sexta-feira, 28 de julho de 2017

A Promessa


Muito católico, devoto de Santa Paulina, a santa dos catarinenses, Machado era só alegria quando a filha nasceu. Sua fé seguia os passos da família, sendo sua mãe também fervorosa desde antes da madre virar santa, coisa que aconteceu recentemente e foi muito festejada na sua cidade, Nova Trento, que fica a 80 quilômetros de Floripa. Pelo nascimento ele agradeceu a todos os santos com os quais simpatizava e que faziam parte do seu “ciclo de fé”, como costumava dizer.
Eu tinha recém-chegado a Floripa e conheci o casal Machado através de outros amigos. A gente falava muito sobre as comparações e diferenças entre as cidades do Rio, São Paulo e Florianópolis, desde as ofertas culturais, ou a falta delas, os transportes públicos, igualmente um caos na Ilha, e com isso o assunto sempre chegava às bicicletas, ciclovias etc.
Quando isso acontecia, a própria mulher do Machado dava força pra ele comprar uma bike, pra ele se exercitar, fazer alguma atividade física que melhorasse a sua condição cardiopulmonar. Na verdade isso era um sofisma que ela usava – e nos confessava – pra evitar dizer que ele estava acima do peso e a necessidade médica era só uma artimanha pra que ele deixasse de ser sedentário e preguiçoso. Essa era a pura verdade.
Sempre que a gente estava reunido e eu comentava que ia jogar tênis nos finais de semana, religiosamente, e que muitas vezes ia de bicicleta, ela aproveitava a deixa pra falar da beleza da Avenida Beiramar, da ciclovia que margeia o oceano, que se podia pedalar ouvindo uma boa música, olhando o céu azul e as árvores, poetizando sempre que podia para, em seguida, voltar a incentivar que o marido comprasse a tal bicicleta, fazer exercício etc. etc. etc.
Mas toda a festa nesta semana era pelo nascimento da filha, Paula, homenagem, claro, a Santa Paulina, como toda a família e os amigos já esperavam. Algum tempo depois os pais notaram que a menina tinha um problema em um dos olhos. Ele parecia desalinhado com o outro e ficava bem mais alto, como se olhasse pra cima o tempo todo. Embora o outro se mexesse normalmente, atendendo aos estímulos visuais, o outro ficava meio parado, só olhando pro alto.
Com os pais assustados, o médico teve trabalho pra dizer que aquilo era, de certa forma, normal e que com um procedimento simples de tapar aquela vista, o olho voltaria pro centro da cavidade e ficaria igual ao outro. Mas a menina teria que ficar com o olho tapado por um certo tempo, até que ficasse boa.
No começo, todos os amigos, a família, todos que conheciam o Machado ficaram apreensivos. Muito mais pela aflição do pai do que com o olho da menina propriamente, até porque muitos tinham conhecimento de algum caso parecido que depois a cura foi efetiva, sem problema algum. Não é tão incomum assim ver crianças na rua com um dos olhos tapados com aquela fita cor da pele, algumas inclusive de óculos, sinal de um possível tratamento semelhante.
Passadas mais algumas semanas eu encontrei o casal na casa de uma amiga. Bem mais tranquilos e vendo que a Paulinha tirava de letra o problema do olho tapado, brincando normalmente, eles contaram que pela recente avaliação médica o olho estava melhorando e era coisa de mais uns dois, três meses, pra poder tirar a venda. Mas no meio da conversa o Machado anunciou que tinha feito uma promessa.
– As notícias são animadoras e eu fiz até uma promessa pra minha filha ficar boa.
– Bacana – dissemos todos em coro.
– Prometi que quando ela ficar boa, com o olho zerinho, eu finalmente vou comprar uma bicicleta.
– Uau, que legal, muito bom – vibramos com ele.
– Sim, e prometi que vou de bicicleta daqui de Floripa até o Santuário de Santa Paulina. E prometi também que o Anderson vai pedalando comigo!
Nesse instante todo mundo aplaudiu, assobiou, gritou, fez a maior festa e, no meio da confusão, ninguém me ouviu dizendo: “Como assim? O cara prometeu e eu que vou pagar a promessa? É isso mesmo?”.
Não teve jeito. Agora eu só estou esperando ele marcar a data. Afinal, promessa é coisa séria!


