quinta-feira, 22 de março de 2018

O Chocolate


Boa tarde. Meu nome é Justine, disse a apresentadora na cerimônia de abertura do festival de cinema. Aquele sotaque francês com o qual ela pronunciou o seu nome produziu magicamente um silêncio repentino e toda a plateia se virou pra frente, pra ver quem era a tal francesinha.
Depois de anunciar a programação e os patrocinadores da mostra, ela passou a palavra ao primeiro cineasta convidado, que falou um pouco sobre o seu filme, a ser exibido a seguir. Quando terminou, Justine anunciou o outro convidado e se posicionou novamente em seu lugar, mais para o lado do palco e um pouco mais ao fundo.
Miguel, inquieto na cadeira, mal conseguia prestar atenção ao que o diretor falava e só olhava pra Justine, ali quietinha, com os seus papéis na mão. De alguma maneira inexplicável ele não conseguia parar de olhar pra ela. Era um ímpeto, algo mais forte do que ele. Os amigos, nas fileiras logo atrás, também perceberam e perguntaram entre si quem era a tal menina que eles nunca tinham visto naqueles festivais.
Quando terminaram os discursos e as considerações de praxe, finalmente ela anunciou o início da projeção e, nessa hora, Miguel ficou quase de pé pra ver em que lugar da plateia a menina iria se sentar. Naturalmente, ela tinha um lugar reservado nas primeiras filas, junto do pessoal da organização do festival e Miguel teve que se contentar em ficar vigiando os seus movimentos esporádicos, seja quando que ela arrumava o cachecol no pescoço ou quando passava a mão no cabelo.
Entre os filmes tinha um intervalo grande e nesse tempo as pessoas iam até o corredor pra dar uma volta, esticar as costas ou as pernas e se preparar pra próxima sessão. Fora da sala fazia um grande burburinho e uma aglomeração que mal dava pra andar. Tentando chegar ao banheiro, Miguel de repente notou que alguém esbarrou nele e ao se virar percebeu que era nada menos que a bela Justine. A moça estava de costas pra ele, mas, mesmo assim, ele a reconheceu e enquanto ela conversava com outras pessoas ele tentava disfarçar o seu nervosismo e a maior de todas as suas imposições: a timidez.
Ele então resolveu ficar inerte ali, quase impossibilitado de se mexer, de tanta gente junto, mas desfrutando daquela proximidade que, com muita sorte, o acaso lhe concedeu. Justine falava com a equipe da produção, conferindo os nomes que ela iria anunciar dali a pouco e, de repente, algo que ela disse chamou a atenção de Miguel.
– Gente, eu estou morrendo de fome – reclamava a moça com os colegas. Cheguei aqui cedo pra passar o texto e nem saí pra comer. Aí anoiteceu e eu acabei ficando. Mas tô varada de fome. Nossa, eu daria tudo por uma bela barra de chocolate agora.
Um estalo soou na cabeça do Miguel e num átimo o rapaz literalmente saltou dali pra rua. Nem ele sabe como conseguiu se desvencilhar de tanta gente. Livre, correu até a lanchonete da esquina, comprou duas enormes barras de chocolate, pediu pra botar num saquinho e levou escondido dentro do bolso. Com as salas de projeção quase vazias ele entrou com todo o cuidado e foi disfarçando até se aproximar do púlpito, onde a apresentadora atuava.
O púlpito tinha uma superfície cheia de papéis e uma pequena prateleira logo abaixo, onde estavam dois microfones, além de mais papéis. Pra não ficar muito à vista, Miguel pôs os chocolates junto dos microfones e foi correndo ocupar o seu lugar na plateia.
Quando todos entraram e tomaram os seus lugares a apresentadora iniciou, como sempre:
– Boa noite. Meu nome é Justine.
No momento em que ela anunciou o próximo orador e foi pegar o outro microfone, trouxe junto o pacote branco de papel. Depois de passar o microfone adiante, voltou pro seu lugar de sempre e ali ela abriu o pacote o mais escondido que pôde. Quando viu o que tinha dentro fechou rápido e começou a olhar em volta, como que procurando o autor daquele ato misterioso e generoso.
Escondido astutamente entre as cabeças à sua frente, Miguel ria observando a moça, incrédula, que nesse instante passou a tirar pequenos tabletinhos do chocolate e, depois de comer, tornava a botar o restante no pacote, com um sorrisinho francês, tímido e típico, no canto da boca.
Justine jamais soube quem lhe trouxe aquele chocolate. Por sua vez, Miguel jamais teve coragem de dirigir qualquer palavra à moça. No meio de tanta gente famosa do cinema e das artes, ele ficou com vergonha de ser um ninguém ao se anunciar para a moça como o sujeito do chocolate. Ele seria capaz de reconhecê-la nos lugares, pela cidade, e relembrar toda a história. Já ela, não.
O tempo passou depressa e cinco anos depois Miguel estava saindo de uma visita a um cliente, num prédio que tinha uma escada rolante para acesso aos elevadores. Na base da escada ele estava arrumando a sua pasta de trabalho quando notou uma mulher que subia e o olhava fixamente. Abraçado à pasta ele estremeceu ao reconhecer Justine.
Surgida do nada, sem trocar qualquer palavra, os dois cruzaram um olhar fixo por curtos longos minutos, até que ela desapareceu no andar superior. Para ele, alguma coisa no seu semblante dava a certeza de que ela sabia tudo sobre o chocolate. Mesmo sem entender como isso seria possível, era o que ele intuía, ante aquela cena que acabara de acontecer e que o deixou parado, fitando a escada e o nada.
Miguel nunca mais esqueceu aquele encontro, nem aquele olhar. Foi um enigmático e tocante olhar de agradecimento. Que ele guardou pra si, ternamente, como um livro bom. Daqueles que a gente nunca mais quer parar de ler.


