segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O Sinal Fechado


No Rio de Janeiro, durante a temporada de verão, os sábados são dias especiais por vários motivos. O caos no trânsito dá uma trégua, o Centro da cidade fica vazio e civilizado para sorte dos roteiros culturais e as praias, bem, as praias não mudam em nada, pois nessa época elas passam todos os sete dias da semana lotadas.
O fenômeno do verão é que todos, enfim, viramos turistas diante da grande população que se acarioca nesses meses, vinda de várias partes do planeta. É uma verdadeira festa ao ar livre, com muito sol e calor, com os eventos e as várias apresentações culturais por toda a cidade.
Este sábado específico ficou marcado pra mim porque quando parei naquela faixa de pedestres, esperando o sinal fechar, pude perceber a diferença de ânimo que havia entre os que estavam no mesmo lado da calçada que eu e os que estavam no sentido contrário, indo para a praia.
O mundo de gente que estava na outra calçada não deixava a menor dúvida de que todos estavam indo pro mar, enquanto eu e os postados do lado de cá íamos penar em funções chatas ou resolver problemas idem, justamente para aproveitar o sábado.
No meu caso eu ia levar o Olavo, um Chevette 1988, valente, e ainda com placas de Salvador, ao mecânico, por conta de um reparo na embreagem. Muito contrariado, mas também resignado, eu estava diante daquela faixa, cujo sinal insistia em não fechar para dar passagem os pedestres. Uma eternidade aquilo.
Parecia, inclusive, que os dois grupos, ávidos pela travessia, se miravam, se mediam e se analisavam como em um duelo, já que estavam perfilados frente a frente. Era o de cá, com inveja da praia que viria, e o de lá, com pena dos que se iam pra longe do Atlântico.
Em certo momento eu passei a notar que muita gente, do outro lado da rua, começava a fotografar o lado em que eu estava. As máquinas estalavam e as pessoas apontavam, sorriam e procuravam uma melhor visão e um melhor ângulo pras suas fotos e eu não sabia o por quê daquilo. Imaginava que tinha alguém famoso ali ao lado, ou coisa assim, mas eu não conseguia saber ao certo, pois tinha muita gente junto e próxima. E as pessoas cada vez mais apontando, uns aplaudindo, até que o sinal fechou para o trânsito.
Neste momento, como se estivesse tudo ensaiado com o público, surge uma enorme Branca de Neve, toda maquiada, com as roupas coloridas fielmente ao figurino da personagem, os cabelos negros lisos escorridos, uns cílios enormemente fixados e uma boca de batom que emoldurava um sorriso superlativo de miss saída dos contos de fadas.
Era uma Drag Queen ma-ra-vi-lho-sa, adjetivo redundante, mas obrigatório, toda montada em purpurinas e adereços que dava adeusinho aos súditos e posava para as fotos bem no meio da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, tornada passarela pelo povo em delírio.
A princípio inusitada, a cena na verdade era comum naquele pedaço de Copacabana, pois eu mesmo como morador das imediações, vez por outra dava de cara, ora com uma Marilyn Monroe, ora com uma Scarlet O´hara, que educadamente passavam esvoaçantes cumprimentando a todos, seja qual fosse a hora do dia ou da madrugada.
Eu só sei que o sinal abriu aos carros, depois tornou a fechar, e a Branca de Neve de dois metros de altura continuava ali no meio da avenida, rodeada, sendo fotografada, aplaudida e venerada. Os motoristas daquele sábado pareciam totalmente vencidos pelos ensejos artísticos e festeiros do verão e sequer buzinavam, em respeito à performance da mulher branca como a neve. Alguns passageiros até desceram dos ônibus pra ver de perto aquela celebração e a multidão só aumentava com o passar do tempo.
A Drag Queem sorria e sorria, distribuía beijocas com a ponta dos dedos adornados por unhas enormes e coloridas e abraçava as pessoas pra compor o enquadramento para as fotos solicitadas. Num dado momento ela anunciou, com toda a calma, que teria que ir e eu me surpreendi com a sua voz macia e doce, que não combinava em nada com o corpanzil que sustentava toda aquela personificação. Então os aplausos aumentaram de intensidade significativamente, pois seriam agora aplausos de despedida, do happy end, respondidos pela bela com acenos efusivos de adeus e agradecimento.
Quando finalmente as duas multidões voltaram a se separar, cada uma buscando o seu destino original, no rumo da praia e no rumo oposto, uma voz fina e afetada irrompeu a rua aos gritos de “me espera Branca de Neve”.
De imediato todos nos viramos para descobrir de onde vinha aquela voz e, quando conseguimos, nos deparamos com uma e-nor-me Mulher Maravilha, tão alta e elegante quanto a ama dos anões, não menos colorida e espalhafatosa, que foi recebida devidamente com a mesma festa e com gritinhos de “maravilha e maravilhosa”, igualmente redundantes e obrigatórios.
Eu fiquei ali na beira da calçada ainda um tempo, olhando as duas personas desaparecendo entre os prédios e, de longe, ainda podia ver os seus braços se erguerem ao acenar para as janelas dos andares mais baixos ou mandando os costumeiros beijinhos para os garis que, rapidamente, ante a sua passagem, botavam as vassouras debaixo do braço pra deixar as mãos livres a aplaudir.
As duas amigas iam longe quando eu me dei conta de que o sinal havia fechado de novo e que, definitivamente, a felicidade é algo surpreendente que, às vezes, passa por nós como uma turba alegre, que tem a capacidade de paralisar o cotidiano e a gente nem nota. Seja na rua, no trajeto do nosso ônibus ou no sinal fechado.
Desde aquele dia eu cultivo o singelo hábito de prestar atenção nas pessoas que estão para atravessar a rua junto comigo. Seja a cidade que for, eu reparo. Porque eu não perderia uma outra Branca de Neve daquela por nada nesse mundo.