sexta-feira, 14 de julho de 2017

O Show


No auge do verão no Rio de Janeiro os shows de música pipocavam aos montes a cada final de tarde. De repente, no meio do dia, a gente acabava sabendo que o artista xis iria tocar num espaço público da cidade, que poderia ser o Parque do Arpoador, o Aterro do Flamengo, uma saída de metrô, uma loja de música, uma praça, uma pista de skate ou mesmo o calçadão da própria praia. Era só sair do trabalho e aproveitar o horário de verão.
Uma dessas tardes eu soube que o Flávio Venturini ia fazer um show no campus da UFRJ da Praia Vermelha, onde funciona a Escola de Comunicação. Eu fiz jornalismo na Gama Filho e, como eu conhecia umas pessoas que estudaram na UFRJ, achei que o show seria a minha praia, até porque estava começando a me aventurar a tocar as músicas do Flávio no piano e seria uma boa oportunidade pra vê-lo.
O show foi montado num pequeno palco e a plateia ficava espalhada num espaço amplo que era como uma praça, com jardins em volta e uma fonte perto. As pessoas iam chegando, se acomodando e os técnicos iam ligando os microfones e o piano do músico.
A atmosfera era das melhores, tudo muito aprazível e até o calor infernal do Rio, a certa altura, era suportável com a brisa vindo da Urca e com muita água gelada que era servida aos montes pelos ambulantes que passavam entre o povo com toda a agilidade e destreza pra não incomodar nem atrapalhar o espetáculo.
Muito aplaudido desde a entrada, Flávio Venturini já abriu o show com um sucesso incontestável, que tinha inclusive tocado na abertura de uma novela, e que trouxe a plateia toda para si. Um sujeito tímido como todo bom mineiro e carismático musicalmente, Venturini faz da sua música uma extensão da sua terra, cantando as Minas Gerais de Milton, de Lô e de Toninho como se as quisesse dividir conosco.
Pela informalidade, o show poderia ser considerado pra lá de intimista, como diriam os críticos nos jornais do dia seguinte. Tão íntimo que a certa altura o pianista disse que naquele momento ia atender a um pedido da plateia e perguntou o que as pessoas queriam ouvir. Eu pensei de cara em uma música dele, instrumental, que ficava escondida lá no final do CD que eu havia comprado e que tinha tudo a ver com aquele cenário e aquele show.
Só que era um burburinho danado, o público pedindo as músicas, todo mundo falando ao mesmo tempo e eu ali pensando se pedia a minha preferida também, mas com a certeza de que ninguém ia ouvir. De repente, eu puxei o ar e gritei a plenos pulmões:
– Lindo!
Nesse exato instante todos tinham se calado como que por milagre, fazendo com que meu grito ecoasse muito alto em todo o espaço do show. Na hora, todo mundo olhou pra mim, que morri de vergonha. Como o Flávio Venturini já tinha decidido que música ia tocar, eu fiquei até com a impressão de que ele me fez um sinal de aprovação com a cabeça, me agradecendo pelo meu pedido e concordando com ele de alguma maneira, mas, enfim, isso eu não pude saber ao certo.
De certo mesmo eu só pude perceber que os vários casais gays que estavam em volta me estenderam toda a sua aprovação por eu ter chamado o músico de lindo a plenos pulmões, sem o menor pudor, na frente de todos.
Notei por exemplo que um rapaz olhou pra mim por cima do ombro do namorado e me aplaudiu só com os dedinhos e um belo sorriso solidário. Já uma menina repleta de tatuagens, ou toda rabiscada como diria o meu pai, me enviou um beijinho com seus dois dedinhos na frente dos lábios e um aceno, lindo de se ver.
De pronto, minha primeira reação foi dizer que eu não era gay, que tudo fora um mal entendido com o nome da música etc. Mas no minuto seguinte eu mesmo já duvidava dessa necessidade de explicar o desnecessário. Ia dar muito trabalho explicar e, depois, a música que tinha começado era tão linda! Então eu deixei como estava.
Embora eu tenha identificado vários olhares que se cruzavam com o meu, finalmente me identificando como não gay, isso não fazia mais a menor diferença. Ali ninguém tinha me excluído de nada, nem me censurado, nem tinha sido intolerante ou preconceituoso comigo. Nem por ser gay e tampouco por ser hétero. E eu me senti muito bem com isso.
A música acabou. O show acabou. E eu fui embora pensando nas pessoas que ainda sofrem com isso todos os dias. Cheguei em casa e fui direto botar o CD do Venturini pra tocar. Comecei a ouvir, me sentei no sofá com um saco de Jujuba na mão e disse baixinho: Lindo!