segunda-feira, 12 de março de 2018

A Camisa


Dia desses eu fui na lavanderia aqui perto, na esquina de casa, pra pedir pra lavar uma colcha e dois casacos. Finzinho de verão, a hora é boa pra ir deixando tudo certinho pra quando chegar o inverno e arrumar as roupas e os cobertores do ano anterior é uma boa opção, tanto pela calma em limpá-los como pela facilidade das lavanderias ainda vazias das demandas da estação.
A lavanderia é pequena, tem apenas duas funcionárias, e nesse dia uma estava atendendo no balcão e a outra passava a ferro no fundo da loja. A loja é pequena de largura, mas de grande profundidade, tendo as máquinas lavadoras todas enfileiradas desde a entrada, com os objetos e apetrechos por cima, e com uma fileira de cadeiras de plástico na outra parede, para os clientes que operam as máquinas e lavam as próprias roupas.
Como não era o meu caso, enquanto uma moça fazia a minha comanda de serviços, anotando o que eu trazia para lavar, a outra, que estava lá atrás, passava um lençol e eu vi uma bela camisa masculina pendurada no cabide, esticadinha, que tinha acabado de ser passada.
Eu notei que ela tinha umas aplicações por todo o tecido, parecendo uns lápis, bem bonita. E aí eu perguntei à passadeira:
– Essa camisa aí pendurada ao seu lado, o que são essas coisas desenhadas nela? Daqui parecem uns lápis, tipo uns canudos. O que são?
A moça então tirou o cabide do suporte e veio na minha direção, mostrando a camisa.
– Isso aqui? – disse, mostrando mais de perto – são garrafinhas pretas e brancas, estão por toda a camisa. Tá vendo?
Eu disse que sim e fiquei olhando a camisa, que era cinza e eu detesto cinza, mas não quis polemizar, ainda mais sendo aquele cinza, cor-de-nada, com apliques em preto e branco, que deveria ser uma homenagem do estilista ao preto e branco, celebrado com aquele belo cinza. Isso eu pensei, me contendo pra não estragar o belo e salutar diálogo.
Nesse mesmo instante a outra moça, que me entregava a comanda com o preço e a descrição do serviço, resolveu entrar na conversa.
– Bacana a camisa, né?
E eu, tentando explicar a minha curiosidade disse:
– Sim, não dava pra ver de longe o que eram as figurinhas e eu fiquei curioso. Tem muitas camisas assim atualmente. Outro dia eu vi uma toda cheia de abacaxis, era uma camisa toda branca com os pequenos abacaxis amarelos e com as ramas em verde clarinho.
Logo a mulher do balcão se alvoroçou, um tanto contrariada:
– Nossa, essa de abacaxi eu nunca vi não. Toda de abacaxis? E ainda amarelo e verde? Quem é que iria usar...
– Eu comprei uma – interrompi.
– Pois é, sabe, eu acho que deve ser assim mesmo a vida. Cada um com o seu gosto e pronto. Quem sou eu pra dizer que uma camisa cheia de abacaxis é feia ou bonita, não é mesmo?
E com um sorriso amarelo abacaxi, ela finalizou com a clássica sentença:
– O que seria do azul se todos gostassem do vermelho, não é assim?
A passadeira ficou passada (eu não podia perder essa) e também logo disse alguma outra frase feita, clássica, sobre o gosto das pessoas. Até ali o papo tinha ficado um tanto constrangedor, pois nós três percebemos a acidez da crítica que se anunciava para a tal camisa do abacaxi, que abruptamente foi mudada, para que fosse mantida a cordialidade dentro daquela máxima de que o cliente tem sempre razão e que não temos, no nosso estabelecimento, razão para discordar dele em hipótese alguma etc etc.
Assim, para não pagar de antipático e de dono da verdade, ou dono do gosto pelos abacaxis, eu disse que ia contar uma historinha pra elas.
– Pra vocês verem que gosto é mesmo algo muito difícil de entender: o meu filho, Deco, um dia me deu de presente a camisa mais legal que ele já comprou pra mim. Eu fiquei muito contente e disse a ele que dessa vez ele tinha acertado na mosca, que aquela camisa era a minha cara.
E elas prestando atenção.
– Aí o Deco me explicou o seguinte: que ele definitivamente tinha achado uma maneira de comprar camisa pra mim. Que ele chegava na loja, olhava todas as vitrines e pensava, diante daquilo tudo, qual a única camisa que ele jamais usaria. E era aquela que ele comprava pra mim.
As duas caíram na risada e eu fiquei aliviado por não ter promovido uma conversa presunçosa da minha parte. Peguei a nota e guardei no bolso. Elas me disseram que as roupas estariam prontas na sexta-feira próxima e eu, agradecendo, respondi com um sonoro bom dia e boa semana pra vocês.
Quando eu estava no meio do corredor uma delas me pediu:
– O dia que você for usar essa sua camisa, a dos abacaxis, dá uma passada aqui pra gente ver?
– Pode deixar que eu passo aqui, sim... – e saí da loja topando o desafio.
– Tchau.