Nos fundos da casa do meu avô, onde eu morava, ficava
a casa da minha tia Iracema. Já contei uma história dela aqui no blog e sinto
muitas saudades daqueles tempos lá naquela casa. Antes, a propriedade só tinha
a casa da frente e um grande quintal. O terreno era tão grande que foi bastante
pra minha tia construir a casa dela nos fundos e ainda restar um bom espaço de
quintal que sobrou entre as duas construções.
Martinho é o filho do meio dela, um guri que
assim que teve idade suficiente pra fazer estragos, iniciou logo a carreira e sua
fama se espalhou rápida por toda a família. Era um menino endiabrado, como a
gente dizia, dotado de grande astúcia e talento para praticar as travessuras e traquinagens
mais criativas possíveis e imagináveis.
Muitas vezes a gente ouvia o pau quebrando lá
nos fundos, na casa da Tia Iracema, e logo em seguida vinha o Martinho correndo
pra nossa casa, pedir arrego pra minha mãe. Era uma coisa bem comum e muito
divertida, pois, passado o estresse da ocorrência em si, a gente acabava dando
boas risadas de todo o conjunto do acontecido. Quando a família se reunia então,
em geral nas festas, num certo momento o assunto era a infância do primo
Martinho e cada um tinha a sua história favorita, contada com todos os detalhes
e requintes narrativos.
A minha preferida começa com a minha tia Iracema
chegando em casa no final da tarde. Quase noitinha, ela entra e encontra o filho,
Martinho, estranhamente sentado, quietinho assistindo televisão na sala. Tudo
escuro, nenhuma luz acesa e o menino vendo desenho. Um anjinho.
Desconfiada a mãe começa a perguntar se está
tudo bem, se ele está sentindo alguma coisa, pergunta por que ele está no
escuro, se está machucado, se tem algum problema e, ao passar pelo interruptor,
acende as luzes da sala. Notando que ele está com um boné todo enfiado na
cabeça até os olhos, ela pergunta:
– E esse boné na cabeça? Pra quê esse boné
dentro de casa?
– Nada não, mãe.
– Anda, tira esse boné, menino – disse ela, mais
desconfiada ainda.
– Precisa não, mãe. Eu prefiro ficar com ele
assim mesmo.
– Tira o boné. Já falei. E tira agora. O que tá
escondendo? O que tem aí debaixo? – e foi arrancando, apesar do filho tentar
impedir.
Sem conseguir acreditar no que via, minha tia
soltou um grito de pavor. Começou a sacudir o guri pelos braços dizendo que ia lhe
dar uma surra, que ele só fazia coisa errada, bradou também alguns impropérios,
normais, que davam conta do perigo crescente que se instalava na casa e, nessa
hora, o Martinho sabia que tinha de escapulir pra casa da tia, senão o chinelo
ia roncar direto na bunda dele.
E foi isso que ele fez. Passou pela mãe,
escorregando pela poltrona, e saiu como um raio porta afora, cruzando o quintal,
já chamando pela tia Jurema, com a minha tia vindo logo atrás, em seu encalço,
já com o chinelo na mão.
Como a gente na casa da frente já estava ligado,
ouvindo a pendenga desde o início, minha mãe já estava na porta do quintal
esperando pelo sobrinho, o fugitivo. Ela o acolheu nos braços, prontamente o
protegendo da minha tia que queria alcançá-lo de qualquer jeito. Então, como
sempre acontecia, ela começou a tentar apaziguar a situação.
– Calma, Iracema, bater não adianta nada. Bater nunca
educou ninguém. Calma. Me conta o que aconteceu?
– Esse garoto vai me deixar louca. Eu vou acabar
num hospício por causa dele. Pois ele arrancou toda a sobrancelha. As duas. Tirou
tudo com a minha pinça que eu achei na pia do banheiro. Nem sei como esse
desgranido aguentou a dor. Isso dói tanto que a gente até chora. Esse menino tá
parecendo um bicho. Olha só. Ficou um monstro, um extraterrestre de tão feio
que está. Arrancou tudo. Esse coisa de guri. Tá com a testa desse tamanho.
Minha mãe, ainda segurando o sobrinho, pediu que
ela tivesse um pouco mais de calma e que bater não ia adiantar. Que esse
negócio de bater era coisa ultrapassada e que os pais tinham de ter diálogo com
os filhos, pois só o diálogo trazia resultado. Aí perguntou pro menino se estava
doendo a testa, como estava o local da sobrancelha, e pediu pra deixar ela ver
como ficou, se tinha inchado, e foi tirando o boné.
Quando minha mãe viu o garoto daquele jeito, sem
sobrancelha, com aquela fisionomia mesmo muito estranha, disse um sonoro “ai,
meu Deus”. E no instante seguinte seus conceitos pacíficos foram todos vencidos
pela imagem que viu.
– Ô seu puto, como é que tu fez isso? Tu está
horrível. Tua mãe tá coberta de razão em te pegar de pau. Tu é maluco? – e minha
mãe iniciou uma farta distribuição de tapas por todos os lados, cascudos
sonoros estalados e quase deu ele de volta pra mãe acabar o serviço que ela
tinha começado.
Mas enquanto ela falava, estapeando o sobrinho e
dava razão à mãe, todos nós em volta, os primos e irmãos, estávamos caindo na
gargalhada pela reação dela de, primeiro, proteger o menino e, depois, ao ver
como ele tinha ficado feio, também distribuir as suas broncas e tapas.
No final, até a minha mãe e minha tia estavam
rindo junto com a gente.
O Martinho, por sua vez, já não estava
entendendo mais nada.
Ele olhou pra gente, que ria cada vez mais e
mais alto, pegou o boné do chão, o enfiou na cabeça e foi saindo de fininho, resmungando
baixinho:
– Que gente mais doida.