terça-feira, 14 de novembro de 2017

Os Dez Mandamentos


Em um trajeto normal de ônibus, no Rio de Janeiro, que dure cerca de 30 minutos, os passageiros são visitados por, pelo menos, cinco vendedores. Em média. Pode ser mais e pode ser menos, a depender dos bairros por onde se trace o itinerário daquela linha.
E é bom que se diga, são vendedores de todos os tipos. Tem os que falam com a voz impostada, tem os que declamam seus versos e rimas, tem os que assustam os passageiros anunciando suas imperdíveis e inacreditáveis ofertas, e tem os que se desculpam por atrapalhar o “silêncio da viagem”, mas que nem por isso se dão conta do incômodo causado. Mas tem muitos outros: os bêbados, os mudos, os cegos, os mancos, os drogados em recuperação, os religiosos em emancipação e os loucos em pura fabulação.
Quanto aos produtos, bem, esse é um capítulo à parte e não diminua os limites dos que falam que já viram de tudo à venda nos ônibus na cidade maravilhosa porque, quando se diz tudo, isso quer dizer tudo mesmo e eu passaria vários parágrafos aqui a elencar esse “tudo” infinito, seus produtos e subprodutos inumeráveis, vindos de todas as partes desse mundo-de-meu-deus.
Então o sujeito entrou no ônibus em que eu estava, no Centro do Rio, perto da Igreja da Candelária. Levava um estojo grande que parecia abrigar enormes lâminas de algo impresso, como uma tela qualquer ou aqueles desenhos feitos em prancheta de desenho. Curiosos, os passageiros atenderam logo aos apelos de atenção e o homem explicou que estava vendendo telas com motivos bíblicos para serem emolduradas. E passou a citar as cenas do livro sagrado que ele tinha pra vender, claro, com os preços de cada uma. Naturalmente nesses apelos constavam as palavras-chave para auxiliar a venda, como obra de arte, pintores famosos e, claro, pechincha e oportunidade rara a preço de banana. Tudo junto.
Todo habilidoso pra conseguir ficar de pé e, ao mesmo tempo, mostrar as telas, tudo isso com o ônibus em movimento, o homem ressaltava os detalhes das obras e apostava que na sala da casa dos passageiros qualquer um daqueles quadros ia fazer estrondoso sucesso com os familiares, a esposa e o esposo, a mãe e o pai etc.
Foi então que um velhinho mostrou interesse e perguntou, em alto e bom som, se ele tinha a tela com a imagem dos Dez Mandamentos, pois que, pra ele, era a cena mais simbólica da bíblia. O vendedor nem precisou verificar na sua coleção, pois a conhecia de cor e salteado, pra responder que essa cena ele não tinha e continuou mostrando as demais pra que o velhinho escolhesse outra, entre as disponíveis.
Mas o senhor estava decidido. Decidido e desiludido. Pois ele só iria comprar uma tela se fosse a dos Dez Mandamentos. Não tinha conversa.
– Essa é a mais importante cena da bíblia – dizia ele como que discursando – e a humanidade não sabe o quanto é importante seguir as leis de Deus.
O coitado do vendedor então, abnegado e dedicado em sua arte de vender, argumentava:
– Nada disso, discordo do senhor. A cena mais importante da bíblia é essa aqui que eu tenho, a da crucificação. Foi pela cruz que Jesus venceu a morte e cada cristão deveria ter na sua casa pelo menos esta cena e a Santa Ceia, esta outra aqui, que simboliza a família reunida em comunhão pelo pão de cada dia.
Os discursos dos dois, cada um com seu rosário de argumentos, foram longe. Eu confesso que, num certo momento, dei uma desligada da conversa, que passava por frases do tipo mostra essa tela aqui, olha essa outra aqui, veja a beleza desta, e eu só quero se for o raio dos Dez Mandamentos, que, quando voltei a prestar atenção no diálogo as coisas já tinham saído um pouco do âmbito da venda propriamente.
– Esse Papa aí, o que saiu, o alemão lá, é um pedófilo de marca maior. Ele está vivendo à custa da igreja. Mas é um safado que não vale nada. Isso é um absurdo – falava o potencial comprador.
E o outro respondia:
– Não é bem assim não. As pessoas é que são más. O outro papa lá, que levou um tiro na barriga. O homem era um santo e o cara que atirou era um maluco. Aí como é que fica? Ele também tá lá preso e tem comida de graça, televisão na cela e tudo o mais.
– Eu não gosto de nada da Igreja. Nem padre, nem bispo. Uma cambada de safado. Só gosto mesmo é do Moisés. Aquele, sim. Recebeu as leis de Deus, depois ainda foi ele que abriu o mar pra que os judeus passassem e depois fechou e matou todo o exército inimigo. Um herói cristão.
Quando o vendedor ia tornar a responder, foi interrompido de novo pelo velhinho:
– E é por isso que eu não vou comprar tela nenhuma. Se você não tem essa que eu quero eu não vou comprar outra coisa. A mais importante, que é a do Moisés, você não tem. Essa que é a principal. Assim não dá. Aí mostra um monte de telas e não tem a dos Dez Mandamentos. Não dá!
O povo já estava rindo, com pena do vendedor e atento aos argumentos de ambos os lados. Quieto no meu canto, eu só pensava em como devia ser difícil ser vendedor e ter que ouvir aquelas coisas chatas e repetitivas dos clientes igualmente chatos e repetitivos.
Foi então que o rapaz deu a venda, ou melhor, a não venda por encerrada. Guardou os seus quadros, as suas telas e pediu ao motorista que parasse no próximo ponto pra ele descer. Abatido e vencido em sua tentativa de convencimento, parecia que só o que ele queria era sair dali o mais rápido possível. Quando o ônibus chegou no ponto todos nós já estávamos de olho na cena, atentos.
Pois ele desceu até a calçada e, no mesmo instante, já se virou pro ônibus e gritou bem alto:
– Dez Mandamentos é o ca--lho!
E quando o ônibus começou a andar os passageiros ainda puderam ver o rapaz em toda a sua fúria, com as duas mãos entre as pernas, sacudindo, digamos, as partes e, em seguida, mostrando o dedo médio em riste pra todo o ônibus. Ele ria um riso sarcástico, como um louco, repetia a mesma frase sem parar e todos nós ali paralisados, olhando pra trás do ônibus, enquanto ele sumia no meio dos outros carros.