Conheci o Seu Dico em 2004. Eu estava fazendo um
trabalho como assessor de imprensa e fui ajudar o Seu Dico a dar uma entrevista
a um canal de tevê local de Florianópolis. A pauta era a restauração de
embarcações tradicionais de Santa Catarina, em especial as baleeiras, que são
barcos rápidos, geralmente a remo e originalmente criados para o cerco a
baleias.
Restaurador por excelência, mestre carpinteiro
de nome e sobrenome, como ele mesmo dizia, por ter aprendido o ofício com seu
pai, que aprendera com seu avô e daí até os primórdios, Seu Dico morava na
Costa da Lagoa, numa comunidade aonde só se chega de barco e onde moravam os
seus seis irmãos, todos na vizinhança próxima, em casas construídas por eles
mesmos.
O mestre, de fala mansa e pausada, foi logo
explicando que não tinha estudo, sublinhando sempre na sua prosa que naquele
tempo “não tinha a lei” e as ciências eram passadas de pai para filho. Foi daí
que ele aprendeu a consertar os barcos dos amigos do pai, primeiramente, e
depois começou ele próprio a construir os seus, ainda sob o olhar paterno que percebeu
nele o dom para criar a curvatura perfeita na madeira, tão necessária para
aquele tipo de embarcação.
Quando falava das suas baleeiras, Seu Dico não
escondia de ninguém o brilho nos olhos e apontava sempre para as águas da Lagoa
da Conceição como se estivesse vendo o barco passando, vencendo as marolas e o
vento com facilidade. Nessas horas a gente também olhava, automaticamente, mas
era em vão. E nos resignávamos a somente ouvir as suas histórias.
A gravação da reportagem foi ótima e ele
respondeu a todas as perguntas e às curiosidades da repórter com paciência e
tentando explicar, para nós mortais, como os barcos atuais, de fibra e motor,
não chegam nem aos pés da sensação que é navegar em uma baleeira, seja de remo
ou com vela. Sobre o restauro a aula foi ainda mais interessante, pois o modo
construtivo do barco mostrou-se fascinante e tinha ainda as peculiaridades da
manutenção como o processo de calafetar, de sobrepor as madeiras, os encaixes, o
cavername, a retranca e o verdugo, termos que ele usava como se falasse de
velhos amigos.
A certa altura a repórter pediu licença pra
perguntar algo que havia sido dito e que ela não anotou na hora e por isso
queria voltar. Então disse que percebeu que em diversos momentos o mestre
falava sobre a lei, que naquele tempo não tinha a lei, que agora com a lei, e
ela não entendeu o que significava essa tal lei e, mais, que lei era essa.
Seu Dico parou, olhou pra Lagoa e, sem perder o seu
ritmo pausado característico, iniciou:
– Quando meu avô começou a construir barcos ele
usava uma madeira de medição. Tudo que o barco tinha era medido por aquela
madeira. Meu pai já usava as medidas normais de régua, de trena, fazia um
modelo dos ângulos dos encaixes para serem todos no mesmo padrão e foi com ele
que eu aprendi tudo. Um dia chegou um sujeito aqui e falou pra ele que tinha
que ter planta; que agora tinha uma lei que a pessoa que ia construir barco
tinha que levar uma planta do barco na Capitania. A planta ficava lá com eles e
os engenheiros de lá davam o carimbo de aprovação. Só depois dessa aprovação é
que a pessoa podia construir o barco.
Fez uma pausa pra ver se a gente estava
entendendo e prosseguiu:
– Meu pai ficou muito triste com aquilo. A gente
parou de construir os barcos e passamos a só consertar mesmo. Muito ruim. Mas
era a lei e a gente tinha que cumprir. Até os barcos que já estavam prontos pra
navegar no mar disseram que tinham que ter a tal licença, e a licença só com a
planta. Então, uma vez eu consertei um barco do filho de um oficial da Marinha.
Era um barco pequeno, de fácil conserto. Quando ele veio buscar, o pai junto, o
filho falou que eu não podia construir por causa da lei. Uns dias depois dois
engenheiros da Marinha vieram aqui a mando do oficial e mediram todo o meu
barco. Vistoriaram tudo só anotando as coisas numa prancheta. Elogiaram até o
meu trabalho e foram embora. Um tempo depois o filho dele me pediu pra eu levar
o barco lá na Capitania no dia tal, na hora tal e eu fui. E quando eu cheguei lá
a minha licença estava pronta e o meu barco foi registrado. É aquele número ali
na frente – disse apontando.
A repórter então, um tanto resignada, perguntou:
– Bem, desde então o senhor não constrói mais
nada, só conserta e restaura os barcos?
– Nada disso, senhora, eu continuo fazendo os
meus barquinhos, sim.
– Mas e a lei? – objetou ela, insegura.
– Ora, eu dei o meu jeito. Eu agora contrato um
engenheiro. Trago ele aqui, mostro como vai ser o barco e ele anota as medidas
e depois faz a planta. Aí eu levo na Capitania e eles aprovam a construção.
Então eu volto pra casa e construo o meu barco.
– Com a planta? O senhor se guia pela planta,
né?
– Que planta nada, moça. Quando eu volto com a
autorização, guardo a planta no quarto e construo o barco do meu jeito, da
maneira que eu sempre fiz, como meu pai me ensinou. Debaixo do meu colchão tem
lá um punhado de planta de barco. Eu boto tudo lá. E essa é a lei!
E todos nós caímos na risada.