quarta-feira, 20 de abril de 2016

A Farsa


O sujeito veio morar em Florianópolis e, com o passar das semanas, foi ficando impaciente por não ter mais as suas peladas semanais sagradas. Na cidade onde morava ele jogava futebol religiosamente nos finais de semana e, com alguma sorte, até em alguns dias úteis, à noite, mesmo que esporadicamente.
Um dia sua mulher chegou em casa falando que o pessoal do escritório tinha perguntado se ele jogava bola, que eles queriam fazer uns jogos entre os funcionários, mas que eram poucos e por isso estavam perguntando se as pessoas tinham parentes, filhos ou irmãos pra completar as equipes.
Claro que ele aceitou na hora, animado, e mandou a esposa dizer que estava dentro, lógico. Disse pra ela perguntar também se era salão ou grama e, em seguida, foi resgatar a sua chuteira no quartinho pra ver como ela estava, se precisava limpar, dar uma lustrada e tal. Procurou ainda o seu velho meião, que devia estar no fundo da gaveta das meias, e seu entusiasmo só aumentava enquanto ele pensava na roupa e nos acessórios para o jogo.
O entrosamento no dia do jogo foi o melhor possível. Todo mundo do escritório recebeu superbem os jogadores convidados e agregados, e a empatia instantânea era a promessa de grandes amizades que nasceriam, com toda a certeza, dali em diante.
Essa primeira partida foi marcada numa sexta-feira, depois do expediente e, claro, saindo de lá o pessoal foi tomar uma cervejinha, sagrada como o próprio futebol. O sujeito foi junto só pra não fazer desfeita, já que não bebe e tomou apenas o seu guaraná tradicional e depois foi pra casa.
Na segunda-feira o grupinho reunido no cafezinho do escritório fazia a resenha do jogo e alguns reclamavam de dores nas pernas e nas costas, denunciando a idade média do pessoal e a falta de atividade física regular. Mas, mesmo assim, a satisfação estava em cada um e no mais alto grau.
Então a esposa do nosso amigo entrou e perguntou:
- Estranho, vocês estão aí falando que o jogo foi bom, mas que foram pra casa cedo, umas 10 horas. É isso mesmo?
- Sim, mais ou menos isso. Dez horas a gente já estava em casa. O jogo acabou umas 8 e pouco – respondeu um dos colegas.
- Então tem algo errado aí. Meu marido só chegou em casa às 4h30 da madrugada e disse que estava bebendo com vocês. Como é que fica isso? – disse a esposa com claros sinais de irritação.
- Nós tava! – se apressou um outro, sem conseguir quebrar o suspense, e depois prosseguiu - Eu fui embora cedo, mas ficou um monte de gente ainda lá, até tarde.
Automaticamente todos saíram em disparada da copa, cada um tentando esconder a preocupação com o que teria acontecido de verdade com o tal cara. Na sala ao lado, a mulher ouviu um dos gerentes dizer baixinho, em conversa com outro, que eles teriam que fazer alguma coisa, ligar pro cara pra combinar alguma resposta ou algo do gênero. As palavras foram estas:
- Temos de ligar pra ele urgente. Alguma merda esse cara fez na sexta depois do jogo.
Passaram-se poucos minutos e novamente o grupinho estava reunido, agora em uma sala de trabalho. De repente entra na sala a mulher do sujeito, não conseguindo conter o riso depois de ter lido, pelo movimento labial, o recente comentário do gerente.
- Vocês hein, são um bando de machistas mesmo. Meu marido chegou em casa às 10 da noite, seus espertos. Não chegou nada às 4h. Eu só queria saber se vocês eram meus amigos também. Mas estou vendo que eu estou ferrada com vocês, pois homem é tudo igual: um defende o outro. Mesmo com todo esse meu tempo de trabalho junto com vocês, e mesmo vocês acabando de conhecer o meu marido, ainda assim defendem ele? Que decepção! – e caiu na gargalhada por ter pego todo mundo na farsa.
- Pô, gente, nem brinca com uma coisa dessas - disse um dos gerentes pra lá de desconcertado. A gente só estava tentando entender. Quê isso! A gente gosta muito de você, mas ficamos com pena do cara. Ele é gente boa!
- Que nada, vocês homens são todos iguais - finalizou triunfante a esposa.
O que se viu durante a tarde foi uma multiplicação de versões pra contar a mesma farsa. Cada qual tentando traduzir a armação criada pela mulher que, claro, era a que mais se divertia cada vez que contava os detalhes da história para as colegas do escritório.
Daquele dia em diante, toda vez que acabava o jogo do escritório, os jogadores diziam pro sujeito:
- Vai pra casa direto, hein! Não vai ficar bebendo por aí, nem vai chegar em casa de madrugada, senão tua mulher esfola a gente vivo na segunda-feira.


