quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

A Cama na Varanda


A primeira vez que eu fui à Ilha de Itaparica já fui sabendo que ia me apaixonar por aquelas águas e praias lindas, de tanto que ouvia falar da sua beleza.
Era um feriadão daqueles, típicos da Bahia, que mesmo caindo numa quarta-feira matam a semana toda e tudo vira festa. Eu e a família fomos pra casa de uma amiga, Sônia, advogada em Salvador, que nos convidou a todos, mas que só ia poder encontrar com a gente na sexta à noite, por razões profissionais.
A casa era uma beleza. Uma casa de praia no melhor estilo belo e prático que permite que a gente saia do mar, cruze a areia em direção ao portãozinho do pátio e entre na casa com toda a comodidade, sabendo que não vai estragar nada, nem molhar o chão ou a mobília. Sem nenhuma escada ou acessos complicados, era uma casa pra se estar, pra olhar o mar e o céu e (até por isso) acreditar na existência de Deus.
O único problema era que à noite tinha muito mosquito. O paraíso que era o dia se transformava em tormento à noite. Não sei se era a minha falta de costume, mas, mesmo com o ventilador, não havia jeito de espantar os mosquitos que eram muitos e pareciam organizados em gangue pra picar a gente. Se o vento vinha de um lado o outro era alvo certo. E assim ia a noite toda, naquele vira e desvira.
Na manhã do dia seguinte, antes da praia, fomos dar uma busca na casa procurando por aparelhos contra mosquitos, sejam elétricos, de fumacinha, de luz, de resistência, sei lá. A gente procurou tudo, mas só achou algumas velas amarelas que eram de citronela, sendo inviáveis pra usar dentro de casa.
Mais um dia maravilhoso se passou – sim, porque na Praia de Nazaré todos os dias são maravilhosos – até que chegou a hora de dormir. Eu já estava de olho no ventinho agradável que rolava na varanda da casa e que aquilo poderia ser uma atenuante para o calor e também para os mosquitos. Então eu nem perdi muito tempo. Quando tudo estava quieto eu peguei meu colchãozinho e um travesseiro e fui direto pra varanda.
Assim que deitei, senti que o calor estaria resolvido com a brisa que entrava e que uma das velas de citronela iria cair muito bem naquela varanda. Ia ser a cereja no bolo e os mosquitos não iam ter a menor chance, dada a minha astúcia e perspicácia. “Toma essa mosquitada”, dizia eu comigo mesmo.
Peguei a vela, botei do lado da cama, na altura do travesseiro, numa distância regulamentar segura, e suspirei já deitado. O cheirinho da citronela, aquela chama fininha tremeluzindo perto de mim, fazendo uma sombra dançante na parede lateral da varanda, pra mim eram cantigas de ninar.
De repente, um alerta! Formigas estavam invadindo a cama. Eram grandes as danadas, provavelmente vindas do gramado ao lado, mas pareciam maiores pela sombra que a vela fazia, e vinham em fileira na minha direção. “Só faltava essa”, esbravejei sentando na cama.
Foi então que, de novo, a minha astúcia e perspicácia foram determinantes mais uma vez. Fui até a cozinha, peguei uma jarra de plástico com água e fui entornando com cuidado, fazendo um cercado em volta da cama, como se fossem muralhas de contenção. As primeiras formigas que estavam na fila já pararam no limite da água. Fiquei ali cuidando um tempo e vi que elas tentavam ultrapassar a água, mas não tinham como. A astúcia e perspicácia delas ainda tinham muito o que evoluir. Tão pensando o quê, ponham-se nos seus lugares, reles formiguinhas. Eu disse isso com um sorriso nos lábios e deitei novamente com ar vitorioso, de quem sabe o momento de merecer os louros.
Peguei no sono que foi uma beleza. No meio da madrugada, afundado no mais recôndito dos meus sonhos e absorto nas minhas mais etéreas fabulações de inconsciência, comecei a ouvir vozes. Fui emergindo aos poucos daquele mundo, intuindo, ainda de olhos fechados, grandes batalhas com formigas e mosquitos fantásticos quando, de repente, despertei com duas enormes sombras, de pé, ao lado da minha cama.
– Vixe, minha nossa senhora. O que é isso? É um despacho de macumba? – disse a sombra.
Era a Sônia, a dona da casa, com o seu marido Sérgio, que estavam chegando pro fim de semana, conforme tinham combinado. No meio da madrugada, quebrando o silêncio da casa, em cinco minutos todos estavam ali em volta de mim e então eu me dei conta, como se fosse uma cortina se abrindo, do cenário tenebroso que eu havia criado pra poder dormir.
Uma cama na varanda com um corpo em cima, na maior escuridão, com uma vela amarela acesa do lado e toda circundada de um líquido no chão que, dada a pouca luz, de certa maneira, parecia até sangue. Ou aquilo era uma espécie de despacho, algo de outro mundo, ou uma pegadinha assustadora digna dos filmes de terror trash. Eu mesmo, quando parei e olhei aquilo tudo, entendi o “vixe, nossa senhora” que a Sônia quase gritou na chegada.
