasse alguns longos anos.
Enquanto aprendia um pouco do esporte, e vendo no clube, e na TV alguns jogos, descobri que alguns jogadores, profissionais ou de finais de semana, tinham o estranho (pra dizer o mínimo) hábito de descontar suas frustrações pelas jogadas mal executadas nas próprias raquetes. Era um tal de jogar raquete no chão, na grade no fundo da quadra, bater com a raquete na rede. No calor do jogo, valia tudo pra descontar a raiva. Cansei de ver cenas desse tipo.
Em Floripa, meu pai também vinha jogando nos finais de semana, e fazendo novas amizades nas quadras, para garantir a partida na semana seguinte. Um dos amigos que meu pai fez através do tênis, chama-se Diogo. Nascido no interior do Paraná, numa cidade chamada Pato Branco, é um cara gente boa até dizer chega. Bem educado, de uma família tradicional com boa condição financeira, conversa bem sobre qualquer assunto e é muito tranquilo, calmo com as palavras. Estudou cinema na Universidade Federal de Santa Catarina e toca violino. O rapaz é nesse nível.
O Diogo deve ser uns 7, 8 anos mais velho que eu. E como tínhamos um nível parecido no tênis passamos a jogar, quase sempre, nós três, quando eu estava por lá. Devido a nossa habilidade limitada no esporte, mesmo depois de muitas aulas, a maioria das jogadas não saíam como nós planejávamos. E no tênis, não dá pra apontar pro lado e dizer que a culpa foi do zagueiro que fez gol contra, ou do atacante que chutou pra fora. A culpa é sua mesmo, não tem muito jeito.
Eu e meu pai errávamos tanto ou mais que o Diogo, mas a gente se “auto-xingava” repetidas vezes, repensava sobre nossa própria existência no universo, mas ficava por isso mesmo. Dávamos até uma limpadinha na raquete pra ela se sentir melhor para a próxima jogava. Mas o Diogo, quando errava, ficava furioso! O cara se transformava de um pacato cidadão cineasta e violinista num potencial serial killer em poucos segundos! Proclamava os mesmos palavrões que nós, com seu sotaque característico do interior paranaense, mas vez ou outra sobrava para a pobre raquete. E claro, a coitada não resistia a muitos momentos de fúria.
Acho que, pelo menos umas três raquetes eu vi, ou meu pai me contou, que foram destruídas pelo ímpeto de frustração dele. Mas a última raquete que ele quebrou eu lembro bem. Eu tinha uns 16 anos. Estávamos jogando nas quadras da Universidade Federal de Santa Catarina, que eram abertas ao público. Quem quisesse, era só chegar e aguardar a vez para jogar. Num dos milhares de erros que cometíamos, ele lançou a raquete com toda a força contra o alambrado que ficava no fundo da quadra. Mas por azar dele, a raquete atingiu exatamente a parte de ferro, que ficava na vertical, e sustentava o alambrado. Pronto, a raquete quebrou na hora. Bem no encaixe do cabo com a parte das cordas. Quebrou de um lado do cabo e ficou pendurada pelo que ainda restava do outro lado.
Logo depois de se dar conta do que tinha feito, o Diogo já se arrependeu e começou a reclamar consigo mesmo. Disse que não queria quebrar, que jogou para atingir o alambrado, que amorteceria o impacto. Mas não teve jeito, o estrago já estava feito. Vendo que nada podia ser feito, jogou o que sobrou da raquete numa lata de lixo, daquelas grandes que ficavam ao lado da quadra. Ainda joguei um pouco com meu pai neste dia, mas logo fomos embora para nos solidarizarmos com nosso amigo que ficou sem raquete.
Alguns dias se passaram, e durante a semana seguinte o Diogo conseguiu comprar outra raquete. Amarela e preta, idêntica a que ele tinha quebrado. Ligou pra gente e quis logo marcar uma partida no sábado seguinte para estrear a nova raquete que ele dizia que nunca quebraria, nem jogaria no alambrado. Mesmo que fosse só na parte que amorteceria a queda!
Mas, ao chegarmos na universidade, no sábado seguinte, cada um com sua raquete, mais uma vez, a vida nos dá um daqueles tapas na cara que, esses sim, nos fazem repensar o sentido na nossa existência e no limite da nossa idiotice. Ao todo, são umas quatro quadras que ficam lado a lado, e que estão quase sempre cheias. De longe vimos que todas estavam ocupadas, e nos aproximamos para aguardarmos a vez em uma delas.
Chegando mais perto, a cena que vimos foram dois moleques, com uns 10, 12 anos, provavelmente da comunidade que fica perto da universidade jogando em uma das quadras. Um deles com uma raquete já bem surrada, descascando, com as cordas em péssimo estado, e o outro com uma raquete amarela e preta cheia de fita adesiva amarrando o cabo quebrado à parte das cordas. Eles jogavam felizes da vida.
Olhamos um pra cara do outro, o aperto no peito atingiu nós três igualmente, e o Diogo se deu conta de que, o que era descartável pra ele, era a única (e melhor) opção para aqueles garotos. Ele realmente sentiu o baque naquele momento.
Nem sei como foi o nosso jogo naquele dia, mas sei que a lição serviu para todos nós. Não só no tênis, mas para a vida. Cuidemos das nossas “raquetes”. Muita gente sonha com elas.