segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Derlei, Presente, Sempre


Um e-mail da minha querida amiga Malu falava sobre um livro que lhe tinha caído nas mãos e que continha uma narrativa de uma brasileira e sua vivência como exilada no Chile.
Malu foi minha chefe, em São Paulo, quando trabalhamos juntos em uma assessoria de imprensa ligada à área de cinema. Ela cumpriu um período de exílio no Chile e também no Peru, tendo vivenciado momentos importantes da repressão em plena ditadura militar brasileira. Eu tenho uma grande admiração pela Malu desde o meu início de carreira e, com ela, aprendi muito, inclusive a me interessar por política e pela militância popular.
Mais tarde, por telefone, ela me deu mais detalhes do tal livro, de nome No Corpo e na Alma, editado em 2002, e que era um livro de memórias em que a autora falava sobre ela, mencionando o seu nome, o nome que ela usava no exílio.
– Eu estava lendo e ela contava uma passagem que eu vivi, que eu vivi junto com ela, citando o meu nome no exílio. Então eu preciso saber quem ela é, porque o nome que ela usa no livro, Derlei Catarina De Luca, que deve ser o seu verdadeiro nome, esse eu não conheço. Aliás, ela mora em Santa Catarina, no interior do estado, por isso pensei em você para me ajudar.
Então a Malu pediu que eu entrasse em contato com a autora e conseguisse um número, ou e-mail, pra que elas duas pudessem se falar e esclarecer as histórias do livro, assim eu imaginei. Intuí que ela já tinha tentado algo, porém sem sucesso.
No dia seguinte eu já tinha o número da Derlei, já tinha até ligado e deixado recado pedindo que ela me ligasse de volta. Nada. Passou dois dias e eu deixei o mesmo recado na secretária eletrônica, com o número de telefone, pedindo o seu retorno. A Malu, de São Paulo, inquieta, me perguntava por que ela não tinha retornado.
Passados mais alguns dias, o vigilante noturno do prédio onde eu trabalhava, me esperou na porta pra me dar um recado da dona Derlei. Disse ele que o telefone tocou depois das 9 da noite e uma mulher fez um monte de perguntas sobre mim, querendo saber quem eu era etc. Aí ele explicou que eu trabalhava ali, mas que naquele horário não tinha ninguém. O recado, então, era para eu ligar à noite.
Naturalmente, o desencontro rendeu algumas risadas entre nós três porque, até a Malu, quando soube da desconfiança da Derlei disse que ela sempre foi pela segurança, desconfiada, e que, de fato, aquilo parecia até prática de araponga dos tempos da ditadura. Eu ligava de dia e deixava recado na secretária e ela retornava a ligação à noite, quando eu também não estava. Tudo muito estranho.
Quando finalmente esclarecemos tudo e nos falamos a dúvida da Derlei era quanto a quem seria afinal essa minha amiga de São Paulo, cujo nome verdadeiro ela também desconhecia. Na verdade, eu estava tentando aproximar duas pessoas que não tinham certeza de se conhecerem e que não sabiam sequer os nomes certos uma da outra. Da minha parte aquela “ajuda” estava é muito divertida e eu, cheio de esperança de dar tudo certo.
Malu finalmente encontrou Derlei. As duas me contaram que o reencontro foi algo muito celebrado e abraçado por ambas e elas tornaram-se grandes amigas, agora dividindo as histórias de família, do exílio e de militância com todo o carinho que as duas sentiam pela trajetória vivida em comum. Passaram a se visitar várias vezes, em São Paulo, em Santa Catarina, e desde então estavam sempre em contato. Quando elas se encontravam em Floripa eu ficava olhando as duas, perdido, imaginando o passado, a barra, o tempo daquela amizade, as duas no Chile, enfim.
Então aconteceu de o livro da Derlei ser lançado aqui Florianópolis. Claro que eu estava lá e no evento teve uma fala dela sobre o seu trabalho pelos direitos humanos, a sua participação no Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça e no projeto Acervo da Ditadura. Aquela mulher, a quem eu já admirava pelo seu passado, passei a respeitar também pelo seu futuro; sempre altiva e incansável na luta pela democracia e igualdade de direitos para todos.
Ao final da sua fala eu entrei na fila de autógrafos com o meu livro, lido só até a metade. Ela me olhou, me deu aquele seu sorriso que abraça a gente e escreveu: Anderson, você já faz parte desta história. Depois tornou a fechar o livro e me perguntou:
– Veja se assim está boa a sua dedicatória? – Como se eu pudesse responder àquele carinho apenas com palavras.
Naquela noite, na volta pra casa, eu ia no ônibus rememorando a palestra dela. Mas era impossível não me emocionar. Cada vez que eu abria a primeira página do livro e olhava a dedicatória de novo as lágrimas me venciam facilmente e rolavam rosto abaixo.
Minha saudosa amiga Derlei, você é que faz parte da minha história.
Que bom que deu tempo de a gente se conhecer.
Foi pouco tempo, eu sei. Mas muitos nem tiveram isso.

Fique em Paz.
Derlei, presente, sempre!


