Casados nos anos 70 com todas as, digamos, peculiaridades de uma
união hippie em plena efervescência do movimento mundial de contracultura, a
festa daqueles dois já se delineava pitoresca desde a chegada dos convites,
semanas antes.
Alguns amigos, ultimamente não muito próximos, até ligavam
perguntando o que aquilo significava e ouviam a mesma explicação que o casal,
agora ex, combinou de dar, ou seja, a declarada e intransponível
incompatibilidade política e, consequentemente, de gênios.
Ele havia se tornado acionista de uma fábrica de armas, a Taurus,
e ela, quase que na mesma ocasião, virou ativista de uma Ong mundial que luta
pelo fim das armas, pela democratização da água e pelos direitos civis. “Se
isso não é incompatibilidade não sei o que é”, diziam os dois ao telefone quase
rindo um do outro, tentando explicar aos amigos o caos geral e irrestrito
causado por suas atuais posições ideológicas.
A curiosidade causada pelo evento foi enorme, até mesmo pelo clima
pitoresco e espirituoso da celebração. Politicamente irreconciliáveis, a saída
era rir da situação e nada melhor do que celebrar, entre amigos, o fim de mais
de 30 anos de casamento.
Já na entrada da casa, os convidados podiam ver a si mesmos e os
divorciandos nas fotos antigas que se espalhavam em pôsteres por todo o espaço.
A Kombi amarela na praia de Búzios era uma das preferidas. Depois vinham as
fotos das férias na Broadway e logo em seguida as de Havana, em Cuba. Claro que
nesse universo de viagens não faltavam as provocações políticas e partidárias
de parte a parte, às vezes dando a impressão de que a festa estava a um
milímetro de descambar pra discussão séria em torno do recente golpe instalado
no país.
Enquanto uma parte debochava de Havana e elogiava os teatros e museus
estadunidenses, o outro grupo fazia exatamente o oposto, enaltecendo a força do
povo, a estrutura de saúde e de educação criada na bela Ilha comunista.
Claro que teve a hora dos discursos. O dele e depois o dela.
Devidamente cronometrados pra garantir o mesmo tempo a ambos. E, claro que os
discursos vieram temperados pelo grau político e etílico que, naturalmente, só
aumentava com o avançar da noite.
Até que, lá pelas tantas, um dos convidados pleiteou um aparte
pedindo pra mostrar o que o seu filho pequeno aprendeu com ele. Após a
concessão de todos, ele, com o maior orgulho, chamou o menino Nicolas,
sublinhou que ele tinha apenas três anos e meio, pediu o devido silêncio a
todos e disse ao garoto:
– Fala aqui pros amigos do papai e da mamãe qual é A Verdade
Absoluta do Universo.
O pequeno tomou lugar bem no meio da sala, puxou o fôlego e disse:
– São duas as Verdades Absolutas do Universo: o controle remoto é
de uso ilimitado do papai e o cartão de crédito é de uso ilimitado da mamãe.
A gargalhada foi geral, ampla e irrestrita. Aplaudido de pé, o
menino nem ficou envergonhado, dando a entender que já devia ter repetido
aquilo umas mil vezes, sempre com o mesmo sucesso.
Mais uma rodada de uísque e logo outro pai se sentiu encorajado.
– Agora é a vez do meu filho. Cadu, vem aqui um instante – gritou
o pai.
– Cadu, me diz como e onde acontece de a água mudar o seu estado
físico?
O menino inspirou com postura professoral e, do alto dos seus três
anos, recitou:
– Acontece no alto das montanhas dotadas de grande altitude. A
água fica depositada lá no topo e vira gelo, ou neve, passando do estado
líquido para o sólido. A explicação é que a água congela a zero grau Celsius.
Urrando de orgulho, o pai puxou os gritos de é campeão e toda a
turba novamente se pôs de pé, levantando os copos pra fazer o cordão e dar
voltas na sala, entornando bebida no tapete, jogando o coitado do Cadu pro
alto, até que o terceiro pai interrompeu.
– Silêncio, silêncio. Eu também tenho uma coisa que eu ensinei pra
minha filha que eu queria mostrar pra vocês. Tenho o maior orgulho de ela ter
aprendido isso, mesmo com os seus dois aninhos e sua natural dificuldade pra
falar.
O silêncio foi arrebatador quando ele voltou lá de dentro com a
menina Joaninha nos braços. Toda lindinha, com um vestidinho branco,
penteadinha, com chuquinhas e lacinhos, sandálias brancas e um livro pequeno
nas mãos.
– Joaninha, diz aqui pra mim, o que o Papai Noel é?
Todos se entreolharam, certamente estranhando a candura pueril
daquela pergunta, ao mesmo tempo em que a menina fechou o seu livro e disparou,
pausadamente:
– O Papai Noel é um porco capitalista.
A disputa estava encerrada. E, definitivamente, Joaninha era a
vencedora. Carregada nos braços em comitiva e dando voltas na sala aos gritos
de Fidel Fidel Fidel, a ala simpatizante da dona da casa anunciou aos berros
que a vitória da menina merecia uma celebração especial. Nessa hora, a anfitriã
surgiu com uma caixa de charutos cubanos debaixo do braço e duas garrafas de
vodca russa na mão.
Quando as garrafas foram finalmente abertas e saíram as primeiras
baforadas dos charutos, o coro que estava sendo batucado e cantado aos brados
naquele momento era “Papai Noel, porco capitalista. Papai Noel, porco
capitalista”.
Depois se seguiu o famoso jingle “Joga bosta na Geni”, findando
aquela estranha noite com o grupo cantando o Hino à Internacional Comunista,
música que, dada a conjuntura daquele evento, jamais poderia faltar.
Jogada para o alto no colo do pai, por diversas vezes, e eufórica
pelos gritos de Joaninha, Joaninha, a certa altura, no meio daquela confusão
toda, a menina parou e gritou:
– Joaninha é o ca--lho, meu nome agora é Baby Frida, poooorra! – e
cuspiu o chiclete longe.
Até hoje, quando eu me lembro daquela festa, me pergunto se aquilo
aconteceu mesmo.
Mas logo em seguida eu mesmo respondo:
– Claro que aconteceu! Eu juro!