Naquele supermercado de Salvador, pra se trocar
qualquer produto, só falando com o gerente. Foi essa a sentença que a moça do
balcão promulgou assim que eu entrei na loja com o meu disco na mão. Em seguida me informou que ele estava no setor
de calçados, trocando uma sandália Havaiana com uma senhora, e logo estaria de
volta. Que era pra eu aguardar um tantinho, ali mesmo.
Eu tinha comprado um vinil do Michael Jackson no dia anterior,
atraído pela música que ouvi no rádio, chamada Gone
Too Soon, e que fazia parte do seu mais recente LP. Neste mesmo disco também
tinha a música Black or White, legalzinha e que fez o maior sucesso, mas era
só. O disco, em si, era ruim e eu queria trocar, pois que não dava pra ficar
com ele só por causa de duas músicas. Uma e meia, vai.
Quando o gerente chegou com a dona que tinha trocado a sandália,
se despediu dela na minha frente e a moça do balcão logo me apontou como o
próximo da fila. Ele chegou perto de mim, olhou o envelope na minha mão e
disse:
– Hum, troca de disco é sempre
complicada. As pessoas querem se aproveitar do estabelecimento e já viu, né? Porque o senhor quer trocar esse aqui? Ele tem algum
defeito? – disse, já pegando o disco.
– Não, defeito nenhum. É por
questão de gosto mesmo – respondi tateando o rumo da conversa.
– O rapaz não gosta do Michael? Ele é o maior cantor pop do mundo.
Um fenômeno de vendas. Não vai dizer que não gosta dele?
Imaginando que teria mais chance naquela negociação se fosse fã do
cantor, eu fui logo explicando:
– Não é isso. Eu até gosto dele. Mas este disco eu não achei bom como os
outros. Senti a falta daquela pegada dançante dele nesse disco, entende? E como
eu não ouvi todas as faixas aqui na loja, quando cheguei em casa me decepcionei
um pouco.
– Sei como é, sempre tem umas musiquinhas lentas, chatinhas nos
discos dele que são pra tentar agradar os enjoados que não gostam justamente
dessa pegada pelourinho que ele tem, aquela coisa de fazer todo mundo dançar
junto, sabe? Que é o maior barato.
Mal sabia ele que a única música que eu realmente gostava do disco era
exatamente a tal lenta e chatinha. Mas se eu dissesse isso, aí mesmo que não ia
conseguir trocar disco nenhum.
– Bem, se o disco não tem defeito,
você sabe que a gente não tem obrigação de trocar. Você tem a nota fiscal aí?
Eu gelei e comecei a duvidar daquela
tentativa de troca.
– Sim, eu sei que o senhor não tem
obrigação de trocar – disse, entregando a nota – mas seria muito melhor pro
Michael Jackson se esse disco fosse parar na
casa de alguém que ficasse plenamente satisfeito com todas as músicas e botasse pra tocar a todo volume, naqueles
sábados de faxina, antes de ir pra praia.
– Olha, agora o rapaz falou a coisa mais
certa. Minha mulher põe os discos no volume nove justamente quando está fazendo faxina lá em
casa. A gente fala com ela, grita mesmo e ela nem ouve. É um barato. Mas tá, vamos logo
trocar esse disco e pronto, tudo resolvido.
Eu só imaginei o naipe das músicas da
mulher do gerente, naquele tal volume nove, durante a faxina.
No caminho até o fundo da loja
ele me confidenciou – sim porque já estávamos
quase amigos de infância – que a bronca dele
era justamente essa rapaziada que só quer ficar trocando os LPs e gravando em fitas cassetes.
– Aí é chato. É fazer a gente de bobo. Os garotos pagam apenas um disco e ficam
trocando, e gravando, e copiando nas fitas. Pô, acho isso sacanagem com o
comércio.
Eu concordei com ele, claro, mas senti que aquela conversa tinha algumas
controvérsias que eu bem poderia explicar, embora
achasse que aquela não era exatamente a ocasião pra isso.
Chegamos ao cercadinho do setor
dos discos, grande e cheio de pôsteres. O gerente me deu o vale-troca e, com um
simples sinal de mão, avisou ao caixa que a
troca estava autorizada. Aí, eu comecei a percorrer as prateleiras,
do início ao fim,
depois do fim ao início, e ia imaginando se eu realmente
ia encontrar algo que me agradasse no meio
daquele monte de discos de música baiana, axé, lambada e tudo mais que Sarajane fosse capaz de cantar, além
do seu famoso hit “abre a rodinha”.
