É bem comum. Nesses primeiros dias do ano a
gente ainda não se acostumou direito à rotina e nem pegou o embalo perdido com
o fim do ano anterior. Acho que, em alguns casos, a gente acaba por entender
que o ano só começa de verdade depois do Carnaval, mas é tudo por culpa das
nossas dificuldades em emendar um ano no outro, assim tão depressa como quer o
calendário do trabalho, ou do tempo, esse adorável opressor idílico.
Foi num desses dias do mês de fevereiro,
pós-carnaval, que eu estava voltando pra casa de noitinha, depois do trabalho.
Uma hora especial em que as cores ficam esmaecidas pelo fim do sol e por um
poético céu cor de rosa que promete mais verão para o dia seguinte.
Ia eu pensando em não-sei-quê, cruzando a
Pracinha dos Bombeiros, e tentando enfileirar as coisas que eu devia organizar
para os próximos dias. Tinha um texto que eu queria escrever pro jornal do
sindicato e eu tinha escolhido umas palavras e frases soltas que me vieram à
memória de repente e eu sabia que devia escrever, senão fatalmente ia esquecer.
Também estava devendo uma arrumação nas minhas músicas, sempre necessitando de
atenção e, por fim, queria lembrar exatamente o dia da consulta ao dentista,
que se aproximava.
Tudo isso rodopiando e se misturando na minha
cabeça, eu percebi que estava ouvindo ao longe um menino que voltava da escola
e falava insistentemente com a mãe:
– Fala Batman. Fala Batman, mãe. Fala Batman.
Ela não dava atenção e ele voltava a recitar:
– Fala Batman. Vai mãe, pô, fala Batman aí. Fala
Batman.
Aí a mãe enfim falou Batman e o menino abriu uma
enorme capa preta, pontuda nas extremidades, com o símbolo amarelo do homem
morcego bem no meio. O garoto fazia evoluções, corria pela praça, voltava pra
perto da mãe, fingia voar e depois fechava a capa de novo, tornando a andar do
lado da mãe que, resignada, levava a sua mochila.
Dali a pouco ele começava tudo de novo e voltava
a pedir, com a mesma insistência, que a mãe dissesse Batman. Parecia que eu
estava num filme, mas eu mesmo não tinha nada muito nítido, nem a tela e nem as
imagens, pois não estava prestando atenção no menino e na mãe, perdido no
emaranhado dos meus pensamentos.
Só lembro da voz do menino pedindo “fala Batman,
fala Batman, vai, fala Batman”.
Nessa hora cruzou comigo na praça um senhor, que
eu não me lembro de onde o conheço, ou mesmo se o conheço.
– Boa noite – ele disse.
E eu respondi:
– Batman.
No mesmo instante eu me assustei. A boca até
quis segurar a palavra, mas já tinha ido. Acho que foi o cérebro confuso que
falou sozinho, respondendo ao menino e retribuindo o boa noite com aquele
Batman maldito que eu não sei de onde saiu.
O homem nem virou pra trás e continuou seguindo
o seu caminho. Ou não ouviu, ou achou aquilo normal, ou me achou mesmo um louco
varrido, um caso perdido e incurável de demência social, que responde Batman a
um simples cumprimento de boa noite.
No início, com o susto, eu até retomei a
consciência de tudo que estava em volta, o menino-Batman, a mãe do Batman e a
capa do super-herói. Aos poucos eu fui avaliando também o que raios o outro
sujeito estaria pensando de mim naquele momento, ou como ele iria contar pra
alguém o que lhe aconteceu. E pensando nas palavras que ele (ou eu) usaria pra
contar aquela paródia burlesca eu comecei a rir de mim mesmo. Dali a pouco eu
estava rindo mais e mais, aumentando a certeza de que, mais dia menos dia, a
caduquice que me segue pela vida afora, finalmente me alcançará.
E foi rindo que eu cheguei em casa e, dali pra
frente, cada vez que eu conto esse episódio mais eu penso que uma pessoa gagá
não fica gagá assim de uma hora pra outra. Algum tipo de evolução ou estágio
vai se desenvolvendo aos poucos, até que chega o dia em que ela já não responde
mais ao mundo normal como deveria. E aí, quando alguém diz um simples Boa Noite
a pessoa responde, simplesmente, Batman. E fim.