Um e-mail da minha querida amiga Malu falava
sobre um livro que lhe tinha caído nas mãos e que continha uma narrativa de uma
brasileira e sua vivência como exilada no Chile.
Malu foi minha chefe, em São Paulo, quando
trabalhamos juntos em uma assessoria de imprensa ligada à área de cinema. Ela
cumpriu um período de exílio no Chile e também no Peru, tendo vivenciado
momentos importantes da repressão em plena ditadura militar brasileira. Eu tenho
uma grande admiração pela Malu desde o meu início de carreira e, com ela,
aprendi muito, inclusive a me interessar por política e pela militância
popular.
Mais tarde, por telefone, ela me deu mais
detalhes do tal livro, de nome No Corpo e
na Alma, editado em 2002, e que era um livro de memórias em que a autora
falava sobre ela, mencionando o seu nome, o nome que ela usava no exílio.
– Eu estava lendo e ela contava uma passagem que
eu vivi, que eu vivi junto com ela, citando o meu nome no exílio. Então eu preciso
saber quem ela é, porque o nome que ela usa no livro, Derlei Catarina De Luca,
que deve ser o seu verdadeiro nome, esse eu não conheço. Aliás, ela mora em
Santa Catarina, no interior do estado, por isso pensei em você para me ajudar.
Então a Malu pediu que eu entrasse em contato
com a autora e conseguisse um número, ou e-mail, pra que elas duas pudessem se
falar e esclarecer as histórias do livro, assim eu imaginei. Intuí que ela já
tinha tentado algo, porém sem sucesso.
No dia seguinte eu já tinha o número da Derlei,
já tinha até ligado e deixado recado pedindo que ela me ligasse de volta. Nada.
Passou dois dias e eu deixei o mesmo recado na secretária eletrônica, com o
número de telefone, pedindo o seu retorno. A Malu, de São Paulo, inquieta, me perguntava
por que ela não tinha retornado.
Passados mais alguns dias, o vigilante noturno do
prédio onde eu trabalhava, me esperou na porta pra me dar um recado da dona
Derlei. Disse ele que o telefone tocou depois das 9 da noite e uma mulher fez
um monte de perguntas sobre mim, querendo saber quem eu era etc. Aí ele
explicou que eu trabalhava ali, mas que naquele horário não tinha ninguém. O
recado, então, era para eu ligar à noite.
Naturalmente, o desencontro rendeu algumas
risadas entre nós três porque, até a Malu, quando soube da desconfiança da
Derlei disse que ela sempre foi pela segurança, desconfiada, e que, de fato,
aquilo parecia até prática de araponga dos tempos da ditadura. Eu ligava de dia
e deixava recado na secretária e ela retornava a ligação à noite, quando eu
também não estava. Tudo muito estranho.
Quando finalmente esclarecemos tudo e nos
falamos a dúvida da Derlei era quanto a quem seria afinal essa minha amiga de
São Paulo, cujo nome verdadeiro ela também desconhecia. Na verdade, eu estava
tentando aproximar duas pessoas que não tinham certeza de se conhecerem e que
não sabiam sequer os nomes certos uma da outra. Da minha parte aquela “ajuda”
estava é muito divertida e eu, cheio de esperança de dar tudo certo.
Malu finalmente encontrou Derlei. As duas me
contaram que o reencontro foi algo muito celebrado e abraçado por ambas e elas tornaram-se
grandes amigas, agora dividindo as histórias de família, do exílio e de
militância com todo o carinho que as duas sentiam pela trajetória vivida em comum.
Passaram a se visitar várias vezes, em São Paulo, em Santa Catarina, e desde
então estavam sempre em contato. Quando elas se encontravam em Floripa eu
ficava olhando as duas, perdido, imaginando o passado, a barra, o tempo daquela
amizade, as duas no Chile, enfim.
Então aconteceu de o livro da Derlei ser lançado
aqui Florianópolis. Claro que eu estava lá e no evento teve uma fala dela sobre
o seu trabalho pelos direitos humanos, a sua participação no Coletivo
Catarinense Memória, Verdade e Justiça e no projeto Acervo da Ditadura. Aquela
mulher, a quem eu já admirava pelo seu passado, passei a respeitar também pelo
seu futuro; sempre altiva e incansável na luta pela democracia e igualdade de
direitos para todos.
Ao final da sua fala eu entrei na fila de
autógrafos com o meu livro, lido só até a metade. Ela me olhou, me deu aquele
seu sorriso que abraça a gente e escreveu: Anderson, você já faz parte desta
história. Depois tornou a fechar o livro e me perguntou:
– Veja se assim está boa a sua dedicatória? –
Como se eu pudesse responder àquele carinho apenas com palavras.
Naquela noite, na volta pra casa, eu ia no
ônibus rememorando a palestra dela. Mas era impossível não me emocionar. Cada
vez que eu abria a primeira página do livro e olhava a dedicatória de novo as
lágrimas me venciam facilmente e rolavam rosto abaixo.
Minha saudosa amiga Derlei, você é que faz parte
da minha história.
Que bom que deu tempo de a gente se conhecer.
Foi pouco tempo, eu sei. Mas muitos nem tiveram isso.
Fique em Paz.
Derlei, presente, sempre!