O fato é que ninguém dormiu mais naquela noite. Fomos todos pra enorme cozinha da casa, recepcionar o casal que chegava e depois de me fazerem contar o passo a passo de toda aquela criação, a epopeia de levar a cama pra varanda, de lutar com os mosquitos e depois com as formigas; depois de eu explicar e expor toda a minha astúcia e perspicácia a conversa foi indo, eu acabei emendando os meus causos, um atrás do outro, que não são poucos, até que amanheceu.
Foi nessa hora, quando a gente achou que era hora de tirar um pequeno cochilo, sem mosquito, que apareceu no portão, do lado da praia, o vizinho Roque, amigo do casal. Ele estava indo caminhar na praia e parou pra ver se alguém queria ir com ele. O Sérgio então trouxe o amigo pra cozinha, onde todos estavam, e disse pra ele sentar e tomar um café, enquanto apontava pra mim, me apresentando.
– Esse aí é o Carioca, amigo da gente. Ele fez um despacho essa noite, aqui na varanda, e nos deu o maior susto. Ele vai te contar.
Então eu contei tudo de novo.
Com a ajuda deles, inclusive, que caíam na risada narrando os detalhes do susto.
Eu contei muitas vezes aquela mesma história.
Pra vários amigos deles.
Por muito tempo.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A Troca


Naquele supermercado de Salvador, pra se trocar qualquer produto, só falando com o gerente. Foi essa a sentença que a moça do balcão promulgou assim que eu entrei na loja com o meu disco na mão. Em seguida me informou que ele estava no setor de calçados, trocando uma sandália Havaiana com uma senhora, e logo estaria de volta. Que era pra eu aguardar um tantinho, ali mesmo.
Eu tinha comprado um vinil do Michael Jackson no dia anterior, atraído pela música que ouvi no rádio, chamada Gone Too Soon, e que fazia parte do seu mais recente LP. Neste mesmo disco também tinha a música Black or White, legalzinha e que fez o maior sucesso, mas era só. O disco, em si, era ruim e eu queria trocar, pois que não dava pra ficar com ele só por causa de duas músicas. Uma e meia, vai.
Quando o gerente chegou com a dona que tinha trocado a sandália, se despediu dela na minha frente e a moça do balcão logo me apontou como o próximo da fila. Ele chegou perto de mim, olhou o envelope na minha mão e disse:
– Hum, troca de disco é sempre complicada. As pessoas querem se aproveitar do estabelecimento e já viu, né? Porque o senhor quer trocar esse aqui? Ele tem algum defeito? – disse, já pegando o disco.
– Não, defeito nenhum. É por questão de gosto mesmo – respondi tateando o rumo da conversa.
– O rapaz não gosta do Michael? Ele é o maior cantor pop do mundo. Um fenômeno de vendas. Não vai dizer que não gosta dele?
Imaginando que teria mais chance naquela negociação se fosse fã do cantor, eu fui logo explicando:
– Não é isso. Eu até gosto dele. Mas este disco eu não achei bom como os outros. Senti a falta daquela pegada dançante dele nesse disco, entende? E como eu não ouvi todas as faixas aqui na loja, quando cheguei em casa me decepcionei um pouco.
– Sei como é, sempre tem umas musiquinhas lentas, chatinhas nos discos dele que são pra tentar agradar os enjoados que não gostam justamente dessa pegada pelourinho que ele tem, aquela coisa de fazer todo mundo dançar junto, sabe? Que é o maior barato.
Mal sabia ele que a única música que eu realmente gostava do disco era exatamente a tal lenta e chatinha. Mas se eu dissesse isso, aí mesmo que não ia conseguir trocar disco nenhum.
– Bem, se o disco não tem defeito, você sabe que a gente não tem obrigação de trocar. Você tem a nota fiscal aí?
Eu gelei e comecei a duvidar daquela tentativa de troca.
– Sim, eu sei que o senhor não tem obrigação de trocar – disse, entregando a nota – mas seria muito melhor pro Michael Jackson se esse disco fosse parar na casa de alguém que ficasse plenamente satisfeito com todas as músicas e botasse pra tocar a todo volume, naqueles sábados de faxina, antes de ir pra praia.
– Olha, agora o rapaz falou a coisa mais certa. Minha mulher põe os discos no volume nove justamente quando está fazendo faxina lá em casa. A gente fala com ela, grita mesmo e ela nem ouve. É um barato. Mas tá, vamos logo trocar esse disco e pronto, tudo resolvido.
Eu só imaginei o naipe das músicas da mulher do gerente, naquele tal volume nove, durante a faxina.
No caminho até o fundo da loja ele me confidenciou – sim porque já estávamos quase amigos de infância – que a bronca dele era justamente essa rapaziada que só quer ficar trocando os LPs e gravando em fitas cassetes.
