Em um trajeto normal de ônibus, no Rio de
Janeiro, que dure cerca de 30 minutos, os passageiros são visitados por, pelo
menos, cinco vendedores. Em média. Pode ser mais e pode ser menos, a depender
dos bairros por onde se trace o itinerário daquela linha.
E é bom que se diga, são vendedores de todos os
tipos. Tem os que falam com a voz impostada, tem os que declamam seus versos e rimas,
tem os que assustam os passageiros anunciando suas imperdíveis e inacreditáveis
ofertas, e tem os que se desculpam por atrapalhar o “silêncio da viagem”, mas
que nem por isso se dão conta do incômodo causado. Mas tem muitos outros: os
bêbados, os mudos, os cegos, os mancos, os drogados em recuperação, os
religiosos em emancipação e os loucos em pura fabulação.
Quanto aos produtos, bem, esse é um capítulo à
parte e não diminua os limites dos que falam que já viram de tudo à venda nos
ônibus na cidade maravilhosa porque, quando se diz tudo, isso quer dizer tudo
mesmo e eu passaria vários parágrafos aqui a elencar esse “tudo” infinito, seus
produtos e subprodutos inumeráveis, vindos de todas as partes desse
mundo-de-meu-deus.
Então o sujeito entrou no ônibus em que eu
estava, no Centro do Rio, perto da Igreja da Candelária. Levava um estojo
grande que parecia abrigar enormes lâminas de algo impresso, como uma tela
qualquer ou aqueles desenhos feitos em prancheta de desenho. Curiosos, os
passageiros atenderam logo aos apelos de atenção e o homem explicou que estava
vendendo telas com motivos bíblicos para serem emolduradas. E passou a citar as
cenas do livro sagrado que ele tinha pra vender, claro, com os preços de cada
uma. Naturalmente nesses apelos constavam as palavras-chave para auxiliar a
venda, como obra de arte, pintores famosos e, claro, pechincha e oportunidade
rara a preço de banana. Tudo junto.
Todo habilidoso pra conseguir ficar de pé e, ao
mesmo tempo, mostrar as telas, tudo isso com o ônibus em movimento, o homem
ressaltava os detalhes das obras e apostava que na sala da casa dos passageiros
qualquer um daqueles quadros ia fazer estrondoso sucesso com os familiares, a
esposa e o esposo, a mãe e o pai etc.
Foi então que um velhinho mostrou interesse e
perguntou, em alto e bom som, se ele tinha a tela com a imagem dos Dez
Mandamentos, pois que, pra ele, era a cena mais simbólica da bíblia. O vendedor
nem precisou verificar na sua coleção, pois a conhecia de cor e salteado, pra
responder que essa cena ele não tinha e continuou mostrando as demais pra que o
velhinho escolhesse outra, entre as disponíveis.
Mas o senhor estava decidido. Decidido e
desiludido. Pois ele só iria comprar uma tela se fosse a dos Dez Mandamentos. Não tinha conversa.
– Essa é a mais importante cena da bíblia –
dizia ele como que discursando – e a humanidade não sabe o quanto é importante
seguir as leis de Deus.
O coitado do vendedor então, abnegado e dedicado
em sua arte de vender, argumentava:
– Nada disso, discordo do senhor. A cena mais
importante da bíblia é essa aqui que eu tenho, a da crucificação. Foi pela cruz
que Jesus venceu a morte e cada cristão deveria ter na sua casa pelo menos esta
cena e a Santa Ceia, esta outra aqui, que simboliza a família reunida em
comunhão pelo pão de cada dia.
Os discursos dos dois, cada um com seu rosário
de argumentos, foram longe. Eu confesso que, num certo momento, dei uma
desligada da conversa, que passava por frases do tipo mostra essa tela aqui,
olha essa outra aqui, veja a beleza desta, e eu só quero se for o raio dos Dez
Mandamentos, que, quando voltei a prestar atenção no diálogo as coisas já
tinham saído um pouco do âmbito da venda propriamente.
– Esse Papa aí, o que saiu, o alemão lá, é um
pedófilo de marca maior. Ele está vivendo à custa da igreja. Mas é um safado que
não vale nada. Isso é um absurdo – falava o potencial comprador.
E o outro respondia:
– Não é bem assim não. As pessoas é que são más.
O outro papa lá, que levou um tiro na barriga. O homem era um santo e o cara
que atirou era um maluco. Aí como é que fica? Ele também tá lá preso e tem
comida de graça, televisão na cela e tudo o mais.
– Eu não gosto de nada da Igreja. Nem padre, nem
bispo. Uma cambada de safado. Só gosto mesmo é do Moisés. Aquele, sim. Recebeu
as leis de Deus, depois ainda foi ele que abriu o mar pra que os judeus
passassem e depois fechou e matou todo o exército inimigo. Um herói cristão.
Quando o vendedor ia tornar a responder, foi
interrompido de novo pelo velhinho:
– E é por isso que eu não vou comprar tela
nenhuma. Se você não tem essa que eu quero eu não vou comprar outra coisa. A mais
importante, que é a do Moisés, você não tem. Essa que é a principal. Assim não
dá. Aí mostra um monte de telas e não tem a dos Dez Mandamentos. Não dá!
O povo já estava rindo, com pena do vendedor e
atento aos argumentos de ambos os lados. Quieto no meu canto, eu só pensava em
como devia ser difícil ser vendedor e ter que ouvir aquelas coisas chatas e
repetitivas dos clientes igualmente chatos e repetitivos.
Foi então que o rapaz deu a venda, ou melhor, a
não venda por encerrada. Guardou os seus quadros, as suas telas e pediu ao
motorista que parasse no próximo ponto pra ele descer. Abatido e vencido em sua
tentativa de convencimento, parecia que só o que ele queria era sair dali o
mais rápido possível. Quando o ônibus chegou no ponto todos nós já estávamos de
olho na cena, atentos.
Pois ele desceu até a calçada e, no mesmo
instante, já se virou pro ônibus e gritou bem alto:
– Dez Mandamentos é o ca--lho!
E quando o ônibus começou a andar os passageiros
ainda puderam ver o rapaz em toda a sua fúria, com as duas mãos entre as
pernas, sacudindo, digamos, as partes e, em seguida, mostrando o dedo médio em
riste pra todo o ônibus. Ele ria um riso sarcástico, como um louco, repetia a
mesma frase sem parar e todos nós ali paralisados, olhando pra trás do ônibus,
enquanto ele sumia no meio dos outros carros.