Boa
tarde. Meu nome é Justine, disse a apresentadora na cerimônia
de abertura do festival de cinema. Aquele sotaque francês com o qual ela pronunciou
o seu nome produziu magicamente um silêncio repentino e toda a plateia se virou
pra frente, pra ver quem era a tal francesinha.
Depois de anunciar a programação e os patrocinadores da mostra, ela passou
a palavra ao primeiro cineasta convidado, que falou um pouco sobre o seu filme,
a ser exibido a seguir. Quando terminou, Justine anunciou o outro convidado e
se posicionou novamente em seu lugar, mais para o lado do palco e um pouco mais
ao fundo.
Miguel, inquieto na
cadeira, mal conseguia prestar atenção ao que o diretor falava e só olhava pra
Justine, ali quietinha, com os seus papéis na mão. De alguma maneira
inexplicável ele não conseguia parar de olhar pra ela. Era um ímpeto, algo mais
forte do que ele. Os amigos, nas fileiras logo atrás, também perceberam e
perguntaram entre si quem era a tal menina que eles nunca tinham visto naqueles
festivais.
Quando terminaram os
discursos e as considerações de praxe, finalmente ela anunciou o início da
projeção e, nessa hora, Miguel ficou quase de pé pra ver em que lugar da plateia
a menina iria se sentar. Naturalmente, ela tinha um lugar reservado nas primeiras
filas, junto do pessoal da organização do festival e Miguel teve que se
contentar em ficar vigiando os seus movimentos esporádicos, seja quando que ela
arrumava o cachecol no pescoço ou quando passava a mão no cabelo.
Entre os filmes tinha
um intervalo grande e nesse tempo as pessoas iam até o corredor pra dar uma volta,
esticar as costas ou as pernas e se preparar pra próxima sessão. Fora da sala fazia
um grande burburinho e uma aglomeração que mal dava pra andar. Tentando chegar
ao banheiro, Miguel de repente notou que alguém esbarrou nele e ao se virar
percebeu que era nada menos que a bela Justine. A moça estava de costas pra ele,
mas, mesmo assim, ele a reconheceu e enquanto ela conversava com outras pessoas
ele tentava disfarçar o seu nervosismo e a maior de todas as suas imposições: a
timidez.
Ele então resolveu
ficar inerte ali, quase impossibilitado de se mexer, de tanta gente junto, mas desfrutando
daquela proximidade que, com muita sorte, o acaso lhe concedeu. Justine falava
com a equipe da produção, conferindo os nomes que ela iria anunciar dali a
pouco e, de repente, algo que ela disse chamou a atenção de Miguel.
– Gente, eu estou
morrendo de fome – reclamava a moça com os colegas. Cheguei aqui cedo pra
passar o texto e nem saí pra comer. Aí anoiteceu e eu acabei ficando. Mas tô
varada de fome. Nossa, eu daria tudo por uma bela barra de chocolate agora.
Um
estalo soou na cabeça do Miguel e num átimo o rapaz literalmente saltou dali
pra rua. Nem ele sabe como conseguiu se desvencilhar de tanta gente. Livre,
correu até a lanchonete da esquina, comprou duas enormes barras de chocolate,
pediu pra botar num saquinho e levou escondido dentro do bolso. Com as salas de
projeção quase vazias ele entrou com todo o cuidado e foi disfarçando até se
aproximar do púlpito, onde a apresentadora atuava.
O
púlpito tinha uma superfície cheia de papéis e uma pequena prateleira logo
abaixo, onde estavam dois microfones, além de mais papéis. Pra não ficar muito
à vista, Miguel pôs os chocolates junto dos microfones e foi correndo ocupar o
seu lugar na plateia.
Quando
todos entraram e tomaram os seus lugares a apresentadora iniciou, como sempre:
– Boa noite. Meu nome
é Justine.
No momento em que ela
anunciou o próximo orador e foi pegar o outro microfone, trouxe junto o pacote
branco de papel. Depois de passar o microfone adiante, voltou pro seu lugar de
sempre e ali ela abriu o pacote o mais escondido que pôde. Quando viu o que
tinha dentro fechou rápido e começou a olhar em volta, como que procurando o autor
daquele ato misterioso e generoso.
Escondido astutamente
entre as cabeças à sua frente, Miguel ria observando a moça, incrédula, que
nesse instante passou a tirar pequenos tabletinhos do chocolate e, depois de
comer, tornava a botar o restante no pacote, com um sorrisinho francês, tímido e
típico, no canto da boca.
Justine
jamais soube quem lhe trouxe aquele chocolate. Por sua vez, Miguel jamais teve
coragem de dirigir qualquer palavra à moça. No meio de tanta gente famosa do
cinema e das artes, ele ficou com vergonha de ser um ninguém ao se anunciar
para a moça como o sujeito do chocolate. Ele seria capaz de reconhecê-la nos
lugares, pela cidade, e relembrar toda a história. Já ela, não.
O
tempo passou depressa e cinco anos depois Miguel estava saindo de uma visita a
um cliente, num prédio que tinha uma escada rolante para acesso aos elevadores.
Na base da escada ele estava arrumando a sua pasta de trabalho quando notou uma
mulher que subia e o olhava fixamente. Abraçado à pasta ele estremeceu ao
reconhecer Justine.
Surgida
do nada, sem trocar qualquer palavra, os dois cruzaram um olhar fixo por curtos
longos minutos, até que ela desapareceu no andar superior. Para ele, alguma
coisa no seu semblante dava a certeza de que ela sabia tudo sobre o chocolate.
Mesmo sem entender como isso seria possível, era o que ele intuía, ante aquela
cena que acabara de acontecer e que o deixou parado, fitando a escada e o nada.
Miguel nunca mais esqueceu aquele encontro, nem
aquele olhar. Foi um enigmático e tocante olhar de agradecimento. Que ele
guardou pra si, ternamente, como um livro bom. Daqueles que a gente nunca mais
quer parar de ler.