No Rio de Janeiro, durante a temporada de verão,
os sábados são dias especiais por vários motivos. O caos no trânsito dá uma
trégua, o Centro da cidade fica vazio e civilizado para sorte dos roteiros culturais e
as praias, bem, as praias não mudam em nada, pois nessa época elas passam todos
os sete dias da semana lotadas.
O fenômeno do verão é que todos, enfim, viramos
turistas diante da grande população que se acarioca nesses meses, vinda de
várias partes do planeta. É uma verdadeira festa ao ar livre, com muito sol e
calor, com os eventos e as várias apresentações culturais por toda a cidade.
Este sábado específico ficou marcado pra mim
porque quando parei naquela faixa de pedestres, esperando o sinal fechar, pude
perceber a diferença de ânimo que havia entre os que estavam no mesmo lado da
calçada que eu e os que estavam no sentido contrário, indo para a praia.
O mundo de gente que estava na outra calçada não deixava a menor dúvida de que todos estavam indo pro mar, enquanto eu e os postados do lado de cá íamos penar em funções chatas ou resolver problemas idem, justamente para aproveitar o sábado.
No meu caso eu ia levar o Olavo, um Chevette 1988,
valente, e ainda com placas de Salvador, ao mecânico, por conta de um reparo na
embreagem. Muito contrariado, mas também resignado, eu estava diante daquela
faixa, cujo sinal insistia em não fechar para dar passagem os pedestres. Uma
eternidade aquilo.
Parecia, inclusive, que os dois grupos, ávidos
pela travessia, se miravam, se mediam e se analisavam como em um duelo, já que
estavam perfilados frente a frente. Era o de cá, com inveja da praia que viria,
e o de lá, com pena dos que se iam pra longe do Atlântico.
Em certo momento eu passei a notar que muita
gente, do outro lado da rua, começava a fotografar o lado em que eu estava. As
máquinas estalavam e as pessoas apontavam, sorriam e procuravam uma melhor
visão e um melhor ângulo pras suas fotos e eu não sabia o por quê daquilo.
Imaginava que tinha alguém famoso ali ao lado, ou coisa assim, mas eu não
conseguia saber ao certo, pois tinha muita gente junto e próxima. E as pessoas
cada vez mais apontando, uns aplaudindo, até que o sinal fechou para o
trânsito.
Neste momento, como se estivesse tudo ensaiado
com o público, surge uma enorme Branca de Neve, toda maquiada, com as roupas coloridas
fielmente ao figurino da personagem, os cabelos negros lisos escorridos, uns
cílios enormemente fixados e uma boca de batom que emoldurava um sorriso superlativo
de miss saída dos contos de fadas.
Era uma Drag Queen ma-ra-vi-lho-sa, adjetivo
redundante, mas obrigatório, toda montada em purpurinas e adereços que dava
adeusinho aos súditos e posava para as fotos bem no meio da Avenida Nossa
Senhora de Copacabana, tornada passarela pelo povo em delírio.
A princípio inusitada, a cena na verdade era
comum naquele pedaço de Copacabana, pois eu mesmo como morador das imediações,
vez por outra dava de cara, ora com uma Marilyn Monroe, ora com uma Scarlet
O´hara, que educadamente passavam esvoaçantes cumprimentando a todos, seja qual
fosse a hora do dia ou da madrugada.
Eu só sei que o sinal abriu aos carros, depois
tornou a fechar, e a Branca de Neve de dois metros de altura continuava ali no
meio da avenida, rodeada, sendo fotografada, aplaudida e venerada. Os motoristas
daquele sábado pareciam totalmente vencidos pelos ensejos artísticos e
festeiros do verão e sequer buzinavam, em respeito à performance da mulher branca como a neve. Alguns passageiros até desceram
dos ônibus pra ver de perto aquela celebração e a multidão só aumentava com o
passar do tempo.
A Drag Queem sorria e sorria, distribuía
beijocas com a ponta dos dedos adornados por unhas enormes e coloridas e
abraçava as pessoas pra compor o enquadramento para as fotos solicitadas. Num
dado momento ela anunciou, com toda a calma, que teria que ir e eu me surpreendi
com a sua voz macia e doce, que não combinava em nada com o corpanzil que
sustentava toda aquela personificação. Então os aplausos aumentaram de
intensidade significativamente, pois seriam agora aplausos de despedida, do happy end, respondidos pela bela com
acenos efusivos de adeus e agradecimento.
Quando finalmente as duas multidões voltaram a
se separar, cada uma buscando o seu destino original, no rumo da praia e no rumo
oposto, uma voz fina e afetada irrompeu a rua aos gritos de “me espera Branca
de Neve”.
De imediato todos nos viramos para descobrir de
onde vinha aquela voz e, quando conseguimos, nos deparamos com uma e-nor-me
Mulher Maravilha, tão alta e elegante quanto a ama dos anões, não menos
colorida e espalhafatosa, que foi recebida devidamente com a mesma festa e com
gritinhos de “maravilha e maravilhosa”, igualmente redundantes e obrigatórios.
Eu fiquei ali na beira da calçada ainda um
tempo, olhando as duas personas desaparecendo
entre os prédios e, de longe, ainda podia ver os seus braços se erguerem ao acenar
para as janelas dos andares mais baixos ou mandando os costumeiros beijinhos
para os garis que, rapidamente, ante a sua passagem, botavam as vassouras
debaixo do braço pra deixar as mãos livres a aplaudir.
As duas amigas iam longe quando eu me dei conta
de que o sinal havia fechado de novo e que, definitivamente, a felicidade é algo
surpreendente que, às vezes, passa por nós como uma turba alegre, que tem a
capacidade de paralisar o cotidiano e a gente nem nota. Seja na rua, no trajeto
do nosso ônibus ou no sinal fechado.
Desde aquele dia eu cultivo o singelo hábito de
prestar atenção nas pessoas que estão para atravessar a rua junto comigo. Seja
a cidade que for, eu reparo. Porque eu não perderia uma outra Branca de Neve
daquela por nada nesse mundo.