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O Boné


Nos fundos da casa do meu avô, onde eu morava, ficava a casa da minha tia Iracema. Já contei uma história dela aqui no blog e sinto muitas saudades daqueles tempos lá naquela casa. Antes, a propriedade só tinha a casa da frente e um grande quintal. O terreno era tão grande que foi bastante pra minha tia construir a casa dela nos fundos e ainda restar um bom espaço de quintal que sobrou entre as duas construções.
Martinho é o filho do meio dela, um guri que assim que teve idade suficiente pra fazer estragos, iniciou logo a carreira e sua fama se espalhou rápida por toda a família. Era um menino endiabrado, como a gente dizia, dotado de grande astúcia e talento para praticar as travessuras e traquinagens mais criativas possíveis e imagináveis.
Muitas vezes a gente ouvia o pau quebrando lá nos fundos, na casa da Tia Iracema, e logo em seguida vinha o Martinho correndo pra nossa casa, pedir arrego pra minha mãe. Era uma coisa bem comum e muito divertida, pois, passado o estresse da ocorrência em si, a gente acabava dando boas risadas de todo o conjunto do acontecido. Quando a família se reunia então, em geral nas festas, num certo momento o assunto era a infância do primo Martinho e cada um tinha a sua história favorita, contada com todos os detalhes e requintes narrativos.
A minha preferida começa com a minha tia Iracema chegando em casa no final da tarde. Quase noitinha, ela entra e encontra o filho, Martinho, estranhamente sentado, quietinho assistindo televisão na sala. Tudo escuro, nenhuma luz acesa e o menino vendo desenho. Um anjinho.
Desconfiada a mãe começa a perguntar se está tudo bem, se ele está sentindo alguma coisa, pergunta por que ele está no escuro, se está machucado, se tem algum problema e, ao passar pelo interruptor, acende as luzes da sala. Notando que ele está com um boné todo enfiado na cabeça até os olhos, ela pergunta:
– E esse boné na cabeça? Pra quê esse boné dentro de casa?
– Nada não, mãe.
– Anda, tira esse boné, menino – disse ela, mais desconfiada ainda.
– Precisa não, mãe. Eu prefiro ficar com ele assim mesmo.
– Tira o boné. Já falei. E tira agora. O que tá escondendo? O que tem aí debaixo? – e foi arrancando, apesar do filho tentar impedir.
Sem conseguir acreditar no que via, minha tia soltou um grito de pavor. Começou a sacudir o guri pelos braços dizendo que ia lhe dar uma surra, que ele só fazia coisa errada, bradou também alguns impropérios, normais, que davam conta do perigo crescente que se instalava na casa e, nessa hora, o Martinho sabia que tinha de escapulir pra casa da tia, senão o chinelo ia roncar direto na bunda dele.
E foi isso que ele fez. Passou pela mãe, escorregando pela poltrona, e saiu como um raio porta afora, cruzando o quintal, já chamando pela tia Jurema, com a minha tia vindo logo atrás, em seu encalço, já com o chinelo na mão.
Como a gente na casa da frente já estava ligado, ouvindo a pendenga desde o início, minha mãe já estava na porta do quintal esperando pelo sobrinho, o fugitivo. Ela o acolheu nos braços, prontamente o protegendo da minha tia que queria alcançá-lo de qualquer jeito. Então, como sempre acontecia, ela começou a tentar apaziguar a situação.
– Calma, Iracema, bater não adianta nada. Bater nunca educou ninguém. Calma. Me conta o que aconteceu?
– Esse garoto vai me deixar louca. Eu vou acabar num hospício por causa dele. Pois ele arrancou toda a sobrancelha. As duas. Tirou tudo com a minha pinça que eu achei na pia do banheiro. Nem sei como esse desgranido aguentou a dor. Isso dói tanto que a gente até chora. Esse menino tá parecendo um bicho. Olha só. Ficou um monstro, um extraterrestre de tão feio que está. Arrancou tudo. Esse coisa de guri. Tá com a testa desse tamanho.
Minha mãe, ainda segurando o sobrinho, pediu que ela tivesse um pouco mais de calma e que bater não ia adiantar. Que esse negócio de bater era coisa ultrapassada e que os pais tinham de ter diálogo com os filhos, pois só o diálogo trazia resultado. Aí perguntou pro menino se estava doendo a testa, como estava o local da sobrancelha, e pediu pra deixar ela ver como ficou, se tinha inchado, e foi tirando o boné.
Quando minha mãe viu o garoto daquele jeito, sem sobrancelha, com aquela fisionomia mesmo muito estranha, disse um sonoro “ai, meu Deus”. E no instante seguinte seus conceitos pacíficos foram todos vencidos pela imagem que viu.
– Ô seu puto, como é que tu fez isso? Tu está horrível. Tua mãe tá coberta de razão em te pegar de pau. Tu é maluco? – e minha mãe iniciou uma farta distribuição de tapas por todos os lados, cascudos sonoros estalados e quase deu ele de volta pra mãe acabar o serviço que ela tinha começado.
Mas enquanto ela falava, estapeando o sobrinho e dava razão à mãe, todos nós em volta, os primos e irmãos, estávamos caindo na gargalhada pela reação dela de, primeiro, proteger o menino e, depois, ao ver como ele tinha ficado feio, também distribuir as suas broncas e tapas.
No final, até a minha mãe e minha tia estavam rindo junto com a gente.
O Martinho, por sua vez, já não estava entendendo mais nada.
Ele olhou pra gente, que ria cada vez mais e mais alto, pegou o boné do chão, o enfiou na cabeça e foi saindo de fininho, resmungando baixinho:
– Que gente mais doida.