O treino do nosso time de futebol de salão
acabou mais cedo naquela manhã e, justamente por isso, a gente teria que esperar
um bom tempo até a hora do jogo, marcado pro final da tarde. Já tinha uns três
anos que eu fazia parte do time do colégio representando a turma final 01. Na
quinta série eu era da 501, depois 601 e agora 701, na terceira série do
ginasial.
Ir pra casa e depois voltar pro colégio mais tarde,
ia demorar muito nos trajetos de ônibus e definitivamente não valia a pena.
Então ficar por ali, almoçar todos juntos, e depois irmos pro jogo seria uma
boa saída. Fomos a pé até o shopping perto do colégio e, de lá, o Zé Maria, que
era o nosso goleiro e o mais novo integrante da equipe, sugeriu que fôssemos
até a sua casa, que era perto também, pois lá a gente ficaria mais à vontade e
talvez até o tempo passasse mais rápido.
Não me lembro do nome de todos os jogadores mas,
além do Zé Maria, tinha o Mãozinha, um sujeito atarracado que tinha a mão
encolhida para dentro, um defeito de nascença ao qual ele já era totalmente
adaptado. O cara jogava uma bola redondinha e a gente achava que era porque ele
nunca ia pro gol nas peladas de rua por causa da sua mão. Aí só podia ser
craque mesmo com a bola nos pés.
Outro colega era o Silvio, colecionador de selos
e moedas antigas. Ninguém sabia dizer como um nerd daquele, que só queria saber
de livros, moedas e selos tinha resultado em um jogador de futebol. Ele tinha
uma voz grossa e era o que mais sofria com as espinhas no rosto. Totalmente
diferente do Lúcio. Extrovertido e popular com as meninas, era o cara que acionava a torcida quando o time precisava. Imitador talentoso, fazia com perfeição quase todas as
vozes dos personagens do desenho Família Buscapé, principalmente a mãe Bié e o
pai, Zé Buscapé. Como a turma tinha dois Lúcios, ele herdou o
sobrenome da família do seriado.
Como toda turma de colégio, a gente se divertia
muito e estudava pouco. Jogava mais bola do que fazia aula de Educação Física –
normal – tanto que teve um ano daquele que eu fiquei em recuperação por causa
de faltas na matéria. Eu e meu irmão. Enquanto o professor dava aqueles
exercícios chatos e repetitivos a gente ficava de olho pra ver o momento certo
que a bola começava a rolar no campo de terra batida do colégio. Dali pra
entrar no time era uma só carreira. E nada de dar presença na chamada.
Quando a gente chegou na casa do Zé Maria, deu
de cara com uma bateria. Uma enorme bateria, com pratos em toda a volta e
aqueles ferros prateados brilhando em cada peça reluzente. Um tapete preto
embaixo dela tornava mais bonito ainda o contraste com as estruturas na cor
bege, rajadas como se fossem peles de animal. Só de olhar aquilo tudo, já dava
vontade de tocar. Ou de ouvir, dependendo da capacidade motora de cada um.
No meu caso eu só queria sentir o som daquele objeto
inanimado que estava prestes a ganhar uma alma. Então o Zé Maria explicou que,
apesar de a bateria ser dele, já não tocava muito. Fez aula até, mas foi se
desinteressando aos poucos por não tocar mais com os amigos da cidade onde morava
anteriormente. Disse que depois da mudança aí mesmo foi que deixou a bateria de
lado.
– Na verdade, quem toca mesmo hoje é o meu irmão
mais novo – disse o dono da bateria. Ele é fera nesse troço e já me deixou no
chinelo de tão bem que toca agora. Daqui a pouco ele chega do colégio com a
minha mãe e vai tocar pra vocês. Esperem, só!
Nesse momento, quando a gente já estava largando
as mochilas no sofá, surge o baterista na porta. Quando nos viu deve ter
imaginado a plateia que teria e, logo que o Zé Maria pediu uma canja, ele já
foi se instalando na banqueta, não sem antes dizer o “posso, mãe?” automático
de menino, que a gente suspeitou ser algo frequente e diário.
O moleque destruiu aquela bateria. Acho que
bastaram 20 segundos e a gente já estava rindo um pro outro, como que não
acreditando no que estava ouvindo e vendo. O equipamento de som da sala tinha
sido ligado e a apresentação consistia em acompanhar a música que estava
tocando. Mas o guri era demais. Passeava entre os tambores e pratos como se
tudo aquilo fosse uma extensão dos seus braços. Alternava partes mais suaves
para, logo em seguida, irromper musicalmente triunfante nas viradas perfeitas
da música e a gente só ficava esperando o final daquilo tudo, normalmente com o
ataque aos pratos lá do alto.
Um show daquele eu jamais me esqueci. Mas esta
história não teria sentido pra mim se eu não mencionasse que irmão do Zé Maria
era portador de Síndrome de Down. Todos nós percebemos de cara, assim que ele
entrou, mas nos preparamos para incentivá-lo qual fosse o seu desempenho na
bateria. Esperávamos, equivocadamente, por uma apresentação mediana, medíocre
até, mas considerando as suas limitações estávamos prontos pra aplaudir aquele garoto
especial de qualquer maneira.
E é por isso que essa história me marcou a vida.
Porque os sorrisos de todos nós, juntos, amando aquela performance, é algo inesquecível pra mim. Foi uma lição de solidariedade,
de humanidade, de perseverança, de amor ao próximo e tantos sentimentos bons
misturados que nos tornou alegres de um modo diferente naquela tarde.
Ao final da música a gente se levantou, aplaudiu,
assobiou até, e abraçou o garoto como se fosse também nosso irmão e não só do
Zé Maria. Eu nunca tinha tido uma proximidade com a Síndrome e, acho que talvez
por isso, a minha surpresa e contentamento foram tão grandes. E desde então, eu
nunca mais olhei aquela condição com sentimento de pena ou esperando algo de
medíocre. Não mesmo.
Naquela tarde, indo pro jogo, o Zé Maria explicou que o irmão tinha certa dificuldade pra amarrar os sapatos, pra abotoar
a própria camisa, o relógio e coisas do gênero. Mas que para outras tantas
coisas ele era assim, inexplicável. Nossa família nem tem ideia de alguns
talentos que ele tem, até que ele mostra pra gente lá de casa e todos ficamos
abismados – disse.
Embora eu ache que aquela tarde pra mim ainda
não terminou, posso dizer que, por uma tarde, eu também fui um desses fãs. Abismados.