Não sei se pelos rostos simpáticos, pelos
cumprimentos gentis, quase automáticos, que eu vi no metrô ou mesmo na rua. O
fato é que no Canadá eu topei com um monte de gente conhecida.
Pessoas que eu não via há muito tempo mesmo,
algumas desde a infância, passavam por mim e faziam uma saudação como que
desvendando o mistério dos seus sumiços como algo natural, ou seja, pela razão
singela de estarem todas elas no Canadá.
O seu Ari foi o primeiro que eu vi atravessando
a rua. Ele costumava furar a nossa bola quando ela caía na casa dele. Dizia que
a gente fazia muita algazarra quando jogava. Estava mais velho, mas inteiraço,
enquanto cruzava a passarela e ia olhando pros lados, cuidando do sinal que
logo ia fechar. Outrora amargo e ranzinza, agora o seu Ari estava expansivo,
quase alegre. Quando me viu, reparou que eu o reconheci e me pediu silêncio,
botando o dedo indicador esticado na frente da boca, enquanto escondia um leve
sorriso.
Outro dia, logo na entrada do parque, vi a
professora Eloisa. Também bem mais velha do que no meu tempo de ginasial, levava o
mesmo cabelo num coque bem feito e seus movimentos eram longos e pausados.
Estava procurando um banco pra se sentar ao sol e logo eu pensei que certamente
seria pra ler algum Machado de Assis ou José de Alencar que trazia na sacola e,
também certamente, sua intenção seria discorrer sobre a língua portuguesa que
tanto idolatrava.
Minha vontade foi me aproximar e agradecer por
ela ter me feito esse favor: de me esculpir na alma, durante aquele quadriênio
ginasial, a reverência fortunosa pelos mesmos mestres seus. Uma vida só não é
bastante para vivermos o parnaso em toda a sua magnitude, dizia ela andando pela
sala de aula com o livro aberto nas mãos.
No mercado público a dona Deolinda, mãe da dona
Inácia, vizinha dos primeiros anos da minha infância em Ramos, estava de costas
quando eu entrei. Me deu um olhar de incentivo quando me viu pegar um morango
enorme e depois deu o braço para a filha, que a apoiava no caminhar. Ficamos
ali olhando as frutas e hortaliças da loja até que ela foi embora me acenando,
como que avisando que ali eu não encontraria o cajá que tantas vezes ela cruzou
o portão lá de casa pra deixar para “os meninos”, depois de colher da enorme
árvore que ficava no seu quintal.
Se eu disser que o cheiro do cajá já estava ali no
mercado, sem que eu percebesse, ninguém vai acreditar. Mas estava!
Muita gente com quem convivi em Salvador também
estava no Canadá. Gente de Ramos, de Copacabana, de São Paulo, o síndico de um
dos prédios onde morei, colegas de trabalho, amigos de infância e das escolas
por onde passei. Eram tantas que nem lembro direito os seus nomes. Estavam bem
mais velhos, mas eu reconhecia a todos sem esforço. Suas fisionomias me eram
domésticas, fraternas mesmo, e eu passei a acreditar piamente que todos aqueles
rostos que haviam desaparecido do meu convívio e ficaram perdidos no tempo
nebuloso das minhas memórias estavam todos ali, no Canadá.
Todos eles haviam optado, de um modo inexplicável,
por viver no Canadá.
Na saída do país, ao passar pelo serviço de imigração
dos Estados Unidos, quando esperava pra apresentar o passaporte, reconheci o
professor Tadashi trabalhando em um dos guichês de atendimento. Quando chegou a
nossa vez, o funcionário avisou que seu equipamento estava sem sistema e que a
gente deveria ir pro módulo ao lado, o do professor.
Entreguei o passaporte, apoiei as digitais no
vidro do leitor indicado, tirei a foto e, de repente, notei o crachá do
atendente. Estava escrito Tadashi E. em letras azuis, com a bandeira
estadunidense logo abaixo. Procurando esconder a minha surpresa eu mal olhava
pro funcionário que folheava o documento e carimbava em uma das páginas.
De repente ele falou Brasil, dando um sorriso.
Eu e Regina também rimos um pro outro e em seguida ele disse “Ok, obrigado!”, dando
sinal pra gente seguir pro embarque. Enquanto a gente pegava as bagagens de mão
ele nos observava e eu estava aflito para ver de novo o crachá dele, pra me certificar do
nome que tinha lido mas que já não acreditava tanto.
Então quando me virei ele notou. Notou e fez um
gesto me mostrando o seu nome no uniforme, apontando cada letra do início ao
fim. Eu fiz um sinal afirmativo qualquer e ele levantou uma das mãos acima da
bancada e começou a esfregar os dedos na palma da mão fechada, como se
estivesse fazendo o gesto de jogar sementes em um canteiro que foi recém
preparado para o plantio.
Meio sem jeito, eu retribuí o obrigado e fomos
pra sala de embarque.
O mestre Tadashi foi meu professor no ginásio em
uma escola na Ilha do Governador. Era professor de Técnicas Agrícolas. Sua
mania era simular o gesto de semear, fechando a mão e esfregando os dedos na
palma, como se caminhasse e, ao mesmo tempo, fosse deixando as sementes caírem na
terra.
Abençoado seja o Canadá.