quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Baterista


O treino do nosso time de futebol de salão acabou mais cedo naquela manhã e, justamente por isso, a gente teria que esperar um bom tempo até a hora do jogo, marcado pro final da tarde. Já tinha uns três anos que eu fazia parte do time do colégio representando a turma final 01. Na quinta série eu era da 501, depois 601 e agora 701, na terceira série do ginasial.
Ir pra casa e depois voltar pro colégio mais tarde, ia demorar muito nos trajetos de ônibus e definitivamente não valia a pena. Então ficar por ali, almoçar todos juntos, e depois irmos pro jogo seria uma boa saída. Fomos a pé até o shopping perto do colégio e, de lá, o Zé Maria, que era o nosso goleiro e o mais novo integrante da equipe, sugeriu que fôssemos até a sua casa, que era perto também, pois lá a gente ficaria mais à vontade e talvez até o tempo passasse mais rápido.
Não me lembro do nome de todos os jogadores mas, além do Zé Maria, tinha o Mãozinha, um sujeito atarracado que tinha a mão encolhida para dentro, um defeito de nascença ao qual ele já era totalmente adaptado. O cara jogava uma bola redondinha e a gente achava que era porque ele nunca ia pro gol nas peladas de rua por causa da sua mão. Aí só podia ser craque mesmo com a bola nos pés.
Outro colega era o Silvio, colecionador de selos e moedas antigas. Ninguém sabia dizer como um nerd daquele, que só queria saber de livros, moedas e selos tinha resultado em um jogador de futebol. Ele tinha uma voz grossa e era o que mais sofria com as espinhas no rosto. Totalmente diferente do Lúcio. Extrovertido e popular com as meninas, era o cara que acionava a torcida quando o time precisava. Imitador talentoso, fazia com perfeição quase todas as vozes dos personagens do desenho Família Buscapé, principalmente a mãe Bié e o pai, Zé Buscapé. Como a turma tinha dois Lúcios, ele herdou o sobrenome da família do seriado.
Como toda turma de colégio, a gente se divertia muito e estudava pouco. Jogava mais bola do que fazia aula de Educação Física – normal – tanto que teve um ano daquele que eu fiquei em recuperação por causa de faltas na matéria. Eu e meu irmão. Enquanto o professor dava aqueles exercícios chatos e repetitivos a gente ficava de olho pra ver o momento certo que a bola começava a rolar no campo de terra batida do colégio. Dali pra entrar no time era uma só carreira. E nada de dar presença na chamada.
Quando a gente chegou na casa do Zé Maria, deu de cara com uma bateria. Uma enorme bateria, com pratos em toda a volta e aqueles ferros prateados brilhando em cada peça reluzente. Um tapete preto embaixo dela tornava mais bonito ainda o contraste com as estruturas na cor bege, rajadas como se fossem peles de animal. Só de olhar aquilo tudo, já dava vontade de tocar. Ou de ouvir, dependendo da capacidade motora de cada um.
No meu caso eu só queria sentir o som daquele objeto inanimado que estava prestes a ganhar uma alma. Então o Zé Maria explicou que, apesar de a bateria ser dele, já não tocava muito. Fez aula até, mas foi se desinteressando aos poucos por não tocar mais com os amigos da cidade onde morava anteriormente. Disse que depois da mudança aí mesmo foi que deixou a bateria de lado.
– Na verdade, quem toca mesmo hoje é o meu irmão mais novo – disse o dono da bateria. Ele é fera nesse troço e já me deixou no chinelo de tão bem que toca agora. Daqui a pouco ele chega do colégio com a minha mãe e vai tocar pra vocês. Esperem, só!
Nesse momento, quando a gente já estava largando as mochilas no sofá, surge o baterista na porta. Quando nos viu deve ter imaginado a plateia que teria e, logo que o Zé Maria pediu uma canja, ele já foi se instalando na banqueta, não sem antes dizer o “posso, mãe?” automático de menino, que a gente suspeitou ser algo frequente e diário.
