A primeira vez que eu fui à Ilha de Itaparica já
fui sabendo que ia me apaixonar por aquelas águas e praias lindas, de tanto que
ouvia falar da sua beleza.
Era um feriadão daqueles, típicos da Bahia, que
mesmo caindo numa quarta-feira matam a semana toda e tudo vira festa. Eu e a
família fomos pra casa de uma amiga, Sônia, advogada em Salvador, que nos
convidou a todos, mas que só ia poder encontrar com a gente na sexta à noite,
por razões profissionais.
A casa era uma beleza. Uma casa de praia no
melhor estilo belo e prático que permite que a gente saia do mar, cruze a areia
em direção ao portãozinho do pátio e entre na casa com toda a comodidade,
sabendo que não vai estragar nada, nem molhar o chão ou a mobília. Sem nenhuma
escada ou acessos complicados, era uma casa pra se estar, pra olhar o mar e o
céu e (até por isso) acreditar na existência de Deus.
O único problema era que à noite tinha muito
mosquito. O paraíso que era o dia se transformava em tormento à noite. Não sei
se era a minha falta de costume, mas, mesmo com o ventilador, não havia jeito
de espantar os mosquitos que eram muitos e pareciam organizados em gangue pra
picar a gente. Se o vento vinha de um lado o outro era alvo certo. E assim ia a
noite toda, naquele vira e desvira.
Na manhã do dia seguinte, antes da praia, fomos
dar uma busca na casa procurando por aparelhos contra mosquitos, sejam
elétricos, de fumacinha, de luz, de resistência, sei lá. A gente procurou tudo,
mas só achou algumas velas amarelas que eram de citronela, sendo inviáveis pra usar
dentro de casa.
Mais um dia maravilhoso se passou – sim, porque
na Praia de Nazaré todos os dias são maravilhosos – até que chegou a hora de
dormir. Eu já estava de olho no ventinho agradável que rolava na varanda da
casa e que aquilo poderia ser uma atenuante para o calor e também para os
mosquitos. Então eu nem perdi muito tempo. Quando tudo estava quieto eu peguei
meu colchãozinho e um travesseiro e fui direto pra varanda.
Assim que deitei, senti que o calor estaria
resolvido com a brisa que entrava e que uma das velas de citronela iria cair muito
bem naquela varanda. Ia ser a cereja no bolo e os mosquitos não iam ter a menor
chance, dada a minha astúcia e perspicácia. “Toma essa mosquitada”, dizia eu
comigo mesmo.
Peguei a vela, botei do lado da cama, na altura do
travesseiro, numa distância regulamentar segura, e suspirei já deitado. O
cheirinho da citronela, aquela chama fininha tremeluzindo perto de mim, fazendo
uma sombra dançante na parede lateral da varanda, pra mim eram cantigas de
ninar.
De repente, um alerta! Formigas estavam
invadindo a cama. Eram grandes as danadas, provavelmente vindas do gramado ao
lado, mas pareciam maiores pela sombra que a vela fazia, e vinham em fileira na
minha direção. “Só faltava essa”, esbravejei sentando na cama.
Foi então que, de novo, a minha astúcia e
perspicácia foram determinantes mais uma vez. Fui até a cozinha, peguei uma
jarra de plástico com água e fui entornando com cuidado, fazendo um cercado em
volta da cama, como se fossem muralhas de contenção. As primeiras formigas que
estavam na fila já pararam no limite da água. Fiquei ali cuidando um tempo e vi
que elas tentavam ultrapassar a água, mas não tinham como. A astúcia e
perspicácia delas ainda tinham muito o que evoluir. Tão pensando o quê,
ponham-se nos seus lugares, reles formiguinhas. Eu disse isso com um sorriso
nos lábios e deitei novamente com ar vitorioso, de quem sabe o momento de merecer
os louros.
Peguei no sono que foi uma beleza. No meio da
madrugada, afundado no mais recôndito dos meus sonhos e absorto nas minhas mais
etéreas fabulações de inconsciência, comecei a ouvir vozes. Fui emergindo aos
poucos daquele mundo, intuindo, ainda de olhos fechados, grandes batalhas com
formigas e mosquitos fantásticos quando, de repente, despertei com duas enormes
sombras, de pé, ao lado da minha cama.
– Vixe, minha nossa senhora. O que é isso? É um
despacho de macumba? – disse a sombra.
Era a Sônia, a dona da casa, com o seu marido Sérgio,
que estavam chegando pro fim de semana, conforme tinham combinado. No meio da
madrugada, quebrando o silêncio da casa, em cinco minutos todos estavam ali em
volta de mim e então eu me dei conta, como se fosse uma cortina se abrindo, do
cenário tenebroso que eu havia criado pra poder dormir.
Uma cama na varanda com um corpo em cima, na
maior escuridão, com uma vela amarela acesa do lado e toda circundada de um
líquido no chão que, dada a pouca luz, de certa maneira, parecia até sangue. Ou
aquilo era uma espécie de despacho, algo de outro mundo, ou uma pegadinha assustadora
digna dos filmes de terror trash. Eu
mesmo, quando parei e olhei aquilo tudo, entendi o “vixe, nossa senhora” que a
Sônia quase gritou na chegada.
O fato é que ninguém dormiu mais naquela noite. Fomos
todos pra enorme cozinha da casa, recepcionar o casal que chegava e depois de
me fazerem contar o passo a passo de toda aquela criação, a epopeia de levar a
cama pra varanda, de lutar com os mosquitos e depois com as formigas; depois de
eu explicar e expor toda a minha astúcia e perspicácia a conversa foi indo, eu acabei
emendando os meus causos, um atrás do outro, que não são poucos, até que
amanheceu.
Foi nessa hora, quando a gente achou que era
hora de tirar um pequeno cochilo, sem mosquito, que apareceu no portão, do lado
da praia, o vizinho Roque, amigo do casal. Ele estava indo caminhar na praia e
parou pra ver se alguém queria ir com ele. O Sérgio então trouxe o amigo pra
cozinha, onde todos estavam, e disse pra ele sentar e tomar um café, enquanto
apontava pra mim, me apresentando.
– Esse aí é o Carioca, amigo da gente. Ele fez
um despacho essa noite, aqui na varanda, e nos deu o maior susto. Ele vai te
contar.
Então eu contei tudo de novo.
Com a ajuda deles, inclusive, que caíam na
risada narrando os detalhes do susto.
Eu contei muitas vezes aquela mesma história.
Pra vários amigos deles.
Por muito tempo.