– Aí é chato. É fazer a gente de bobo. Os garotos pagam apenas um disco e ficam trocando, e gravando, e copiando nas fitas. Pô, acho isso sacanagem com o comércio.
Eu concordei com ele, claro, mas senti que aquela conversa tinha algumas controvérsias que eu bem poderia explicar, embora achasse que aquela não era exatamente a ocasião pra isso.
Chegamos ao cercadinho do setor dos discos, grande e cheio de pôsteres. O gerente me deu o vale-troca e, com um simples sinal de mão, avisou ao caixa que a troca estava autorizada. Aí, eu comecei a percorrer as prateleiras, do início ao fim, depois do fim ao início, e ia imaginando se eu realmente ia encontrar algo que me agradasse no meio daquele monte de discos de música baiana, axé, lambada e tudo mais que Sarajane fosse capaz de cantar, além do seu famoso hit “abre a rodinha”.
E foi naquele momento que eu me dei conta de que eu tinha me preparado pra trocar o disco, mas não tinha a menor ideia por qual ou pelo quê eu ia trocar. Cada vez que eu mudava de corredor e passava na frente do caixa eu o cumprimentava com um risinho sem graça. Já o gerente me olhava fixo enquanto conversava com outro funcionário, os dois com as mãos juntas atrás do corpo e provavelmente batendo uma na outra, como de praxe.
O tempo foi passando, eu já estava até pegando uns discos baianos mesmo, só pra fingir algum interesse, mas a preocupação maior era de que se não trocasse o disco do Michael Jackson naquela hora não ia trocar mais nunca. Não dava pra deixar pro dia seguinte.
Foi então que me veio uma saída estratégica e eu fui lá no caixa novamente.
– Ô moço, estou procurando por um grupo vocal que gravou um disco só com músicas do Djavan. Não sei se o senhor conhece, o nome é Manhattan Transfer. O senhor tem ele aí?
– Djavan? Trans o quê? Não, aqui não tem nada com esse nome não. Eu nem conheço, nem nunca ouvi falar disso aí.
Minha estratégia tinha dado certo. Então, eu cocei a cabeça, disfarcei um desapontamento, fiz um ar de perdido por não ter achado o disco que eu queria e disse que ia levar algumas fitas cassetes virgens mesmo – que, aliás, eu já tinha até visto o preço – como se elas fossem a única alternativa para aquela troca, diante da ausência de um outro disco qualquer que me agradasse.
Na verdade, eu até tentei chegar ao caixa escondido, pro gerente não me ver. Mas não teve jeito:
– Então, vai levar fitas pra gravar outros discos, né? – disse ele com ar de delegado de polícia lavrando o flagrante.
– Nada disso, eu gravo só os meus próprios discos. Vou pagar aqui e faço questão de lhe mostrar que meu carro está cheio de fitas gravadas. Não dá pra ouvir disco no carro, então só gravando fitas mesmo. É só por isso que eu gravo.
Saímos da loja já como grandes amigos e quando chegamos no carro – o meu lendário Frederico, um Fiat Oggi vermelho – eu liguei o toca-fitas pra que ele ouvisse o melhor James Taylor que eu tinha: o show ao vivo, gravado no Rock in Rio. Botei de propósito pra impressionar mesmo. Aumentei os graves. Eu tinha até um amplificador Tojo com equalizador e tudo. Potente o bicho. Eu sabia que aquilo ia quebrar tudo com o gerente.
Enquanto ele ia ouvindo a música, olhava o carro, o painel, o porta-luvas cheio de fitas, verificava a vibração das caixas de som na porta, os detalhes em volta, até que num certo momento ele arregalou o olho, curvou os lábios e disse:
– Então, essas músicas que você grava, você tem os discos. Esse aí do James Taylor que tá tocando, você também tem o disco. Seria assim uma fita que você poderia fazer outra, facilmente, caso quisesse presentear alguém com esta aí. É mais ou menos assim que funciona?
Certo de que só o que me restava fazer era responder com um tímido e quase inaudível “pode ser”, o certo é que não havia muita escolha.
Infeliz a hora em que eu tive a tal ideia de querer impressionar o cara com o som do carro; de querer ser cordial; de mostrar que eu não estava trapaceando naquela troca. Afinal, pra que eu fiz tudo aquilo? Era apenas a troca de um objeto por outro, um disco por umas fitas cassetes. Qual o problema disso? Ficasse de boca calada e não teria morrido na fita do James Taylor. Bem, pelo menos eu tinha o disco.
Menos mal, pensei.
Enfim, resignado, neste momento eu tirei a fita de dentro do rádio, botei na caixinha correspondente que trazia o nome das faixas e depositei nas mãos dele. Depois, agradecemos mutuamente a compreensão, desejamos tudo de bom um ao outro e eu saí dali com a nítida impressão de que tolo é quem acha que, na vida, sempre se pode sair ganhando.