Minha vó Lina não gostava do seu nome
verdadeiro. Nascida Laudelina, logo cedo extirpou a primeira parte dele, que
ficou bem mais leve só com o Lina. A decisão prudente foi muito festejada mais
tarde quando ela veio a se casar com meu avô, Adelino e, depois, quanto teve um
filho também Adelino. Ela dizia “imagina o anúncio da chegada do casal
Laudelina e Adelino a uma festa. Era coisa pra se esconder e não para entrar no
salão”.
Por muitos anos ela foi enfermeira-chefe de um
hospital infantil no Rio, sendo muito querida por todas as crianças que ajudou
a cuidar nos primeiros dias de vida. Me lembro de muitas famílias terem ficado
amigas da minha vó por conta do seu trabalho com os bebês, tanto na maternidade
como na residência dos recém-nascidos.
Mas o que eu mais gostava na minha vó Lina era o
seu jeito de tratar as pessoas e o seu modo de ver as coisas. Pra começar, era
a pessoa mais desbocada que eu conheci na vida. Pra tudo ela tinha uma tirada
com um sonoro palavrão no final. Nós, os netos, que não podíamos falar
palavrão, adorávamos aquilo.
Quando eu era pequeno, de tempos em tempos meu
pai levava a mim e o meu irmão no armarinho de um amigo dele, uma loja de
aviamentos, e de lá a gente ligava pra minha vó. Antes de meu pai conversar com
ela, pra saber como estavam as coisas, ele nos passava o telefone e a gente
esperava atenderem do outro lado pra recitar:
– Alô, eu queria falar com a dona Laudelina.
– Laudelina é a p... que te pariu, aqui não tem
nenhuma Laudelina não seu vi..., seu filho da p.... me diz quem foi o corno que
mandou você falar isso, me diz, me diz que eu vou enfiar esse telefone no c...
dele – e a gente morria de rir do outro lado da linha, mesmo desconfiando que
era tudo combinado entre ela e meu pai.
De gosto musical apurado, e até diria erudito,
que ia dos boleros famosos do Orlando Silva e do Altemar Dutra até as valsas
orquestradas do cinema americano, vó Lina era também muito rígida com suas
críticas e detestava música ruim. Quando a gente provocava, perguntando de
propósito sobre uma música ruim, a gente já sabia o que vinha pela frente.
– Ouve só isso, vó. Não é linda essa música?
Muito boa essa, né não?
E ela, já sabendo que a gente esperava pela
resposta famosa, mandava:
– Sim, muito sensível e comovente essa. Uma música
ótima pra quem tem a mãe na zona – e todo mundo saía rindo em volta.
Aquilo soava como um tipo de piada que, mesmo
gasta, a gente jamais se cansava de ouvir, e rir, principalmente na voz dela,
rouca e com o desdém que a tal música ruim merecia.
Atores e atrizes também eram alvo da sua crítica
mordaz. Quando surgia alguém no vídeo que ela não gostava ela logo dizia que o
sujeito era um pilha-fraca, que não tinha condição de estar fazendo aquele
papel. Ao mesmo tempo em que elogiava Grande Otelo, Sérgio Britto e Odete Lara,
os pilhas-fracas não tinham vez com ela.
Mas a sua maior e melhor tirada, sem dúvida era
o Cudamãedonguinho. Esse era o seu personagem fictício favorito e que
influenciou toda a família. Era só alguém ficar se esforçando pra lembrar o
nome de um ator que ela logo dizia ser o Cudamãedonguinho. Às vezes, quando a
gente comentava sobre um filme novo ou novela ela logo dizia que sabia sim e que
o tal personagem ia ser a estrela. Até filme americano, a gente estava muito bem
assistindo e ela chegava e elogiava o ator dizendo “esse aí eu conheço. Ele fez
o famoso filme A Volta do Cudamãedonguinho” – e, claro, todo mundo caía na
risada.
Uma vez a vó Lina combinou de ir passar uns dias
lá em casa. Ela morava em Botafogo e a gente em Ramos. Era longe e ela sempre
chegava lá reclamando do trânsito e do ônibus. Mas logo em seguida estava
pronta pra ser a vó Lina de sempre, com seu livrinho de palavras cruzadas na
mão e um cigarro na outra. O detalhe é que ambos, cigarro e palavras cruzadas,
eram fortes. E só ela conseguia lidar com eles.
Nesses dias, lá em casa, uma vez ela resolveu
atender a um pedido do meu pai e disse que ia fazer doce de abóbora. O doce era
a sua especialidade e isso requeria uma produção exigente. Pra começo de
conversa ela não usava nada pronto. Ela mesma que descascava a abóbora e a
deixava descansando de molho na água, depois também era ela quem ralava o coco
e fazia o próprio leite de coco.
Enfim, tudo tinha um ritual que culminava com a
montagem de uma grande fogueira, com tijolos de barro dispostos em quadrado pra
receber a enorme panela, alta e funda. O quintal da casa era grande e nos fundos
só tinha uma parede cega que se erguia até a caixa d’água, lá no alto. Enquanto
ia adicionando os ingredientes, cada vez que ela se aproximava da panela com a enorme
colher de pau e ia mexendo o conteúdo, a sombra que surgia na parede revelava
pra mim uma grande bruxa com sua panela mágica. Por trás, o fogo tremeluzindo
movia a silhueta da minha vó como se ela estivesse suspensa no ar com sua
caldeira.
As imagens são muito claras pra mim até hoje e a
dimensão delas extrapola o fato de eu quase não me lembrar da minha vó Lina de
outro jeito que não fosse de cabelo preso, já que sempre o trazia num coque
tradicional. Mesmo assim eu juro que nessa noite da fogueira ela estava com os
cabelos soltos e aquela sombra enorme na parede, de vez em quando parecia
emitir uma risada imponente que fazia o vento mover as folhagens em volta e a
luz da lua nem se atrevia a iluminar aquela cena, preferindo se esconder entre
as nuvens.
Bem mais tarde, perto da meia-noite, duas
vizinhas amigas da minha mãe chamaram lá do portão. Elas tinham sentido o cheiro
do doce de abóbora da casa delas e vieram pedir um pouco, dizendo que estavam
com água na boca. Em seguida a dona Iva, uma amiga, digamos mística, da minha
mãe, voltando da casa do filho disse que sentiu uma estranha sensação e resolveu
dar uma passadinha, atraída pelo cheiro maravilhoso do doce.
A fogueira estava já quase sem luz e todos nós
estávamos ali sentados em volta dela, com os potes nas mãos esperando que minha
vó Lina servisse a sua poção cheirosa e muito saborosa.
Tenho muita saudade da minha avó. Sinto que
devia ter convivido mais com ela. Ainda guardo com carinho as belas canetas que
ela me deu ao longo da vida e que eu adorava. Mas tem situações que a gente só
se dá conta depois que passam. Aí, é tarde.
Uma coisa boa nisso tudo é a sensação de que
muitos amigos meus sabem das histórias da minha vó Lina e até conhecem a sua
personalidade, de tanto que eu vivo falando nela. Senão pelo seu dom bruxólico
de fazer o tal doce de abóbora, pelo menos quando toca uma música, daquelas bem
ruins, todos já sabem que eu vou dizer que a canção é boa pra quem tem a mãe na
zona.
É minha vó Lina falando em mim.
Ou eu mesmo, na pele do bom e velho canastrão Cudamãedonguinho!