O moleque destruiu aquela bateria. Acho que bastaram 20 segundos e a gente já estava rindo um pro outro, como que não acreditando no que estava ouvindo e vendo. O equipamento de som da sala tinha sido ligado e a apresentação consistia em acompanhar a música que estava tocando. Mas o guri era demais. Passeava entre os tambores e pratos como se tudo aquilo fosse uma extensão dos seus braços. Alternava partes mais suaves para, logo em seguida, irromper musicalmente triunfante nas viradas perfeitas da música e a gente só ficava esperando o final daquilo tudo, normalmente com o ataque aos pratos lá do alto.
Um show daquele eu jamais me esqueci. Mas esta história não teria sentido pra mim se eu não mencionasse que irmão do Zé Maria era portador de Síndrome de Down. Todos nós percebemos de cara, assim que ele entrou, mas nos preparamos para incentivá-lo qual fosse o seu desempenho na bateria. Esperávamos, equivocadamente, por uma apresentação mediana, medíocre até, mas considerando as suas limitações estávamos prontos pra aplaudir aquele garoto especial de qualquer maneira.
E é por isso que essa história me marcou a vida. Porque os sorrisos de todos nós, juntos, amando aquela performance, é algo inesquecível pra mim. Foi uma lição de solidariedade, de humanidade, de perseverança, de amor ao próximo e tantos sentimentos bons misturados que nos tornou alegres de um modo diferente naquela tarde.
Ao final da música a gente se levantou, aplaudiu, assobiou até, e abraçou o garoto como se fosse também nosso irmão e não só do Zé Maria. Eu nunca tinha tido uma proximidade com a Síndrome e, acho que talvez por isso, a minha surpresa e contentamento foram tão grandes. E desde então, eu nunca mais olhei aquela condição com sentimento de pena ou esperando algo de medíocre. Não mesmo.
Naquela tarde, indo pro jogo, o Zé Maria explicou que o irmão tinha certa dificuldade pra amarrar os sapatos, pra abotoar a própria camisa, o relógio e coisas do gênero. Mas que para outras tantas coisas ele era assim, inexplicável. Nossa família nem tem ideia de alguns talentos que ele tem, até que ele mostra pra gente lá de casa e todos ficamos abismados – disse.
Embora eu ache que aquela tarde pra mim ainda não terminou, posso dizer que, por uma tarde, eu também fui um desses fãs. Abismados.


terça-feira, 12 de julho de 2016

Seu Dico


Conheci o Seu Dico em 2004. Eu estava fazendo um trabalho como assessor de imprensa e fui ajudar o Seu Dico a dar uma entrevista a um canal de tevê local de Florianópolis. A pauta era a restauração de embarcações tradicionais de Santa Catarina, em especial as baleeiras, que são barcos rápidos, geralmente a remo e originalmente criados para o cerco a baleias.
Restaurador por excelência, mestre carpinteiro de nome e sobrenome, como ele mesmo dizia, por ter aprendido o ofício com seu pai, que aprendera com seu avô e daí até os primórdios, Seu Dico morava na Costa da Lagoa, numa comunidade aonde só se chega de barco e onde moravam os seus seis irmãos, todos na vizinhança próxima, em casas construídas por eles mesmos.
O mestre, de fala mansa e pausada, foi logo explicando que não tinha estudo, sublinhando sempre na sua prosa que naquele tempo “não tinha a lei” e as ciências eram passadas de pai para filho. Foi daí que ele aprendeu a consertar os barcos dos amigos do pai, primeiramente, e depois começou ele próprio a construir os seus, ainda sob o olhar paterno que percebeu nele o dom para criar a curvatura perfeita na madeira, tão necessária para aquele tipo de embarcação.
