segunda-feira, 4 de abril de 2016

A Padaria Elétrica


Quando eu fui morar em Salvador, no início da década de 90, tive de passar por muitas adaptações. Acho que isso acontece com qualquer pessoa que muda de cidade, ainda mais se for a sua primeira vez e se o caso for sair da sua cidade natal.
Eu estranhei de cara, por exemplo, a comida, o calor e os ônibus. A comida, tanto dos restaurantes como das lanchonetes por serem muito condimentadas e apimentadas; o calor por ser bem maior que o do Rio e os ônibus por que simplesmente não havia, as pessoas ficavam horas esperando no ponto e eu ficava irritado porque ninguém reclamava. Aliás, igualzinho a Florianópolis em 2016.
Um dia eu descobri que tinha uma padaria no caminho entre o Campo Grande, onde eu trabalhava, e o Pelourinho que fazia um sonho de goiabada. Eu morria de saudades dos doces das confeitarias do Rio e assim que pude parti pra desvendar a tal Padaria Elétrica. Ela ficava perto da sede da prefeitura de Salvador, uma localidade cheia de ladeiras e ruas estreitas, nas imediações dos principais pontos turísticos do Centro da cidade.
Eu literalmente esquecia de mim andando por ali pelo comércio popular onde se vendiam as frutas do Norte e Nordeste, olhando as barracas de ervas e raízes medicinais e também as bancas de pimentas de mil formas, cores e tamanhos. Tinha também as baianas de acarajé, claro, onde muitas vezes eu almoçava, além dos artesanatos, que eram uma miscelânea de dar gosto.
No órgão onde eu trabalhava a gente tinha longas duas horas de almoço. Muita gente que morava perto ia pra casa almoçar e dormir, mas, como esse não era o meu caso, sempre me sobrava muito tempo pra ficar deambulando por aquele centro histórico rico e belo.
Lembro-me de uma colega de sala, a Rosângela, que morava longe também e que aproveitava a sua hora de almoço como ninguém. Ela trazia comida de casa e esquentava na própria copa do andar. Rapidinho, depois de comer ela voltava pra sala, tirava do armário dos processos um colchonete, um lençol e um travesseiro e dormia de sonhar no fresquinho do ar-condicionado, uma bênção naquela terra. Chegava a ficar com o rosto e os olhos inchados de tanto dormir a moça.
Depois da grata surpresa de encontrar a Padaria Elétrica e o seu famoso sonho de goiabada – uma novidade para mim –, eu passei a encaixar nas minhas caminhadas pós almoço uma passada naquela bela casa portuguesa, onde o seu Álvaro me chamava de carioca e assim que me via gritava pra um dos atendentes “um sonho de goiabada aqui pro carioca” e eu já corria pra sentar num daqueles bancos altos do balcão.
Não posso dizer que a padaria ficava longe, mas, também, perto não ficava. O problema é que eu tinha um bom tempo livre no meio do trabalho e nem mesmo o calor daquela cidade, daquele Centro, me impedia de me render à fissura do sonho de goiabada. Então eu, na maioria das vezes, almoçava e depois ia pra lá automaticamente cumprir o meu ritual gourmet.
Na ida era tudo lindo. Já na volta pro trabalho eu vinha encalorado descendo aquelas ladeiras, fugindo do sol e louco por um ar-condicionado. Minha camisa molhada de suor e meu rosto vermelho já eram comuns e quando eu chegava ao escritório ia direto ao banheiro jogar uma água pra me refrescar, antes de ir pra minha sala.
Na verdade eu ficava ainda um tempinho, fazendo hora pra não acordar a Rosângela. Como eu sabia que ela caía no sono profundo e que botava até despertador pras duas da tarde, eu ficava por ali tentando perceber se ela já tinha acordado ou se já havia movimento na sala. Só então eu movia a maçaneta.
A cena era ótima por sinal. Ela toda fresquinha, com cara de sono, casaquinho fino nas costas, falando com toda a calma e eu esbaforido, todo suado, inquieto, me abanando na frente do ar-condicionado. Sentia que ela me olhava de cima abaixo quando se preparava pra sair da sala com sua escovinha e pasta de dente rumo ao banheiro. De tanto isso acontecer um dia ela me perguntou com decisão:
- Eu estou muito intrigada com essa coisa de você chegar todo dia, assim, suado. Me diga lá, aqui só pra mim: que raios você faz na hora do almoço, rapaz? Fala pra mim.
Eu contei tudo e ela escutava a minha história só balançando a cabeça. De vez em quando ela dizia o nome de uma santa, do tipo Santa Bárbara, minha Santa Efigênia ou apenas um Nossa Senhora, comentando que estava exausta só de me ouvir falar aquilo tudo. No final disse que provavelmente eu voltava do almoço com fome, pois que já tinha consumido toda a comida que havia ingerido enquanto caminhava e que aquilo não podia fazer bem pra ninguém.
Depois daquilo a gente passou alguns dias conversando sobre o meu horário de almoço e o dela, comparando as coisas, trocando ideias, analisando, por exemplo, a parte metabólica do nosso organismo, o meu esforço físico diário, a quantidade de sono que cada pessoa necessita, o calor de Salvador e a relação dos movimentos peristálticos com a nossa digestão. Enfim, um papo científico, complacente, cujo intuito era buscar o melhor para a saúde de ambos.
Ao final de uma semana o resultado prático de toda essa nossa conversa foi que eu passei a trazer um sonho de goiabada pra ela todo dia. Nem ela me convenceu, nem eu a ela. Mas dali em diante, todo dia quando eu saía pro almoço ela me perguntava:
- Então, será que você vai passar na Padaria Elétrica hoje?
- Só se você deixar esse ar bem geladinho – eu dizia rindo.
Ela mostrava o polegar levantado e depois esfregava as mãos dizendo “combinado”. E eu saía porta afora rumo ao almoço. Tinha dias em que eu nem estava a fim de comer o tal sonho de goiabada. Mas como eu ia ter de ir lá mesmo pra trazer o da Rosângela, acabava comendo um também. Mas eu nem queria. Eu juro!