segunda-feira, 4 de abril de 2016

A Padaria Elétrica


Quando eu fui morar em Salvador, no início da década de 90, tive de passar por muitas adaptações. Acho que isso acontece com qualquer pessoa que muda de cidade, ainda mais se for a sua primeira vez e se o caso for sair da sua cidade natal.
Eu estranhei de cara, por exemplo, a comida, o calor e os ônibus. A comida, tanto dos restaurantes como das lanchonetes por serem muito condimentadas e apimentadas; o calor por ser bem maior que o do Rio e os ônibus por que simplesmente não havia, as pessoas ficavam horas esperando no ponto e eu ficava irritado porque ninguém reclamava. Aliás, igualzinho a Florianópolis em 2016.
Um dia eu descobri que tinha uma padaria no caminho entre o Campo Grande, onde eu trabalhava, e o Pelourinho que fazia um sonho de goiabada. Eu morria de saudades dos doces das confeitarias do Rio e assim que pude parti pra desvendar a tal Padaria Elétrica. Ela ficava perto da sede da prefeitura de Salvador, uma localidade cheia de ladeiras e ruas estreitas, nas imediações dos principais pontos turísticos do Centro da cidade.
Eu literalmente esquecia de mim andando por ali pelo comércio popular onde se vendiam as frutas do Norte e Nordeste, olhando as barracas de ervas e raízes medicinais e também as bancas de pimentas de mil formas, cores e tamanhos. Tinha também as baianas de acarajé, claro, onde muitas vezes eu almoçava, além dos artesanatos, que eram uma miscelânea de dar gosto.
No órgão onde eu trabalhava a gente tinha longas duas horas de almoço. Muita gente que morava perto ia pra casa almoçar e dormir, mas, como esse não era o meu caso, sempre me sobrava muito tempo pra ficar deambulando por aquele centro histórico rico e belo.
Lembro-me de uma colega de sala, a Rosângela, que morava longe também e que aproveitava a sua hora de almoço como ninguém. Ela trazia comida de casa e esquentava na própria copa do andar. Rapidinho, depois de comer ela voltava pra sala, tirava do armário dos processos um colchonete, um lençol e um travesseiro e dormia de sonhar no fresquinho do ar-condicionado, uma bênção naquela terra. Chegava a ficar com o rosto e os olhos inchados de tanto dormir a moça.
Depois da grata surpresa de encontrar a Padaria Elétrica e o seu famoso sonho de goiabada – uma novidade para mim –, eu passei a encaixar nas minhas caminhadas pós almoço uma passada naquela bela casa portuguesa, onde o seu Álvaro me chamava de carioca e assim que me via gritava pra um dos atendentes “um sonho de goiabada aqui pro carioca” e eu já corria pra sentar num daqueles bancos altos do balcão.
Não posso dizer que a padaria ficava longe, mas, também, perto não ficava. O problema é que eu tinha um bom tempo livre no meio do trabalho e nem mesmo o calor daquela cidade, daquele Centro, me impedia de me render à fissura do sonho de goiabada. Então eu, na maioria das vezes, almoçava e depois ia pra lá automaticamente cumprir o meu ritual gourmet.
Na ida era tudo lindo. Já na volta pro trabalho eu vinha encalorado descendo aquelas ladeiras, fugindo do sol e louco por um ar-condicionado. Minha camisa molhada de suor e meu rosto vermelho já eram comuns e quando eu chegava ao escritório ia direto ao banheiro jogar uma água pra me refrescar, antes de ir pra minha sala.
Na verdade eu ficava ainda um tempinho, fazendo hora pra não acordar a Rosângela. Como eu sabia que ela caía no sono profundo e que botava até despertador pras duas da tarde, eu ficava por ali tentando perceber se ela já tinha acordado ou se já havia movimento na sala. Só então eu movia a maçaneta.
A cena era ótima por sinal. Ela toda fresquinha, com cara de sono, casaquinho fino nas costas, falando com toda a calma e eu esbaforido, todo suado, inquieto, me abanando na frente do ar-condicionado. Sentia que ela me olhava de cima abaixo quando se preparava pra sair da sala com sua escovinha e pasta de dente rumo ao banheiro. De tanto isso acontecer um dia ela me perguntou com decisão:
- Eu estou muito intrigada com essa coisa de você chegar todo dia, assim, suado. Me diga lá, aqui só pra mim: que raios você faz na hora do almoço, rapaz? Fala pra mim.
Eu contei tudo e ela escutava a minha história só balançando a cabeça. De vez em quando ela dizia o nome de uma santa, do tipo Santa Bárbara, minha Santa Efigênia ou apenas um Nossa Senhora, comentando que estava exausta só de me ouvir falar aquilo tudo. No final disse que provavelmente eu voltava do almoço com fome, pois que já tinha consumido toda a comida que havia ingerido enquanto caminhava e que aquilo não podia fazer bem pra ninguém.
Depois daquilo a gente passou alguns dias conversando sobre o meu horário de almoço e o dela, comparando as coisas, trocando ideias, analisando, por exemplo, a parte metabólica do nosso organismo, o meu esforço físico diário, a quantidade de sono que cada pessoa necessita, o calor de Salvador e a relação dos movimentos peristálticos com a nossa digestão. Enfim, um papo científico, complacente, cujo intuito era buscar o melhor para a saúde de ambos.
Ao final de uma semana o resultado prático de toda essa nossa conversa foi que eu passei a trazer um sonho de goiabada pra ela todo dia. Nem ela me convenceu, nem eu a ela. Mas dali em diante, todo dia quando eu saía pro almoço ela me perguntava:
- Então, será que você vai passar na Padaria Elétrica hoje?
- Só se você deixar esse ar bem geladinho – eu dizia rindo.
Ela mostrava o polegar levantado e depois esfregava as mãos dizendo “combinado”. E eu saía porta afora rumo ao almoço. Tinha dias em que eu nem estava a fim de comer o tal sonho de goiabada. Mas como eu ia ter de ir lá mesmo pra trazer o da Rosângela, acabava comendo um também. Mas eu nem queria. Eu juro!