terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Boa Noite


É bem comum. Nesses primeiros dias do ano a gente ainda não se acostumou direito à rotina e nem pegou o embalo perdido com o fim do ano anterior. Acho que, em alguns casos, a gente acaba por entender que o ano só começa de verdade depois do Carnaval, mas é tudo por culpa das nossas dificuldades em emendar um ano no outro, assim tão depressa como quer o calendário do trabalho, ou do tempo, esse adorável opressor idílico.
Foi num desses dias do mês de fevereiro, pós-carnaval, que eu estava voltando pra casa de noitinha, depois do trabalho. Uma hora especial em que as cores ficam esmaecidas pelo fim do sol e por um poético céu cor de rosa que promete mais verão para o dia seguinte.
Ia eu pensando em não-sei-quê, cruzando a Pracinha dos Bombeiros, e tentando enfileirar as coisas que eu devia organizar para os próximos dias. Tinha um texto que eu queria escrever pro jornal do sindicato e eu tinha escolhido umas palavras e frases soltas que me vieram à memória de repente e eu sabia que devia escrever, senão fatalmente ia esquecer. Também estava devendo uma arrumação nas minhas músicas, sempre necessitando de atenção e, por fim, queria lembrar exatamente o dia da consulta ao dentista, que se aproximava.
Tudo isso rodopiando e se misturando na minha cabeça, eu percebi que estava ouvindo ao longe um menino que voltava da escola e falava insistentemente com a mãe:
– Fala Batman. Fala Batman, mãe. Fala Batman.
Ela não dava atenção e ele voltava a recitar:
– Fala Batman. Vai mãe, pô, fala Batman aí. Fala Batman.
Aí a mãe enfim falou Batman e o menino abriu uma enorme capa preta, pontuda nas extremidades, com o símbolo amarelo do homem morcego bem no meio. O garoto fazia evoluções, corria pela praça, voltava pra perto da mãe, fingia voar e depois fechava a capa de novo, tornando a andar do lado da mãe que, resignada, levava a sua mochila.
Dali a pouco ele começava tudo de novo e voltava a pedir, com a mesma insistência, que a mãe dissesse Batman. Parecia que eu estava num filme, mas eu mesmo não tinha nada muito nítido, nem a tela e nem as imagens, pois não estava prestando atenção no menino e na mãe, perdido no emaranhado dos meus pensamentos.
Só lembro da voz do menino pedindo “fala Batman, fala Batman, vai, fala Batman”.
Nessa hora cruzou comigo na praça um senhor, que eu não me lembro de onde o conheço, ou mesmo se o conheço.
– Boa noite – ele disse.
E eu respondi:
– Batman.
No mesmo instante eu me assustei. A boca até quis segurar a palavra, mas já tinha ido. Acho que foi o cérebro confuso que falou sozinho, respondendo ao menino e retribuindo o boa noite com aquele Batman maldito que eu não sei de onde saiu.
O homem nem virou pra trás e continuou seguindo o seu caminho. Ou não ouviu, ou achou aquilo normal, ou me achou mesmo um louco varrido, um caso perdido e incurável de demência social, que responde Batman a um simples cumprimento de boa noite.
No início, com o susto, eu até retomei a consciência de tudo que estava em volta, o menino-Batman, a mãe do Batman e a capa do super-herói. Aos poucos eu fui avaliando também o que raios o outro sujeito estaria pensando de mim naquele momento, ou como ele iria contar pra alguém o que lhe aconteceu. E pensando nas palavras que ele (ou eu) usaria pra contar aquela paródia burlesca eu comecei a rir de mim mesmo. Dali a pouco eu estava rindo mais e mais, aumentando a certeza de que, mais dia menos dia, a caduquice que me segue pela vida afora, finalmente me alcançará.
E foi rindo que eu cheguei em casa e, dali pra frente, cada vez que eu conto esse episódio mais eu penso que uma pessoa gagá não fica gagá assim de uma hora pra outra. Algum tipo de evolução ou estágio vai se desenvolvendo aos poucos, até que chega o dia em que ela já não responde mais ao mundo normal como deveria. E aí, quando alguém diz um simples Boa Noite a pessoa responde, simplesmente, Batman. E fim.