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Os Dez Mandamentos


Em um trajeto normal de ônibus, no Rio de Janeiro, que dure cerca de 30 minutos, os passageiros são visitados por, pelo menos, cinco vendedores. Em média. Pode ser mais e pode ser menos, a depender dos bairros por onde se trace o itinerário daquela linha.
E é bom que se diga, são vendedores de todos os tipos. Tem os que falam com a voz impostada, tem os que declamam seus versos e rimas, tem os que assustam os passageiros anunciando suas imperdíveis e inacreditáveis ofertas, e tem os que se desculpam por atrapalhar o “silêncio da viagem”, mas que nem por isso se dão conta do incômodo causado. Mas tem muitos outros: os bêbados, os mudos, os cegos, os mancos, os drogados em recuperação, os religiosos em emancipação e os loucos em pura fabulação.
Quanto aos produtos, bem, esse é um capítulo à parte e não diminua os limites dos que falam que já viram de tudo à venda nos ônibus na cidade maravilhosa porque, quando se diz tudo, isso quer dizer tudo mesmo e eu passaria vários parágrafos aqui a elencar esse “tudo” infinito, seus produtos e subprodutos inumeráveis, vindos de todas as partes desse mundo-de-meu-deus.
Então o sujeito entrou no ônibus em que eu estava, no Centro do Rio, perto da Igreja da Candelária. Levava um estojo grande que parecia abrigar enormes lâminas de algo impresso, como uma tela qualquer ou aqueles desenhos feitos em prancheta de desenho. Curiosos, os passageiros atenderam logo aos apelos de atenção e o homem explicou que estava vendendo telas com motivos bíblicos para serem emolduradas. E passou a citar as cenas do livro sagrado que ele tinha pra vender, claro, com os preços de cada uma. Naturalmente nesses apelos constavam as palavras-chave para auxiliar a venda, como obra de arte, pintores famosos e, claro, pechincha e oportunidade rara a preço de banana. Tudo junto.
Todo habilidoso pra conseguir ficar de pé e, ao mesmo tempo, mostrar as telas, tudo isso com o ônibus em movimento, o homem ressaltava os detalhes das obras e apostava que na sala da casa dos passageiros qualquer um daqueles quadros ia fazer estrondoso sucesso com os familiares, a esposa e o esposo, a mãe e o pai etc.
Foi então que um velhinho mostrou interesse e perguntou, em alto e bom som, se ele tinha a tela com a imagem dos Dez Mandamentos, pois que, pra ele, era a cena mais simbólica da bíblia. O vendedor nem precisou verificar na sua coleção, pois a conhecia de cor e salteado, pra responder que essa cena ele não tinha e continuou mostrando as demais pra que o velhinho escolhesse outra, entre as disponíveis.
Mas o senhor estava decidido. Decidido e desiludido. Pois ele só iria comprar uma tela se fosse a dos Dez Mandamentos. Não tinha conversa.
– Essa é a mais importante cena da bíblia – dizia ele como que discursando – e a humanidade não sabe o quanto é importante seguir as leis de Deus.
O coitado do vendedor então, abnegado e dedicado em sua arte de vender, argumentava:
– Nada disso, discordo do senhor. A cena mais importante da bíblia é essa aqui que eu tenho, a da crucificação. Foi pela cruz que Jesus venceu a morte e cada cristão deveria ter na sua casa pelo menos esta cena e a Santa Ceia, esta outra aqui, que simboliza a família reunida em comunhão pelo pão de cada dia.
Os discursos dos dois, cada um com seu rosário de argumentos, foram longe. Eu confesso que, num certo momento, dei uma desligada da conversa, que passava por frases do tipo mostra essa tela aqui, olha essa outra aqui, veja a beleza desta, e eu só quero se for o raio dos Dez Mandamentos, que, quando voltei a prestar atenção no diálogo as coisas já tinham saído um pouco do âmbito da venda propriamente.
– Esse Papa aí, o que saiu, o alemão lá, é um pedófilo de marca maior. Ele está vivendo à custa da igreja. Mas é um safado que não vale nada. Isso é um absurdo – falava o potencial comprador.
E o outro respondia:
– Não é bem assim não. As pessoas é que são más. O outro papa lá, que levou um tiro na barriga. O homem era um santo e o cara que atirou era um maluco. Aí como é que fica? Ele também tá lá preso e tem comida de graça, televisão na cela e tudo o mais.
– Eu não gosto de nada da Igreja. Nem padre, nem bispo. Uma cambada de safado. Só gosto mesmo é do Moisés. Aquele, sim. Recebeu as leis de Deus, depois ainda foi ele que abriu o mar pra que os judeus passassem e depois fechou e matou todo o exército inimigo. Um herói cristão.
Quando o vendedor ia tornar a responder, foi interrompido de novo pelo velhinho:
– E é por isso que eu não vou comprar tela nenhuma. Se você não tem essa que eu quero eu não vou comprar outra coisa. A mais importante, que é a do Moisés, você não tem. Essa que é a principal. Assim não dá. Aí mostra um monte de telas e não tem a dos Dez Mandamentos. Não dá!
O povo já estava rindo, com pena do vendedor e atento aos argumentos de ambos os lados. Quieto no meu canto, eu só pensava em como devia ser difícil ser vendedor e ter que ouvir aquelas coisas chatas e repetitivas dos clientes igualmente chatos e repetitivos.
Foi então que o rapaz deu a venda, ou melhor, a não venda por encerrada. Guardou os seus quadros, as suas telas e pediu ao motorista que parasse no próximo ponto pra ele descer. Abatido e vencido em sua tentativa de convencimento, parecia que só o que ele queria era sair dali o mais rápido possível. Quando o ônibus chegou no ponto todos nós já estávamos de olho na cena, atentos.
Pois ele desceu até a calçada e, no mesmo instante, já se virou pro ônibus e gritou bem alto:
– Dez Mandamentos é o ca--lho!
E quando o ônibus começou a andar os passageiros ainda puderam ver o rapaz em toda a sua fúria, com as duas mãos entre as pernas, sacudindo, digamos, as partes e, em seguida, mostrando o dedo médio em riste pra todo o ônibus. Ele ria um riso sarcástico, como um louco, repetia a mesma frase sem parar e todos nós ali paralisados, olhando pra trás do ônibus, enquanto ele sumia no meio dos outros carros.