quarta-feira, 4 de abril de 2018

Vó Lina


Minha vó Lina não gostava do seu nome verdadeiro. Nascida Laudelina, logo cedo extirpou a primeira parte dele, que ficou bem mais leve só com o Lina. A decisão prudente foi muito festejada mais tarde quando ela veio a se casar com meu avô, Adelino e, depois, quanto teve um filho também Adelino. Ela dizia “imagina o anúncio da chegada do casal Laudelina e Adelino a uma festa. Era coisa pra se esconder e não para entrar no salão”.
Por muitos anos ela foi enfermeira-chefe de um hospital infantil no Rio, sendo muito querida por todas as crianças que ajudou a cuidar nos primeiros dias de vida. Me lembro de muitas famílias terem ficado amigas da minha vó por conta do seu trabalho com os bebês, tanto na maternidade como na residência dos recém-nascidos.
Mas o que eu mais gostava na minha vó Lina era o seu jeito de tratar as pessoas e o seu modo de ver as coisas. Pra começar, era a pessoa mais desbocada que eu conheci na vida. Pra tudo ela tinha uma tirada com um sonoro palavrão no final. Nós, os netos, que não podíamos falar palavrão, adorávamos aquilo.
Quando eu era pequeno, de tempos em tempos meu pai levava a mim e o meu irmão no armarinho de um amigo dele, uma loja de aviamentos, e de lá a gente ligava pra minha vó. Antes de meu pai conversar com ela, pra saber como estavam as coisas, ele nos passava o telefone e a gente esperava atenderem do outro lado pra recitar:
– Alô, eu queria falar com a dona Laudelina.
– Laudelina é a p... que te pariu, aqui não tem nenhuma Laudelina não seu vi..., seu filho da p.... me diz quem foi o corno que mandou você falar isso, me diz, me diz que eu vou enfiar esse telefone no c... dele ­– e a gente morria de rir do outro lado da linha, mesmo desconfiando que era tudo combinado entre ela e meu pai.
De gosto musical apurado, e até diria erudito, que ia dos boleros famosos do Orlando Silva e do Altemar Dutra até as valsas orquestradas do cinema americano, vó Lina era também muito rígida com suas críticas e detestava música ruim. Quando a gente provocava, perguntando de propósito sobre uma música ruim, a gente já sabia o que vinha pela frente.
– Ouve só isso, vó. Não é linda essa música? Muito boa essa, né não?
E ela, já sabendo que a gente esperava pela resposta famosa, mandava:
– Sim, muito sensível e comovente essa. Uma música ótima pra quem tem a mãe na zona – e todo mundo saía rindo em volta.
Aquilo soava como um tipo de piada que, mesmo gasta, a gente jamais se cansava de ouvir, e rir, principalmente na voz dela, rouca e com o desdém que a tal música ruim merecia.
Atores e atrizes também eram alvo da sua crítica mordaz. Quando surgia alguém no vídeo que ela não gostava ela logo dizia que o sujeito era um pilha-fraca, que não tinha condição de estar fazendo aquele papel. Ao mesmo tempo em que elogiava Grande Otelo, Sérgio Britto e Odete Lara, os pilhas-fracas não tinham vez com ela.
Mas a sua maior e melhor tirada, sem dúvida era o Cudamãedonguinho. Esse era o seu personagem fictício favorito e que influenciou toda a família. Era só alguém ficar se esforçando pra lembrar o nome de um ator que ela logo dizia ser o Cudamãedonguinho. Às vezes, quando a gente comentava sobre um filme novo ou novela ela logo dizia que sabia sim e que o tal personagem ia ser a estrela. Até filme americano, a gente estava muito bem assistindo e ela chegava e elogiava o ator dizendo “esse aí eu conheço. Ele fez o famoso filme A Volta do Cudamãedonguinho” – e, claro, todo mundo caía na risada.
Uma vez a vó Lina combinou de ir passar uns dias lá em casa. Ela morava em Botafogo e a gente em Ramos. Era longe e ela sempre chegava lá reclamando do trânsito e do ônibus. Mas logo em seguida estava pronta pra ser a vó Lina de sempre, com seu livrinho de palavras cruzadas na mão e um cigarro na outra. O detalhe é que ambos, cigarro e palavras cruzadas, eram fortes. E só ela conseguia lidar com eles.
Nesses dias, lá em casa, uma vez ela resolveu atender a um pedido do meu pai e disse que ia fazer doce de abóbora. O doce era a sua especialidade e isso requeria uma produção exigente. Pra começo de conversa ela não usava nada pronto. Ela mesma que descascava a abóbora e a deixava descansando de molho na água, depois também era ela quem ralava o coco e fazia o próprio leite de coco.
Enfim, tudo tinha um ritual que culminava com a montagem de uma grande fogueira, com tijolos de barro dispostos em quadrado pra receber a enorme panela, alta e funda. O quintal da casa era grande e nos fundos só tinha uma parede cega que se erguia até a caixa d’água, lá no alto. Enquanto ia adicionando os ingredientes, cada vez que ela se aproximava da panela com a enorme colher de pau e ia mexendo o conteúdo, a sombra que surgia na parede revelava pra mim uma grande bruxa com sua panela mágica. Por trás, o fogo tremeluzindo movia a silhueta da minha vó como se ela estivesse suspensa no ar com sua caldeira.
As imagens são muito claras pra mim até hoje e a dimensão delas extrapola o fato de eu quase não me lembrar da minha vó Lina de outro jeito que não fosse de cabelo preso, já que sempre o trazia num coque tradicional. Mesmo assim eu juro que nessa noite da fogueira ela estava com os cabelos soltos e aquela sombra enorme na parede, de vez em quando parecia emitir uma risada imponente que fazia o vento mover as folhagens em volta e a luz da lua nem se atrevia a iluminar aquela cena, preferindo se esconder entre as nuvens.
Bem mais tarde, perto da meia-noite, duas vizinhas amigas da minha mãe chamaram lá do portão. Elas tinham sentido o cheiro do doce de abóbora da casa delas e vieram pedir um pouco, dizendo que estavam com água na boca. Em seguida a dona Iva, uma amiga, digamos mística, da minha mãe, voltando da casa do filho disse que sentiu uma estranha sensação e resolveu dar uma passadinha, atraída pelo cheiro maravilhoso do doce.
A fogueira estava já quase sem luz e todos nós estávamos ali sentados em volta dela, com os potes nas mãos esperando que minha vó Lina servisse a sua poção cheirosa e muito saborosa.
Tenho muita saudade da minha avó. Sinto que devia ter convivido mais com ela. Ainda guardo com carinho as belas canetas que ela me deu ao longo da vida e que eu adorava. Mas tem situações que a gente só se dá conta depois que passam. Aí, é tarde.
Uma coisa boa nisso tudo é a sensação de que muitos amigos meus sabem das histórias da minha vó Lina e até conhecem a sua personalidade, de tanto que eu vivo falando nela. Senão pelo seu dom bruxólico de fazer o tal doce de abóbora, pelo menos quando toca uma música, daquelas bem ruins, todos já sabem que eu vou dizer que a canção é boa pra quem tem a mãe na zona.
É minha vó Lina falando em mim.
Ou eu mesmo, na pele do bom e velho canastrão Cudamãedonguinho!