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Festa de Divórcio


Casados nos anos 70 com todas as, digamos, peculiaridades de uma união hippie em plena efervescência do movimento mundial de contracultura, a festa daqueles dois já se delineava pitoresca desde a chegada dos convites, semanas antes.
Alguns amigos, ultimamente não muito próximos, até ligavam perguntando o que aquilo significava e ouviam a mesma explicação que o casal, agora ex, combinou de dar, ou seja, a declarada e intransponível incompatibilidade política e, consequentemente, de gênios.
Ele havia se tornado acionista de uma fábrica de armas, a Taurus, e ela, quase que na mesma ocasião, virou ativista de uma Ong mundial que luta pelo fim das armas, pela democratização da água e pelos direitos civis. “Se isso não é incompatibilidade não sei o que é”, diziam os dois ao telefone quase rindo um do outro, tentando explicar aos amigos o caos geral e irrestrito causado por suas atuais posições ideológicas.
A curiosidade causada pelo evento foi enorme, até mesmo pelo clima pitoresco e espirituoso da celebração. Politicamente irreconciliáveis, a saída era rir da situação e nada melhor do que celebrar, entre amigos, o fim de mais de 30 anos de casamento.
Já na entrada da casa, os convidados podiam ver a si mesmos e os divorciandos nas fotos antigas que se espalhavam em pôsteres por todo o espaço. A Kombi amarela na praia de Búzios era uma das preferidas. Depois vinham as fotos das férias na Broadway e logo em seguida as de Havana, em Cuba. Claro que nesse universo de viagens não faltavam as provocações políticas e partidárias de parte a parte, às vezes dando a impressão de que a festa estava a um milímetro de descambar pra discussão séria em torno do recente golpe instalado no país.
Enquanto uma parte debochava de Havana e elogiava os teatros e museus estadunidenses, o outro grupo fazia exatamente o oposto, enaltecendo a força do povo, a estrutura de saúde e de educação criada na bela Ilha comunista.
Claro que teve a hora dos discursos. O dele e depois o dela. Devidamente cronometrados pra garantir o mesmo tempo a ambos. E, claro que os discursos vieram temperados pelo grau político e etílico que, naturalmente, só aumentava com o avançar da noite.
Até que, lá pelas tantas, um dos convidados pleiteou um aparte pedindo pra mostrar o que o seu filho pequeno aprendeu com ele. Após a concessão de todos, ele, com o maior orgulho, chamou o menino Nicolas, sublinhou que ele tinha apenas três anos e meio, pediu o devido silêncio a todos e disse ao garoto:
– Fala aqui pros amigos do papai e da mamãe qual é A Verdade Absoluta do Universo.
O pequeno tomou lugar bem no meio da sala, puxou o fôlego e disse:
– São duas as Verdades Absolutas do Universo: o controle remoto é de uso ilimitado do papai e o cartão de crédito é de uso ilimitado da mamãe.
A gargalhada foi geral, ampla e irrestrita. Aplaudido de pé, o menino nem ficou envergonhado, dando a entender que já devia ter repetido aquilo umas mil vezes, sempre com o mesmo sucesso.
Mais uma rodada de uísque e logo outro pai se sentiu encorajado.
– Agora é a vez do meu filho. Cadu, vem aqui um instante – gritou o pai.
– Cadu, me diz como e onde acontece de a água mudar o seu estado físico?
O menino inspirou com postura professoral e, do alto dos seus três anos, recitou:
– Acontece no alto das montanhas dotadas de grande altitude. A água fica depositada lá no topo e vira gelo, ou neve, passando do estado líquido para o sólido. A explicação é que a água congela a zero grau Celsius.
Urrando de orgulho, o pai puxou os gritos de é campeão e toda a turba novamente se pôs de pé, levantando os copos pra fazer o cordão e dar voltas na sala, entornando bebida no tapete, jogando o coitado do Cadu pro alto, até que o terceiro pai interrompeu.
– Silêncio, silêncio. Eu também tenho uma coisa que eu ensinei pra minha filha que eu queria mostrar pra vocês. Tenho o maior orgulho de ela ter aprendido isso, mesmo com os seus dois aninhos e sua natural dificuldade pra falar.
O silêncio foi arrebatador quando ele voltou lá de dentro com a menina Joaninha nos braços. Toda lindinha, com um vestidinho branco, penteadinha, com chuquinhas e lacinhos, sandálias brancas e um livro pequeno nas mãos.
– Joaninha, diz aqui pra mim, o que o Papai Noel é?
Todos se entreolharam, certamente estranhando a candura pueril daquela pergunta, ao mesmo tempo em que a menina fechou o seu livro e disparou, pausadamente:
– O Papai Noel é um porco capitalista.
A disputa estava encerrada. E, definitivamente, Joaninha era a vencedora. Carregada nos braços em comitiva e dando voltas na sala aos gritos de Fidel Fidel Fidel, a ala simpatizante da dona da casa anunciou aos berros que a vitória da menina merecia uma celebração especial. Nessa hora, a anfitriã surgiu com uma caixa de charutos cubanos debaixo do braço e duas garrafas de vodca russa na mão.
Quando as garrafas foram finalmente abertas e saíram as primeiras baforadas dos charutos, o coro que estava sendo batucado e cantado aos brados naquele momento era “Papai Noel, porco capitalista. Papai Noel, porco capitalista”.
Depois se seguiu o famoso jingle “Joga bosta na Geni”, findando aquela estranha noite com o grupo cantando o Hino à Internacional Comunista, música que, dada a conjuntura daquele evento, jamais poderia faltar.
Jogada para o alto no colo do pai, por diversas vezes, e eufórica pelos gritos de Joaninha, Joaninha, a certa altura, no meio daquela confusão toda, a menina parou e gritou:
– Joaninha é o ca--lho, meu nome agora é Baby Frida, poooorra! – e cuspiu o chiclete longe.

Até hoje, quando eu me lembro daquela festa, me pergunto se aquilo aconteceu mesmo.
Mas logo em seguida eu mesmo respondo:
– Claro que aconteceu!  Eu juro!