Quando falava das suas baleeiras, Seu Dico não escondia de ninguém o brilho nos olhos e apontava sempre para as águas da Lagoa da Conceição como se estivesse vendo o barco passando, vencendo as marolas e o vento com facilidade. Nessas horas a gente também olhava, automaticamente, mas era em vão. E nos resignávamos a somente ouvir as suas histórias.
A gravação da reportagem foi ótima e ele respondeu a todas as perguntas e às curiosidades da repórter com paciência e tentando explicar, para nós mortais, como os barcos atuais, de fibra e motor, não chegam nem aos pés da sensação que é navegar em uma baleeira, seja de remo ou com vela. Sobre o restauro a aula foi ainda mais interessante, pois o modo construtivo do barco mostrou-se fascinante e tinha ainda as peculiaridades da manutenção como o processo de calafetar, de sobrepor as madeiras, os encaixes, o cavername, a retranca e o verdugo, termos que ele usava como se falasse de velhos amigos.
A certa altura a repórter pediu licença pra perguntar algo que havia sido dito e que ela não anotou na hora e por isso queria voltar. Então disse que percebeu que em diversos momentos o mestre falava sobre a lei, que naquele tempo não tinha a lei, que agora com a lei, e ela não entendeu o que significava essa tal lei e, mais, que lei era essa.
Seu Dico parou, olhou pra Lagoa e, sem perder o seu ritmo pausado característico, iniciou:
– Quando meu avô começou a construir barcos ele usava uma madeira de medição. Tudo que o barco tinha era medido por aquela madeira. Meu pai já usava as medidas normais de régua, de trena, fazia um modelo dos ângulos dos encaixes para serem todos no mesmo padrão e foi com ele que eu aprendi tudo. Um dia chegou um sujeito aqui e falou pra ele que tinha que ter planta; que agora tinha uma lei que a pessoa que ia construir barco tinha que levar uma planta do barco na Capitania. A planta ficava lá com eles e os engenheiros de lá davam o carimbo de aprovação. Só depois dessa aprovação é que a pessoa podia construir o barco.
Fez uma pausa pra ver se a gente estava entendendo e prosseguiu:
– Meu pai ficou muito triste com aquilo. A gente parou de construir os barcos e passamos a só consertar mesmo. Muito ruim. Mas era a lei e a gente tinha que cumprir. Até os barcos que já estavam prontos pra navegar no mar disseram que tinham que ter a tal licença, e a licença só com a planta. Então, uma vez eu consertei um barco do filho de um oficial da Marinha. Era um barco pequeno, de fácil conserto. Quando ele veio buscar, o pai junto, o filho falou que eu não podia construir por causa da lei. Uns dias depois dois engenheiros da Marinha vieram aqui a mando do oficial e mediram todo o meu barco. Vistoriaram tudo só anotando as coisas numa prancheta. Elogiaram até o meu trabalho e foram embora. Um tempo depois o filho dele me pediu pra eu levar o barco lá na Capitania no dia tal, na hora tal e eu fui. E quando eu cheguei lá a minha licença estava pronta e o meu barco foi registrado. É aquele número ali na frente – disse apontando.
A repórter então, um tanto resignada, perguntou:
– Bem, desde então o senhor não constrói mais nada, só conserta e restaura os barcos?
– Nada disso, senhora, eu continuo fazendo os meus barquinhos, sim.
– Mas e a lei? – objetou ela, insegura.
– Ora, eu dei o meu jeito. Eu agora contrato um engenheiro. Trago ele aqui, mostro como vai ser o barco e ele anota as medidas e depois faz a planta. Aí eu levo na Capitania e eles aprovam a construção. Então eu volto pra casa e construo o meu barco.
– Com a planta? O senhor se guia pela planta, né?
– Que planta nada, moça. Quando eu volto com a autorização, guardo a planta no quarto e construo o barco do meu jeito, da maneira que eu sempre fiz, como meu pai me ensinou. Debaixo do meu colchão tem lá um punhado de planta de barco. Eu boto tudo lá. E essa é a lei!
E todos nós caímos na risada.