No auge do verão no Rio de Janeiro os shows de
música pipocavam aos montes a cada final de tarde. De repente, no meio do dia,
a gente acabava sabendo que o artista xis iria tocar num espaço público da
cidade, que poderia ser o Parque do Arpoador, o Aterro do Flamengo, uma saída
de metrô, uma loja de música, uma praça, uma pista de skate ou mesmo o calçadão
da própria praia. Era só sair do trabalho e aproveitar o horário de verão.
Uma dessas tardes eu soube que o Flávio
Venturini ia fazer um show no campus da UFRJ da Praia Vermelha, onde funciona a
Escola de Comunicação. Eu fiz jornalismo na Gama Filho e, como eu conhecia umas
pessoas que estudaram na UFRJ, achei que o show seria a minha praia, até porque
estava começando a me aventurar a tocar as músicas do Flávio no piano e seria
uma boa oportunidade pra vê-lo.
O show foi montado num pequeno palco e a plateia
ficava espalhada num espaço amplo que era como uma praça, com jardins em volta
e uma fonte perto. As pessoas iam chegando, se acomodando e os técnicos iam
ligando os microfones e o piano do músico.
A atmosfera era das melhores, tudo muito
aprazível e até o calor infernal do Rio, a certa altura, era suportável com a
brisa vindo da Urca e com muita água gelada que era servida aos montes pelos
ambulantes que passavam entre o povo com toda a agilidade e destreza pra não
incomodar nem atrapalhar o espetáculo.
Muito aplaudido desde a entrada, Flávio
Venturini já abriu o show com um sucesso incontestável, que tinha inclusive
tocado na abertura de uma novela, e que trouxe a plateia toda para si. Um
sujeito tímido como todo bom mineiro e carismático musicalmente, Venturini faz
da sua música uma extensão da sua terra, cantando as Minas Gerais de Milton, de
Lô e de Toninho como se as quisesse dividir conosco.
Pela informalidade, o show poderia ser
considerado pra lá de intimista, como diriam os críticos nos jornais do dia
seguinte. Tão íntimo que a certa altura o pianista disse que naquele momento ia
atender a um pedido da plateia e perguntou o que as pessoas queriam ouvir. Eu
pensei de cara em uma música dele, instrumental, que ficava escondida lá no
final do CD que eu havia comprado e que tinha tudo a ver com aquele cenário e
aquele show.
Só que era um burburinho danado, o público
pedindo as músicas, todo mundo falando ao mesmo tempo e eu ali pensando se
pedia a minha preferida também, mas com a certeza de que ninguém ia ouvir. De
repente, eu puxei o ar e gritei a plenos pulmões:
– Lindo!
Nesse exato instante todos tinham se calado como
que por milagre, fazendo com que meu grito ecoasse muito alto em todo o espaço
do show. Na hora, todo mundo olhou pra mim, que morri de vergonha. Como o
Flávio Venturini já tinha decidido que música ia tocar, eu fiquei até com a
impressão de que ele me fez um sinal de aprovação com a cabeça, me agradecendo
pelo meu pedido e concordando com ele de alguma maneira, mas, enfim, isso eu não
pude saber ao certo.
De certo mesmo eu só pude perceber que os vários
casais gays que estavam em volta me estenderam toda a sua aprovação por eu ter
chamado o músico de lindo a plenos pulmões, sem o menor pudor, na frente de
todos.
Notei por exemplo que um rapaz olhou pra mim por
cima do ombro do namorado e me aplaudiu só com os dedinhos e um belo sorriso
solidário. Já uma menina repleta de tatuagens, ou toda rabiscada como diria o meu
pai, me enviou um beijinho com seus dois dedinhos na frente dos lábios e um
aceno, lindo de se ver.
De pronto, minha primeira reação foi dizer que eu
não era gay, que tudo fora um mal entendido com o nome da música etc. Mas no
minuto seguinte eu mesmo já duvidava dessa necessidade de explicar o
desnecessário. Ia dar muito trabalho explicar e, depois, a música que tinha
começado era tão linda! Então eu deixei como estava.
Embora eu tenha identificado vários olhares que
se cruzavam com o meu, finalmente me identificando como não gay, isso não fazia
mais a menor diferença. Ali ninguém tinha me excluído de nada, nem me
censurado, nem tinha sido intolerante ou preconceituoso comigo. Nem por ser gay
e tampouco por ser hétero. E eu me senti muito bem com isso.
A música acabou. O show acabou. E eu fui embora
pensando nas pessoas que ainda sofrem com isso todos os dias. Cheguei em casa e
fui direto botar o CD do Venturini pra tocar. Comecei a ouvir, me sentei no
sofá com um saco de Jujuba na mão e disse baixinho: Lindo!