E foi naquele momento que eu me
dei conta de que eu tinha me preparado pra trocar o disco, mas não tinha a
menor ideia por qual ou pelo quê eu ia trocar. Cada vez que eu mudava de
corredor e passava na frente do caixa eu o cumprimentava com um risinho sem
graça. Já o gerente me olhava fixo enquanto conversava
com outro funcionário, os dois com as mãos juntas atrás do corpo e
provavelmente batendo uma na outra, como de praxe.
O tempo foi passando, eu já estava
até pegando uns discos baianos mesmo, só pra fingir algum interesse, mas a
preocupação maior era de que se não trocasse o disco do Michael Jackson naquela
hora não ia trocar mais nunca. Não dava pra deixar pro dia seguinte.
Foi então que me veio uma saída
estratégica e eu fui lá no caixa novamente.
– Ô moço, estou procurando por um
grupo vocal que gravou um disco só com músicas do Djavan. Não sei se o senhor
conhece, o nome é Manhattan Transfer. O senhor tem ele aí?
– Djavan? Trans o quê? Não, aqui não tem nada com esse nome não.
Eu nem conheço, nem nunca ouvi falar disso aí.
Minha estratégia tinha dado certo. Então, eu cocei a cabeça,
disfarcei um desapontamento, fiz um ar de perdido por não ter achado o disco
que eu queria e disse que ia levar algumas fitas cassetes virgens mesmo – que,
aliás, eu já tinha até visto o preço – como se
elas fossem a única alternativa para aquela troca, diante da ausência de um
outro disco qualquer que me agradasse.
Na verdade, eu até tentei chegar
ao caixa escondido, pro gerente não me ver. Mas não teve jeito:
– Então, vai levar fitas pra gravar
outros discos, né? – disse ele com ar de delegado de polícia lavrando o flagrante.
– Nada disso, eu gravo só os meus
próprios discos. Vou pagar aqui e faço questão de lhe mostrar que meu carro
está cheio de fitas gravadas. Não dá pra ouvir disco no carro, então só
gravando fitas mesmo. É só por isso que eu
gravo.
Saímos da loja já como grandes amigos
e quando chegamos no carro – o meu lendário Frederico, um Fiat Oggi vermelho – eu liguei o toca-fitas pra que ele ouvisse o melhor
James Taylor que eu tinha: o show ao vivo, gravado no Rock in Rio. Botei de
propósito pra impressionar mesmo. Aumentei os graves.
Eu tinha até um amplificador Tojo com equalizador e tudo. Potente o bicho. Eu
sabia que aquilo ia quebrar tudo com o
gerente.
Enquanto ele ia ouvindo a música, olhava
o carro, o painel, o porta-luvas cheio de fitas, verificava a vibração das
caixas de som na porta, os detalhes em volta,
até que num certo momento ele arregalou o olho, curvou os lábios e disse:
– Então, essas músicas que você grava, você tem os discos. Esse aí
do James Taylor que tá tocando, você também tem o disco. Seria assim uma fita
que você poderia fazer outra, facilmente, caso quisesse presentear alguém com
esta aí. É mais ou menos assim que funciona?
Certo de que só o que me restava fazer
era responder com um tímido e quase inaudível “pode ser”, o certo é que não havia muita escolha.
Infeliz a hora em que eu tive a tal ideia de querer impressionar o
cara com o som do carro; de querer ser cordial; de mostrar que eu não estava
trapaceando naquela troca. Afinal, pra que eu fiz tudo aquilo? Era apenas a troca de um objeto por outro, um disco por umas
fitas cassetes. Qual o problema disso? Ficasse de boca calada e não teria morrido
na fita do James Taylor. Bem, pelo menos eu tinha o disco.
Menos mal, pensei.
Enfim, resignado, neste momento eu tirei a fita de dentro do
rádio, botei na caixinha correspondente que trazia o nome das faixas e
depositei nas mãos dele. Depois, agradecemos mutuamente a compreensão,
desejamos tudo de bom um ao outro e eu saí dali com a nítida impressão de que
tolo é quem acha que, na vida, sempre se pode sair ganhando.