Quando
eu fui morar em Salvador, no início da década de 90, tive de passar por muitas
adaptações. Acho que isso acontece com qualquer pessoa que muda de cidade,
ainda mais se for a sua primeira vez e se o caso for sair da sua cidade natal.
Eu
estranhei de cara, por exemplo, a comida, o calor e os ônibus. A comida, tanto
dos restaurantes como das lanchonetes por serem muito condimentadas e
apimentadas; o calor por ser bem maior que o do Rio e os ônibus por que
simplesmente não havia, as pessoas ficavam horas esperando no ponto e eu ficava
irritado porque ninguém reclamava. Aliás, igualzinho a Florianópolis em 2016.
Um
dia eu descobri que tinha uma padaria no caminho entre o Campo Grande, onde eu
trabalhava, e o Pelourinho que fazia um sonho de goiabada. Eu morria de
saudades dos doces das confeitarias do Rio e assim que pude parti pra desvendar
a tal Padaria Elétrica. Ela ficava perto da sede da prefeitura de
Salvador, uma localidade cheia de ladeiras e ruas estreitas, nas imediações dos
principais pontos turísticos do Centro da cidade.
Eu
literalmente esquecia de mim andando por ali pelo comércio popular onde se
vendiam as frutas do Norte e Nordeste, olhando as barracas de ervas e raízes
medicinais e também as bancas de pimentas de mil formas, cores e tamanhos.
Tinha também as baianas de acarajé, claro, onde muitas vezes eu almoçava, além
dos artesanatos, que eram uma miscelânea de dar gosto.
No
órgão onde eu trabalhava a gente tinha longas duas horas de almoço. Muita gente
que morava perto ia pra casa almoçar e dormir, mas, como esse não era o meu
caso, sempre me sobrava muito tempo pra ficar deambulando por aquele centro
histórico rico e belo.
Lembro-me de uma colega de sala, a Rosângela, que morava longe também e que aproveitava a
sua hora de almoço como ninguém. Ela trazia comida de casa e esquentava na
própria copa do andar. Rapidinho, depois de comer ela voltava pra sala, tirava
do armário dos processos um colchonete, um lençol e um travesseiro e dormia de
sonhar no fresquinho do ar-condicionado, uma bênção naquela terra. Chegava a
ficar com o rosto e os olhos inchados de tanto dormir a moça.
Depois
da grata surpresa de encontrar a Padaria Elétrica e o seu famoso sonho de
goiabada – uma novidade para mim –, eu passei a encaixar nas minhas caminhadas
pós almoço uma passada naquela bela casa portuguesa, onde o seu Álvaro me
chamava de carioca e assim que me via gritava pra um dos atendentes “um sonho
de goiabada aqui pro carioca” e eu já corria pra sentar num daqueles bancos
altos do balcão.
Não
posso dizer que a padaria ficava longe, mas, também, perto não ficava. O
problema é que eu tinha um bom tempo livre no meio do trabalho e nem mesmo o
calor daquela cidade, daquele Centro, me impedia de me render à fissura do
sonho de goiabada. Então eu, na maioria das vezes, almoçava e depois ia pra lá
automaticamente cumprir o meu ritual gourmet.
Na
ida era tudo lindo. Já na volta pro trabalho eu vinha encalorado descendo
aquelas ladeiras, fugindo do sol e louco por um ar-condicionado. Minha camisa
molhada de suor e meu rosto vermelho já eram comuns e quando eu chegava ao
escritório ia direto ao banheiro jogar uma água pra me refrescar, antes de ir
pra minha sala.
Na
verdade eu ficava ainda um tempinho, fazendo hora pra não acordar a Rosângela.
Como eu sabia que ela caía no sono profundo e que botava até despertador pras
duas da tarde, eu ficava por ali tentando perceber se ela já tinha acordado ou
se já havia movimento na sala. Só então eu movia a maçaneta.
A
cena era ótima por sinal. Ela toda fresquinha, com cara de sono, casaquinho
fino nas costas, falando com toda a calma e eu esbaforido, todo suado,
inquieto, me abanando na frente do ar-condicionado. Sentia que ela me olhava de
cima abaixo quando se preparava pra sair da sala com sua escovinha e pasta de dente
rumo ao banheiro. De tanto isso acontecer um dia ela me perguntou com decisão:
-
Eu estou muito intrigada com essa coisa de você chegar todo dia, assim, suado.
Me diga lá, aqui só pra mim: que raios você faz na hora do almoço, rapaz? Fala
pra mim.
Eu
contei tudo e ela escutava a minha história só balançando a cabeça. De vez em
quando ela dizia o nome de uma santa, do tipo Santa Bárbara, minha Santa
Efigênia ou apenas um Nossa Senhora, comentando que estava exausta só de me
ouvir falar aquilo tudo. No final disse que provavelmente eu voltava do almoço
com fome, pois que já tinha consumido toda a comida que havia ingerido enquanto
caminhava e que aquilo não podia fazer bem pra ninguém.
Depois
daquilo a gente passou alguns dias conversando sobre o meu horário de almoço e
o dela, comparando as coisas, trocando ideias, analisando, por exemplo, a parte
metabólica do nosso organismo, o meu esforço físico diário, a
quantidade de sono que cada pessoa necessita, o calor de Salvador e a relação
dos movimentos peristálticos com a nossa digestão. Enfim, um papo científico,
complacente, cujo intuito era buscar o melhor para a saúde de ambos.
Ao
final de uma semana o resultado prático de toda essa nossa conversa foi que eu
passei a trazer um sonho de goiabada pra ela todo dia. Nem ela me convenceu,
nem eu a ela. Mas dali em diante, todo dia quando eu saía pro almoço ela me
perguntava:
-
Então, será que você vai passar na Padaria Elétrica hoje?
-
Só se você deixar esse ar bem geladinho – eu dizia rindo.
Ela
mostrava o polegar levantado e depois esfregava as mãos dizendo “combinado”. E
eu saía porta afora rumo ao almoço. Tinha dias em que eu nem estava a fim de
comer o tal sonho de goiabada. Mas como eu ia ter de ir lá mesmo pra trazer o
da Rosângela, acabava comendo um também. Mas eu nem queria. Eu juro!